Por: Patricia Fachin | 06 Outubro 2018
O cenário político brasileiro, “pensando em termos de transformação efetiva das regras do jogo”, é “desolador” e a sensação geral é a de que “as opções atuais parecem bem pouco dispostas ou capazes de substituir os velhos atores”, afirma Acauam Oliveira. Segundo ele, os candidatos que disputam a presidência discutem pautas pontuais, como a reforma política ou a revogação das reformas feitas no governo Temer, mas não têm “coragem” de debater mudanças no modelo de segurança pública, a reforma da mídia e o lugar da Amazônia no desenvolvimento brasileiro. “O sentimento geral é de que nenhuma candidatura atual é capaz de responder às demandas urgentes do seu tempo, de aparente esgotamento de Ideias políticas radicais”, lamenta.
Na entrevista a seguir, concedida por e-mail para a IHU On-Line, Oliveira analisa as narrativas das candidaturas à esquerda e à direita, e frisa que ambas assumem o discurso “bastante homogêneo” de que “é urgente pensar em novas formas de se fazer política, rompendo com a polarização que conduziu o país para o abismo”. Obviamente, ressalta, “o não dito que sustenta essa bravata é o fato de que a instabilidade política em que nos encontramos deriva diretamente da atuação política desses grupos”. Em linhas gerais, resume, “o discurso da direita é marcado por um curioso antipetismo que centra suas críticas ao partido sem tocar diretamente em Lula”, enquanto o da esquerda se divide “entre a retórica petista, abarrotada de luta de classes por todo lado e centrada na polarização do nós (povo, trabalhadores, movimentos sociais etc.) contra eles (elite, grandes corporações corruptas etc.), em oposição às demais candidaturas (Ciro e Marina) que não podem se utilizar da mesma estratégia”. Além disso, menciona, as candidaturas focam mais na performance do que no conteúdo dos enunciados. “Como o foco está antes na performance do que no conteúdo, o reconhecimento da falsidade do argumento não produz efeito algum”, afirma.
Acauam Oliveira também comenta as interações dos eleitores nas redes sociais. “Estou cada vez mais convencido de que a linguagem das redes sociais é antipolítica em sentido profundo”, diz. No Facebook, exemplifica, “impera o reducionismo, a falta de diálogo e a afirmação narcisista da própria bolha, com pouco espaço para trocas efetivas. Cada grupo procura em seus pares aquilo que melhor reforça sua autoimagem, enquanto recusa violentamente aquilo que no outro remete à alteridade irredutível”. O modo de atuação nas redes é marcado pelo “patrulhamento, sobretudo moral, que cria séquitos, conforta os seguidores e estimula a polêmica. Nos piores casos, a política é rebaixada à mera definição de códigos de etiqueta e padrões de conduta. Não é por acaso, portanto, que a era de descrença coletiva na política é também a era de fortalecimento das redes sociais”, conclui.
Acauam Oliveira | Foto: Obvious
Acauam Oliveira é graduado em Letras, mestre em Teoria Literária e Literatura Comparada e doutor em Literatura Brasileira pela Universidade de São Paulo – USP. É professor da Universidade de Pernambuco – UPE, atuando na graduação em Letras e no mestrado profissional em Letras.
Nota de IHU On-Lne: A entrevista foi publicada, originalmente, aqui nesta página, no dia 29-09-2018.
Confira a entrevista.
IHU On-Line - Que avaliação geral você faz do atual cenário eleitoral? Qual é o significado da fragmentação eleitoral?
Acauam Oliveira - Existem aqui dois aspectos complementares e conflitantes. Em termos mais gerais, podemos dizer que nos últimos anos vivemos um processo de intensa fragmentação política, que no caso da esquerda vem se caracterizando por uma série de dissidências e rupturas com o petismo. Tal processo vem dando origem a novas vozes e modelos de organização, partidários ou não — Paulo Arantes chega a falar no surgimento de valores de uma esquerda não desenvolvimentista, o que seria uma espécie de heresia nacional. No campo da direita também é possível observar essa mesma fragmentação, com o fortalecimento da extrema direita e de grupos cada vez maiores de jovens descontentes com a hegemonia esquerdista. Toda essa movimentação política bastante viva e intensa — que em certa medida ainda reflete embates e questões colocadas desde maio de 1968, e cujo epifenômeno local decisivo segue sendo Junho de 2013 — apresenta uma série de desafios para as “velhas” formas de organização política, que procuram meios de reação e negociação com o conjunto de vozes insurgentes.
