23 Outubro 2018
Que um fascista declarado como Jair Bolsonaro esteja a ponto de ser eleito presidente do Brasil fala muito mal do sistema político em geral e em particular de quem devia representar uma alternativa de esquerda. Dilapidou-se o capital depositado pelos setores populares na esquerda. É o que afirma nesta entrevista Jair Krischke, o presidente do Movimento de Justiça e Direitos Humanos de Porto Alegre e assessor da Rel-UITA.
A entrevista é de Daniel Gatti, publicada por Rel-UITA, 16-10-2018.
Como analisar este duro golpe?
A votação de domingo, 7 de outubro, foi totalmente diferente das anteriores. Chama a atenção o fato da derrubada do PT no final de agosto, quando o Lula ainda aparecia com possibilidades de ser candidato, bem como esse segundo lugar de Haddad agora.
O que aconteceu neste período tão curto para que Jair Bolsonaro, que tinha então 18%, passasse aos 46% deste domingo, e que o herdeiro de Lula, Fernando Haddad, não chegasse aos 30%, quando o ex-presidente tinha mais de 37 há menos de um mês e meio?
Se somamos os 20,32% das abstenções, com os 6,14 por cento dos votos nulos e os 2,65% dos votos em branco, chegamos a um total 29,11%, quase o mesmo número de votos recebidos por Haddad, que foram 29,8%.
O candidato do PT terá que buscar esses votos, mas mesmo assim possivelmente não seja suficiente.
De qualquer maneira, é uma loucura que vivamos uma situação assim, reveladora da decadência da política deste país.
Essa eleição se tornou um plebiscito. As pessoas se manifestaram em função do antipetismo, irritadas com as atitudes do PT durante sua gestão em todos estes anos. Não analisaram tanto as posturas de Bolsonaro, que são simplistas e diretas demais. Ele simplesmente foi escolhido porque aparecia como o maior opositor ao PT.
Os outros candidatos não apareciam suficientemente distanciados do PT: Ciro Gomes, por exemplo, foi ministro dos governos anteriores, sendo considerado de “centro-esquerda”, ainda que nem sempre o vejam como de “esquerda”.
Para complicar mais as coisas, no dia 5 de outubro, uns dias antes das eleições, uma pesquisa do Ibope revelou que 69 por cento dos entrevistados se manifestaram a favor da democracia.
Isso não condiz com um Bolsonaro que mais parece um fascista, aparecendo como o candidato mais distanciado de uma perspectiva democrática.
Sendo assim, não foi um voto ideológico, principalmente em um país profundamente despolitizado como o Brasil atual. Foi um voto com o fígado.
Você dizia que o principal responsável por este resultado foi o PT.
Sim, infelizmente. O PT não teve a coragem de fazer uma autocrítica sobre sua gestão, e atuou com soberba e cegueira.
A rejeição às suas políticas começou com os jovens, aqueles que foram às ruas em 2013 e em 2014, contra o aumento da tarifa do transporte público e por melhor qualidade na saúde e educação.
As manifestações desapareceram, mas delas surgiram sinais alarmantes: esses mesmos jovens não queriam bandeiras políticas de nenhum tipo em suas manifestações.
O problema é que independentemente das críticas aos partidos, que podem ser feitas por qualquer pessoa, quando as coisas são colocadas dessa maneira e todos os partidos rejeitados, abre-se a possibilidade de surgirem ditaduras.
Eu não soube ver o perigo naquele momento. Mas, o mais grave é que nenhum partido enxergou isso, sendo que eles têm a obrigação de saber ler o que acontece na sociedade. Hoje temos que repensar o que significa fazer política.
Por que as pessoas estão irritadas com os partidos políticos a ponto de votarem em um personagem como o Bolsonaro?
O Brasil é um grande exemplo deste fenômeno, mas podemos enxergar isto toda a América Latina, bem como em muitos países da Europa.
É uma grande questão que merece ser analisada e de forma urgente.
Os votos do Bolsonaro estão concentrados em que setores?