De todo modo, o sentimento geral é que no campo da política institucional — e aqui entramos no segundo aspecto — essas novas vozes não encontram ressonância (o que, aliás, para autores como Ellen Wood e Jaques Rancière, é o elemento definidor da própria democracia representativa). Ninguém, de fato, as representa. Os diversos movimentos globais de insurreição contra os regimes neoliberais de direita e esquerda no geral têm recebido respostas políticas caricaturais, puramente reativas, que mudam a retórica mas seguem abraçados aos vencedores de sempre, como Trump nos EUA, Matteo Salvini na Itália e Viktor Orbán na Hungria.
No caso brasileiro, pensando em termos de transformação efetiva das regras do jogo, o que implicaria na apresentação de alternativas concretas e incorporação de pautas mais radicais, o cenário é desolador. Em que pesem as diferenças e disputas políticas de praxe, Ciro Gomes, Luladdad, Marina Silva e Geraldo Alckmin apresentam grande semelhança de projetos, todos a meu ver incapazes de conter o apocalipse sob o qual já estamos assentados. No fundo, estamos diante de um único projeto de poder, absolutamente frágil e vendido ao eleitorado como a grande “alternativa democrática” contra a regressão fascista que, no entanto, ele mesmo ajudou a produzir.
A sensação geral é que, a despeito do maremoto político dos últimos tempos, que resultou em um país literalmente desgovernado, as opções atuais parecem bem pouco dispostas ou capazes de substituir os velhos atores. Um exemplo bastante elucidativo nesse sentido é a distância entre os cálculos de certos setores de esquerda — que parecem repetir a mesma estratégia utilizada em 2014, quando apostavam na ida de Aécio para o segundo turno de modo a se colocar como única alternativa progressista viável — e o conjunto de seus eleitores, que torcem para que Bolsonaro seja derrotado logo de início. Não é de se estranhar, portanto, o caráter melancólico e desacreditado do eleitorado brasileiro, perfeitamente ciente de que só terá direito de escolher o nome do carrasco diante da tragédia que se anuncia.
O ponto fora da curva, obviamente falso de ponta a ponta, é Jair Bolsonaro, fenômeno pop que obteve grande sucesso em capturar os sentimentos antipetista, antipolítico e antiesquerdista com uma retórica ao mesmo tempo autoritária e zueira, feita sob medida para horrorizar os que defendem valores liberais e viralizar nas redes sociais. O PSDB até tentou capturar esse estado de espírito para si, mas as contínuas revelações da sujeira dentro do partido minaram suas possibilidades. Nesse sentido, o falso outsider, sem fidelidade partidária e de grande sucesso nas redes sociais, possui características mais apropriadas para ser bem-sucedido nesse campo.
Contra sua candidatura, direita e esquerda se mobilizam com um discurso bastante homogêneo: é urgente pensar em novas formas de se fazer política, rompendo com a polarização que conduziu o país para o abismo. Obviamente, o não dito que sustenta essa bravata é o fato de que a instabilidade política em que nos encontramos deriva diretamente da atuação política desses grupos. No fim das contas, toda essa movimentação apresenta um caráter profundo de encenação, para não falar diretamente em circo, em que os grupos políticos responsáveis pela crise institucional oferecem como resposta exatamente as mesmas alternativas que a produziram. O espetáculo não poderia ser mais indigesto, e o estado geral de desencanto deve seguir alimentando discursos extremistas e polarizados, sobretudo em caso de uma vitória do PT ou de Bolsonaro.
IHU On-Line - Como você avalia a “discussão” ou o “debate” político na internet, especialmente nas redes sociais? O que tem caracterizado a discussão nas redes?
Acauam Oliveira - Estou cada vez mais convencido de que a linguagem das redes sociais é antipolítica em sentido profundo. Isso fica muito claro ao lermos o artigo publicado em 2015 por Hossein Derakhshan [1], ativista digital considerado subversivo pelo governo iraniano e preso em 2008 por ter um blog. No texto, Hossein relata sua profunda decepção ao perceber, após seis anos de prisão, os efeitos da passagem da era dos blogs para o império das redes sociais. Segundo o autor, as redes são as principais responsáveis por anular o potencial democrático da internet, que de instrumento suficientemente subversivo a ponto de levá-lo à prisão converte-se em um sistema de entretenimento e vigilância altamente centralizado, de pouquíssimo potencial político e particularmente útil aos órgãos de poder.
Convém lembrar que as redes sociais em seus primórdios foram apresentadas enquanto um espaço democrático de trocas horizontais, em que caberia ao sujeito controlar as leis de seu próprio universo particular, agora em comunicação com todo o globo — uma espécie de complemento necessário ao caráter democraticamente aglutinador da globalização. Contudo, em um período de tempo curtíssimo, tais ferramentas acabariam por se revelar como um conjunto altamente complexo de dispositivos verticalizados e centralizadores, com efeitos culturais e políticos perversos — tal como a própria globalização, diga-se de passagem. Dentre eles, um elaboradíssimo sistema de vigilância internacional de adesão espontânea.
A esse propósito, o escritor Bernardo Carvalho publicou um excelente texto na revista Piauí [2], em que trata das implicações políticas presentes na defesa da democratização dos conteúdos digitais (Creative Commons e afins) feita por grandes conglomerados como Facebook, Youtube e serviços de streaming. De uma perspectiva democrática, trata-se de uma disputa pela liberdade, que garantiria ao público o direito de acessar gratuitamente o trabalho de milhares de artistas e autores espalhados pelo planeta, num processo irreversível de democratização do acesso aos bens culturais. Em termos práticos, contudo, o efeito é a produção infinita de conteúdo gratuito para os acionistas de empresas cada vez mais centralizadas e sem regulação, em que o artista não apenas não recebe nada por seu trabalho, como ainda tem que pagar pela utilização do espaço virtual. Como a galinha dos ovos de ouro está mais na circulação do que na produção, opera-se uma inversão perversa em que o horizonte final da liberdade individual confunde-se com o interesse das grandes corporações enquanto os artistas, tornados trabalhadores informais precarizados, são instados a trabalhar de graça em nome da democracia. Afinal, quem não está no Instagram não existe.
Em relação ao debate político propriamente dito, a lógica subjacente aos algoritmos resulta nos piores efeitos possíveis. Nas discussões de Facebook impera o reducionismo, a falta de diálogo e a afirmação narcisista da própria bolha, com pouco espaço para trocas efetivas. Cada grupo procura em seus pares aquilo que melhor reforça sua autoimagem, enquanto recusa violentamente aquilo que no outro remete à alteridade irredutível. Como tudo é narcisismo e autopromoção, a discordância é lida na chave do dislike e respondida em caixa alta para reforçar o próprio conjunto de certezas. Não por acaso, o principal modo de atuação nas redes é o patrulhamento, sobretudo moral, que cria séquitos, conforta os seguidores e estimula a polêmica. Nos piores casos, a política é rebaixada a mera definição de códigos de etiqueta e padrões de conduta. Não é por acaso, portanto, que a era de descrença coletiva na política é também a era de fortalecimento das redes sociais.
IHU On-Line - Quais têm sido as estratégias discursivas à esquerda e à direita para conquistar o eleitorado?
Acauam Oliveira - As estratégias são muitas, a depender do ângulo de análise. Portanto, eu gostaria de limitar minha resposta às propagandas e debates eleitorais, que são, por assim dizer, ideologia em estado puro. A esse propósito, a Le Monde publicou uma matéria interessantíssima em que analisa o discurso político dos principais candidatos à presidência. Em linhas gerais, o discurso da direita é marcado por um curioso antipetismo que centra suas críticas ao partido sem tocar diretamente em Lula, o que é absolutamente natural (ainda que cínico) caso reconheçamos que a popularidade inabalável do líder do PT faz dele uma figura intocável mesmo para Bolsonaro. Se é verdade que o antipetismo é uma das maiores forças políticas do país, não é menos verdadeiro que ele não se cansa de acumular derrotas contra a “ideia” Lula. O nome da coisa, encarnado temporariamente em Haddad. O discurso direitista foca também na necessidade de mudança — o que soa particularmente patético vindo das candidaturas do PSDB e do MDB — e adota um discurso moderado (com exceção de Bolsonaro), contrário à instabilidade política, devidamente colocada nas costas de Dilma e Bolsonaro, como se PSDB e MDB não tivessem absolutamente nada a ver com isso. Em suma, as distorções mesquinhas e cínicas de sempre, com uma única novidade — nada boa — digna de nota.