Em diversos setores. Por um lado, há uma identidade de pontos de vista entre este personagem e as igrejas pentecostais, como a Igreja Universal do Reino de Deus.
Uma quantidade de pastores fez campanha pelo Bolsonaro. São igrejas que estão trabalhando como se fossem partidos, buscando poder.
Estão formando jovens em boas universidades, para serem professores, juízes e oficiais das forças armadas.
Em muito pouco tempo, serão um fator de poder muito importante e muito negativo.
Bolsonaro também teve muito apoio da classe média urbana, porque se sentiu prejudicada pelos governos do PT.
Há que pensar em uma coisa: é verdade que o Lula e a Dilma tiraram milhões de pessoas da pobreza, mas financiaram essas medidas não com dinheiro proveniente dos mais ricos, mas sim da classe média.
Os de cima (bancos, grandes empresas do agronegócio e outras) nunca ganharam tanto quanto nos governos do PT, mas a classe média empobreceu.
E, por outro lado, estão obviamente os mais poderosos, os donos da terra, a chamada “bancada ruralista”, que não só votaram no Bolsonaro como colocaram dinheiro em sua campanha.
Aqui no Rio Grande do Sul, onde as pessoas “do agro” são muito poderosas, isso foi particularmente evidente.
Luís Carlos Heinze, do Partido Progressista e um dos dois senadores eleitos por este estado, está muito vinculado ao agronegócio, tendo um discurso abertamente fascista, contra os índios e os negros.
O nosso amigo Paulo Paim foi o outro senador eleito, sendo ele símbolo da negritude e da defesa dos direitos humanos e dos trabalhadores.
As bancadas das três B (boi, bíblia e bala) se inclinaram definitivamente por Bolsonaro.
Exatamente. E não devemos nos esquecer que esse fenômeno vem se arrastando desde a saída da ditadura, acentuando-se nos últimos anos a atomização das forças políticas.
Há hoje no país 35 partidos políticos reconhecidos, sendo que outros 73 estão esperando o reconhecimento pela Corte Eleitoral.
É um número gigantesco, nenhum sistema político sério pode funcionar assim.
É um enorme negócio formar um partido no Brasil. Na maioria dos casos não acontece por um motivo ideológico, nem por opções políticas, mas para montar estruturas criminosas, para praticar corrupção.
Corrupção da qual nenhum partido escapa. Essa é uma das responsabilidades do PT, por não ter combatido essas práticas, e sim as reproduzido, contribuindo para o desprestígio da política.
Bolsonaro baseou seu discurso principalmente na luta contra a corrupção, sendo um dos poucos políticos do país que não é acusado de corrupção.
Ele se apresentou como um “salvador”, como o mais apto para combater a decadência dos “políticos”, e isto é muito perigoso.
Há um setor da classe popular, sensível à essa questão e também a da insegurança, porque são vítimas de outros pobres, que também se viu seduzido por este discurso.
Ontem, o garçom do bar ao que vou sempre, um homem pobre, obviamente, me cumprimentou como sempre e me disse: “estamos bem, né chefinho?”.
Muita gente humilde que se sentiu traída pelo PT votou no Bolsonaro.
Os partidos brasileiros estão diante de um enorme desafio: discutir o que farão no futuro imediato. Eu quero estudar esse assunto, porque me preocupa a democracia, que é o que de fato está em jogo.
A não ser que aconteça um milagre, uma pessoa que diz que o erro da ditadura foi ter matado pouco, que deviam ter matado mais umas 30 mil pessoas, que diz que vai perseguir o ativismo social, que odeia negros e índios, que despreza pobres, que está disposto a dar poder aos militares, está a ponto de ser eleito presidente do maior país da América Latina.
Isso questiona todo o sistema político.
Jair Krischke termina a entrevista com esta frase: “Estamos abrindo a porta de um enorme retrocesso civilizatório”.
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A eleição de Jair Bolsonaro: “Um voto com o fígado”. Entrevista com Jair Krischke - Instituto Humanitas Unisinos - IHU