No campo progressista, por outro lado, cabe destacar certa diferença entre a retórica petista, abarrotada de luta de classes por todo lado e centrada na polarização do nós (povo, trabalhadores, movimentos sociais etc.) contra eles (elite, grandes corporações corruptas etc.), em oposição às demais candidaturas (Ciro e Marina) que não podem se utilizar da mesma estratégia. Nesse ponto o PT a meu ver leva uma vantagem significativa sobre os demais candidatos, considerando o eleitorado de esquerda. Apenas o partido parece autorizado a mobilizar a velha retórica dos oprimidos x opressores tranquilamente, ou seja, sem assustar aos grupos de interesse que efetivamente comandam os bastidores da política nacional. Ciro e Marina precisam apresentar um discurso mais moderado, que convença também ao campo dos “opressores”. Não que o PT não pretenda governar de mãos dadas com estes, bem ao lado dos golpistas de sempre. Mas os “opressores” sabem por experiência própria que a retórica petista não significa uma oposição de fato: a luta de classes é de mentirinha, faz parte da performance que pretende retornar aos gloriosos tempos de grandeza do progressismo neoliberal pré-Dilma, ainda que o dinheiro para isso tenha acabado. A retórica mais apaixonada, repleta de binarismos e dicotomias passionais, faz parte do pacote lulopetista e, até certo ponto, está vedada aos outros candidatos — o que é um problema evidente para um nome como Ciro Gomes, que se pretende continuador direto de Lula.
Não deixa de ser interessante, ainda, que a disputa eleitoral esteja se definindo para o campo progressista como uma questão de nomeação. De um lado, o Inominável, o que não se diz, o Temba, o Canho do Pé Preto. O Coiso. De outro, o nome dos nomes, o nome excessivo, o Real Nome de todos os outros nomes. O Verbo. O nome da coisa e a coisa sem nome. O problema com o Inominável é que cada vez mais ele ameaça incorporar-se em um Corpo, presentificando-se materialmente na nossa cara (ou sobre nossas cabeças). Nesse sentido, tal como em “Grande sertão: veredas”, a variação infinita de nomes ao redor do Capiroto não deixa de ser um sintoma imaterial de sua assombrosa materialidade. O problema com o nome excessivo, ao contrário, é sua recusa em encarnar por completo e absolutamente em um único corpo. Sabemos da escolha do partido, mas trata-se de uma aposta que não necessariamente corresponde à realidade do que virá. Não há garantias de qual corpo irá encarnar o Nome, se é que algum irá. Não temos nomes para o que vai vir, nem um corpo para oferecer. Caso se confirme, podemos passar os próximos anos sem nome algum, corpo nenhum. A vida nua, pesadelo sem fim.
IHU On-Line - Num vídeo recente você comentou que a performance tem tomado o lugar dos fatos e dos argumentos na eleição presidencial deste ano. Por que há essa valorização da performance em detrimento de argumentos, tanto à direita quanto à esquerda? O que isso revela sobre a relação do eleitor com a política e quais são as implicações disso para a própria política?
Acauam Oliveira - No texto em questão eu retomava uma diferenciação proposta pela jornalista Eliane Brum entre pós-verdade e autoverdade [3]. Segundo a jornalista, essa seria uma diferença fundamental na compreensão do fenômeno Jair Bolsonaro. Grosso modo, a pós-verdade se aproximaria mais do campo das fake news (uma distorção elementar em relação aos conteúdos produzidos), enquanto na autoverdade o foco recairia mais na performance, ou seja, menos no conteúdo dos enunciados do que nos modos de enunciação. Por exemplo, quando um eleitor de esquerda compartilha uma notícia falsa relacionando Aécio Neves ao uso de cocaína, e essa notícia viraliza, estamos no campo da pós-verdade. A notícia não é compartilhada por seu teor de verdade, mas enquanto marca de um posicionamento subjetivo (no caso, tirar uma onda do Aécio, minando sua popularidade e demarcando uma posição no interior do campo político). O sujeito que compartilha o meme pode inclusive ter um discurso favorável à legalização das drogas e fazer uso recreativo de maconha ou cocaína, por exemplo. A lógica é narcisista e expressa, antes de tudo, o campo dos desejos.
No caso da pós-verdade, uma operação fundamental para desmontar as fake news consiste em denunciar a falsidade dos seus conteúdos. Obviamente que, por dizer respeito ao campo do desejo, nada garante que a denúncia será suficiente para interromper o circuito de boataria virtual mas, de todo modo, denunciar a falsidade do conteúdo faz parte das estratégias antimanipulação. No caso da autoverdade, como o foco está antes na performance do que no conteúdo, o reconhecimento da falsidade do argumento não produz efeito algum. Imaginemos um grupo de pais que se reúne semanalmente em busca de apoio para se recuperar da perda recente de seus filhos, mortos por câncer de pulmão. De repente, a reunião é interrompida por um grupo de moleques que invade o espaço fumando charutos, gritando e filmando a reação atônita e desesperada dos pais. O conteúdo nesse caso pouco importa, e já não adianta a sua denúncia, pois o que vale é a zueira, cujo objetivo final é a desestabilização da vítima. E de nada adianta nesse caso a indignação diante do horror, pois todo protesto e revolta serão interpretados na chave do “ah, mas você não aguenta brincadeira”. O sujeito da ação perversa não se implica em sua própria prática, cujo ônus é totalmente lançado sobre o outro.
Boa parte das estratégias da direita nos últimos anos consiste em aperfeiçoar um conjunto de técnicas desenvolvidas especialmente para tirar a esquerda do sério (o que não é muito difícil). Pois o sucesso da autoverdade depende de que o alvo reaja com indignação, histericamente, denunciando os conteúdos e viralizando suas reações junto com a performance. A técnica não é nova e está presente, por exemplo, nos famosos Testes de Fidelidade do João Kleber, em que o gozo do público era estimulado tanto pelas cenas picantes de traição quanto pela reação “em tempo real” do marido ou esposa traídos. Como o que importa na autoverdade não são os conteúdos, e sim a desestabilização do outro, a denúncia indignada acaba por se voltar contra a vítima. Ninguém se lembra dos anos de provocações da família Bolsonaro a Jean Wyllys, mas todos se lembram e condenam a cusparada. É a política pensada como bullying, que torna o debate público brasileiro uma espécie de quinta-série F, com a direita assumindo o papel do grupo de alunos zueiros que sentam no fundão (como no filme de Danilo Gentili), e a esquerda o papel do diretor careta e moralista que todo mundo quer aloprar.
É essa identificação perversa que leva muitos eleitores mais moderados do que o próprio Bolsonaro a simpatizar menos com a ideia do que com as atitudes do candidato: cansados da política representativa, os eleitores almejam um nome forte que limpe a bagunça e ao mesmo tempo tenha coragem de “tirar uma onda” das instituições, alguém com a coragem necessária para colocar os políticos corruptos em seu devido lugar. Em suma, alguém que jogue merda no ventilador. Como Bolsonaro não possui efetivamente nenhum tipo de projeto, e as pessoas estão profundamente cansadas dos conteúdos políticos que não deixam de ser uma forma avançada de fake news, essa estratégia que foca na performance antiesquerdista é seu grande trunfo, para não dizer o único. Quando o debate sai do âmbito da produção de memes — como vimos com as declarações desastrosas de Paulo Guedes que Bolsonaro teve (pasmem) que corrigir — a coisa fede.
IHU On-Line - Quais são as consequências do discurso politicamente correto no cenário nacional? Esse discurso contribuiu para a ascensão de políticos como Bolsonaro? Ainda nesse sentido, o que esse tipo de discurso revela sobre a atuação de parte da esquerda no país?
Acauam Oliveira - O politicamente correto é um padrão discursivo que funciona perfeitamente bem enquanto mecanismo de legitimação ideológica do chamado “capitalismo multicultural”, “progressismo neoliberal”, ou qualquer outra forma de nomeação desse modelo neodesenvolvimentista que adota uma retórica democrática multicultural enquanto se preocupa em salvar bancos, em detrimento dos interesses populares. O politicamente correto atua de modo a “corrigir” artificialmente o descompasso entre o conjunto de padrões éticos assumidos discursivamente e a realidade cotidiana chafurdada na barbárie.
Esse código de linguagem funciona ideologicamente na medida em que propõe um modelo de soluções que prescinde das contradições reais. Não por acaso ele, que havia sido praticamente abandonado pela esquerda, retorna com força no período de militância das redes sociais, cujo modo de funcionamento é predominantemente narrativo, voltado para as próprias bolhas ideológicas. O politicamente correto é antipolítico na medida em que assume um compromisso predominantemente retórico e imagético, o que explica seu elevado grau de interesse para aquela parcela da militância de esquerda que perdeu sua capacidade de mobilização real e que, por isso, forja diversos mecanismos de compensação imaginários que simulam formas de atuação sobre a realidade.
Dessa forma, esquerdistas universitários brancos sentem-se moralmente confortáveis, vitoriosos e um cadinho superiores ao substituir termos como “negão” ou “crioulo” por afrodescendente, enquanto as incipientes formas de acesso dos negros nas universidades vão sendo progressivamente barradas. Aliás, é de se notar que quanto maior a perda de oportunidades reais, mais o politicamente correto cobra por compensações imaginárias, tornando-se mais intolerante. Obviamente que não se trata de elogiar os padrões anteriores explicitamente intolerantes, mas de reconhecer que não foram oferecidas respostas de fato. A perversidade maior desse mecanismo é que o caráter absolutamente legítimo de seu ponto de partida (no exemplo em questão, a denúncia do racismo efetivamente existente no uso pejorativo de determinados termos como “crioulo”) é rebaixado pelo conjunto de “soluções” apresentadas. O método de luta (patrulha, linchamento, polêmicas anódinas, textão etc.), sobretudo quando condicionado pela dinâmica das redes sociais, torna irrelevante o que deveria ser tratado com a maior seriedade. Assim, gastamos meses em disputas "radicais", perdidas de antemão, contra turbantes sem sentido, ou reduzindo toda complexidade envolvida na questão indígena a discussões intermináveis e infrutíferas sobre o uso de determinadas fantasias no carnaval. A justificativa do politicamente correto é sempre a mesma: como o poder está em tudo (numa distorção absolutamente empobrecedora de Foucault), é preciso estabelecer o combate a partir de todas as frentes possíveis, em nome da disputa pela hegemonia. O que ocorre na prática, contudo, é que os combates cada vez mais limitam-se a áreas de fôlego curtíssimo, que por si só já revelam o tamanho do nosso buraco.
É importante salientar, contudo, que a culpa pela ascensão de uma figura como Bolsonaro não entra exclusivamente na conta da esquerda. Não custa lembrar que foi em nome do combate à retórica politicamente correta que se fomentou a lógica oposta e complementar, ainda mais perversa, da violência politicamente incorreta — o padrão discursivo de Bolsonaro — como sendo o novo “cool”, reduzindo a discussão de pautas importantes à condição de mero “mimimi esquerdista” que deve ser tratado na porrada ao se converter em manifestações públicas. Tal modelo, que se sustenta a partir do combate a uma “ditadura das minorias” que só existe nos delírios da direita mais alucinada, tampouco se ampara na realidade, e seus efeitos são ainda mais perversos.
IHU On-Line - Como você interpreta a popularidade de Bolsonaro nas eleições presidenciais deste ano, especialmente após quase quatro mandatos da esquerda à frente da presidência? Como a esquerda tem reagido e tentado se contrapor ao discurso de Bolsonaro?
Acauam Oliveira - Acredito que a figura de Jair Bolsonaro deva ser compreendida não como um desvio no campo da normalidade democrática brasileira, mas como resultado de seu próprio dinamismo interno. Por isso, inclusive, que o termo “fascista” para qualificar o candidato não me atrai muito, embora reconheça tanto as semelhanças do nosso momento atual com o fascismo histórico quanto a função discursiva do termo, que visa enfatizar o caráter abjeto da figura. Mas se a nomeação ajuda a (des)qualificar a personagem, ela pouco nos diz a respeito das condições locais de emergência da figura e das particularidades locais de sua performance, responsáveis por seu sucesso.
Em linhas gerais, pode-se dizer que a candidatura de Jair Bolsonaro foi a que melhor conseguiu até o momento capitalizar três dos principais discursos políticos que têm avançado sobre o país nos últimos tempos: o antipetismo, o antiesquerdismo e a antipolítica. Com relação ao antipetismo, críticos como Idelber Avelar [4] vêm alertando para o fato de que, no limite, foi o PT quem deu asas à cobra, haja vista que o PP chegou ao Executivo nacional por meio de articulações encabeçadas pelo próprio Lula. Entretanto, ainda que a ressalva seja verdadeira, não se deve derivar daí que o antipetismo raivoso tenha sido um resultado completamente previsto e desejado pelo PT, como se o partido fosse uma espécie de agente infiltrado da extrema direita. Do mesmo modo que o golpe\impeachment foi sim, resultado das escolhas equivocadas do partido, a começar pela escolha do vice, mas não controlado em todas as suas implicações desde o princípio.
Ainda que a imagem de Bolsonaro se fortaleça ao longo da gestão petista, sua postura raivosa e histriônica parece ter origem bem diversa do posicionamento de um Eduardo Cunha, por exemplo — esse sim, figura central para o PT antes de se tornar seu pior pesadelo. Bolsonaro, ao contrário, sempre teve pouca relevância política, o que se comprova tanto pelo número irrisório de projetos aprovados ao longo de sua vida parlamentar, quanto por sua incapacidade em fechar com um partido ou definir uma vice-candidatura mesmo já sendo um dos líderes nas pesquisas. Bolsonaro literalmente não tem nada a apresentar, até que consegue transformar esse nada em uma série de enunciados provocativos perfeitos para viralizar nas redes sociais. Nesse sentido, seu comportamento raivoso lembra mais o daquele menino magricela de óculos fundo de garrafa que nunca era escolhido para o time, a não ser como goleiro. Ou a figura clássica do hater de internet: irrelevante no dia a dia, cão raivoso por trás das telas ou, no caso, das câmeras. O moleque Bolsô age como aquela criança chata e birrenta que, por mais que se esforçasse, não era nunca convidada para festa.
Talvez a questão decisiva em relação a seu sucesso eleitoral possa ser enunciada da seguinte forma: como é possível que uma figura tão antiga na política, nepotista old school, seja capaz de sustentar a imagem de algo novo? Em que essa imagem se ancora? Como sabemos, toda fantasia comporta uma dimensão concreta: qual seria, então, a materialidade que sustenta a fantasia bolsonarista? De fato, existe algo em sua persona que confere certa “credibilidade imprevista” à personagem: sua irrelevância e incompetência política. É precisamente a irrelevância de alguém que sempre esteve ali para garantir o seu, mas que nunca foi suficientemente competente para se destacar (é bom lembrar que ele tentou por três vezes presidir a Câmara dos Deputados, sem sucesso), que é ressignificada ideologicamente em seu discurso. Dessa forma, sua inexpressividade se converte em prova de perseguição (“não me deixaram fazer nada”), e sua incompetência em marca de alguém que nunca se deixou corromper, convertendo sua mediocridade (“nunca fui capaz de fazer”) em um dado positivo (“não me deixaram fazer porque sou o único que está certo”).
Em termos de linguagem, particularmente dois movimentos me parecem aqui fundamentais e decisivos. De um lado, os cacoetes e jargões de certa direita brasileira cujo front são as redes sociais e que têm por missão autoatribuída “livrar o país do terror vermelho”. O tom raivoso, que mistura indignação, fake news e um certo número de argumentos “bombásticos” que “desmontam” a esquerda, alia-se a uma performance que é também cômica, tiradora de onda e que tem no “guru” astrólogo Olavo de Carvalho e seus seguidores (Nando Moura, Mamãe Falei, MBL) uma de suas principais fontes de disseminação.
Entretanto, esse tom histriônico característico da extrema direita possui outras bases de constituição que merecem ser acompanhadas mais de perto. Podemos reconhecer muito da performance de Bolsonaro em programas televisivos como o finado Pânico na TV, com sua mistura perversa de barbárie e comicidade, ou no mais “politizado” (e tão perverso quanto) CQC. Também certos setores evangélicos apostam na mistura entre conservadorismo e discursos inflamados em forma de pregação. Mas talvez o elemento mais determinante no processo de popularização da performance de Bolsonaro seja o modelo de programas policiais televisivos, com sua mistura de violência autoritária, discurso contra os direitos humanos e teor cômico de grande apelo, apresentados por figuras como Marcelo Rezende, Sikêra Júnior, e o próprio Ratinho em início de carreira.
De todo modo, o surgimento de uma figura como Bolsonaro é resultado de uma elaboração profunda e contínua que não foi a seu tempo devidamente percebida pelo pensamento de esquerda, bastante confortável em sua hegemonia governista.
IHU On-Line - Que alternativas os partidos à esquerda têm proposto para o país, diante da atual crise econômica, social e política? Quais são os temas mais urgentes do país, os quais precisariam ser discutidos nas eleições deste ano?
Acauam Oliveira - Existem diversas questões pontuais importantes que estão sendo mais ou menos discutidas pelas principais candidaturas (reforma política, revogação das reformas do Temer) e outras tantas que ninguém tem coragem de se aproximar de forma efetiva (mudanças no modelo de segurança pública, reforma da mídia, o lugar da Amazônia). De todo modo, o sentimento geral é de que nenhuma candidatura atual é capaz de responder às demandas urgentes do seu tempo, de aparente esgotamento de Ideias políticas radicais.
No campo da esquerda, a ausência de alternativas é flagrante, e a aposta de todas as fichas em Lula (ou em quem ele indicar) é o sintoma maior dessa falta de imaginação e programa de quem sobrevive (mal) das glórias passadas. Em muitos sentidos, o lulopetismo apresenta sinais claros de esgotamento, a despeito da enormidade do poder político de Lula. O partido sofreu enormes derrotas nos últimos anos: um impeachment\golpe aprovado pela maioria da população, quando Dilma amargava meros 10% de aprovação, e inúmeras derrotas eleitorais avassaladoras nas últimas eleições. Ao que tudo indica, em 2018 tampouco o PT irá levar o governo das principais capitais do país. Mesmo a inquestionável aprovação de Lula não teve força suficiente para mobilizar os simpatizantes para as manifestações contra a sua prisão, ao contrário dos diagnósticos mais otimistas da cúpula do partido. Aliás, as últimas grandes manifestações que efetivamente paralisaram o país tiveram pouca participação da esquerda — para não falar dos setores esquerdistas que se colocaram diretamente contra as manifestações.
Diante desses acontecimentos, não foram poucos aqueles que se apressaram em comemorar a morte do partido, se esquecendo, contudo, de enterrar o defunto. A despeito do que muitos esperavam, frente a uma crise de confiança generalizada no sistema de representação política, o PT foi o partido que mais cresceu em 2018 (24% segundo pesquisa Datafolha). Se a popularidade inabalável de Lula não chega a ser uma surpresa, a do PT pode espantar, principalmente porque o antipetismo foi uma das forças políticas mais vitoriosas das últimas eleições.
Uma explicação possível para esse dado foi oferecida por Celso Rocha de Barros em artigo recente para a Folha de São Paulo [5]. Ao se concentrar nos ataques radicais contra a esquerda, a direita acabou se esquecendo de oferecer alternativas. Radicais de direita deram seu showzinho, gritaram, espernearam, e quando finalmente conseguiram a atenção dos pobres brasileiros, ofereceram Michel Temer, o ser humano mais impopular da história política nacional. Junta-se a isso a percepção cada vez mais generalizada dos efeitos politicamente arbitrários da operação Lava Jato e o direcionamento ideológico que o PT dá aos sentidos do impeachment\golpe, para aumentar o sentimento de indignação do eleitorado petista e seus simpatizantes.
Ou seja, uma vez que a direita não conseguiu se mostrar melhor que a esquerda em nada, dando mostras claras de arbitrariedade e incompetência, e ainda esfacelando um punhado de sonhos pelo caminho (falsos ou não), o PT volta a aparecer como uma alternativa razoável, sobretudo porque o principal camisa dez do jogo eleitoral está no seu time. Por outro lado, o crescimento do partido não deixa de ser outro aspecto da crise política, e uma eventual vitória do PT sem Lula é mais ou menos como a seleção brasileira entrando em campo sem Neymar. Pior do que isso: a eventual ausência do craque do time pode acabar servindo como mecanismo de compensação ideológica, ao ocultar o dado bem mais grave de que na atual conjuntura o Brasil também não venceria nem mesmo jogando em casa, com o time completo e dois homens a mais.
Notas:
[1] Salva a internet. Artigo de Hossein Derakhshan.
[2] Em defesa da obra. Artigo de Bernardo Carvalho.
[3] Bolsonaro e a autoverdade. Artigo de Eliane Brum.
[4] O cálculo caudilhesco e a falta de projetos para o país. Entrevista especial com Idelber Avelar. Entrevista de Patricia Fachin.
[5] Eleitores de Lula estão compreensivelmente irritados. Artigo de Celso Rocha de Barros.
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O cenário político desolador, a antipolítica das redes e a performance das candidaturas. Entrevista especial com Acauam Oliveira - Instituto Humanitas Unisinos - IHU