27 Setembro 2018
Após o episódio do atentado a Bolsonaro, os debates pré-eleitorais esquentaram mais ainda e o sentimento de polarização em torno do candidato ultradireitista aumentou. Com a subida de Fernando Haddad nas pesquisas, a expectativa de um segundo turno com uma versão radicalizada em relação às polarizações “petucanas” se afirmou.
A opinião é de Moysés Pinto Neto, em entrevista de Gabriel Brito e publicada por Correio da Cidadania, 25-09-2018.
“(Ciro e Marina) de ponto de vista mais geral da esquerda, são excelentes candidaturas porque explicitam as duas tendências internas do lulismo. Ciro, o desenvolvimentismo, a retomada do emprego, da indústria, inclusive no seu aspecto ruim de ignorar a pauta ambiental e indígena. Marina, um experimentalismo que combina políticas sociais e ortodoxia econômica, algo próximo do que Nancy Fraser chama ‘neoliberalismo progressista’”, afirmou.
No entanto, parece difícil escaparmos de mais um segundo termo pautado por noções empobrecidas de esquerda e direita, o que concentra as discussões em torno das características das duas candidaturas que lideram as pesquisas. Sobre o programa econômico da chapa militar do PSL, é enfático.
“A mais pura repetição do pinochetismo. Tecnocratas econômicos voltados para deixar os ricos mais ricos resolvem instrumentalizar políticos autoritários para impor, na marra, sua agenda econômica. Isso se combina ao populismo autoritário de Bolsonaro que, fazendo da comicidade sua própria forma de dizer ‘eu sou como você’, consegue produzir uma nuvem afetiva ao seu redor”, afirmou o também professor do Programa de Pós-Graduação em Educação da Ulbra.
O filósofo acredita que há, sim, a eclosão de uma onda fascista, contraface mundial a movimentos “cidadanistas”. No entanto, afirma que combater tal ameaça não é objetivo do petismo, que visa sua manutenção como força hegemônica para além de qualquer projeto nacional renovado. No fim das contas, Moysés acredita que patinaremos em torno de uma campanha despolitizada e movida a ódios que só aumentarão os impasses pelos quais passa o país.
“Há várias grandes necessidades, como previdência, legislação trabalhista e política fiscal, sendo debatidas com bastante afinco. Mas outras bem sérias, como educação e projeto para o século 21, nem conseguiram entrar no debate. Os dois grandes desafios que se colocam – a construção de um modelo de crescimento que não seja inviável do ponto de vista ecológico e a Quarta Revolução Industrial – estão a quilômetros do debate. Nesse sentido, o populismo promove a infantilização das questões numa luta ‘nós contra eles’ e elimina a consciência da complexidade dos problemas”.
Como avalia as repercussões eleitorais da facada em Jair Bolsonaro, candidato a presidente do PSL, em evento em Juiz de Fora?
Uma notícia terrível para a democracia brasileira. Primeiro, porque explicita o clima de violência política que se tornou dominante nos últimos anos e a cada mês parece subir um grau de temperatura. Tivemos antes os tiros no ônibus de Lula, muitas agressões verbais e físicas espalhadas em múltiplos eventos e o mais grave de todos: o assassinato de Marielle Franco. Ser democrático significa reconhecer o pluralismo como elemento constitutivo do regime político.
Hoje, isso parece cada vez mais difícil para cada uma das forças políticas. Além disso, o tipo de pensamento do esfaqueador foi muito típico de um ambiente de paranoia e conspiracionismo que tende a produzir o desengajamento dos mais lúcidos, dada a toxicidade do debate e aparecimento dessas figuras-zumbi que parecem conduzidas por forças enlouquecidas. Uma certa dimensão delirante da política cujo efeito pode ser cair numa guerra civil ou, no mínimo, uma multiplicidade de atentados do gênero.
Segundo, porque enfraquece o debate eleitoral, blindando Bolsonaro da inquirição necessária que, para muitos, iria o enfraquecer. Ao ter de expor suas ideias extremistas, Bolsonaro se veria constantemente forçado a uma posição antipática e sectária. Quando da facada, seu crescimento tinha estancado e a rejeição aumentava. Após, sendo vítima, passou a ser visto com menos antipatia e criou uma blindagem ainda maior com seu séquito de fanáticos.
O que comentar do episódio em si?
Confesso que imaginava que era mais possível o inverso, ou seja, alguém guiado pelas ideias paranoicas da extrema-direita produzir um atentado como esse. O clima delirante generalizado estimula tal tipo de ação. Seja contra quem for, a violência precisa ser repudiada. É essa grandeza que Bolsonaro e sua tropa de fanáticos não têm, uma vez que não agem por princípios, mas como exército em guerra contra um inimigo.
Repudio a violência política independentemente de quem a provoca e quem a sofre. A linguagem democrática não cabe na esfera da agressão física ou verbal. O diálogo é nossa única ferramenta, mesmo que diálogo não queira dizer consenso.
O que pensa da postura do PT em segurar no limite a candidatura de Lula? E o que pensa da chapa Fernando Haddad-Manuela D’Ávila?
Mostra que o projeto petista é, antes de tudo, manter-se como principal partido nacional. A perspectiva do PT sempre foi esticar a corda o máximo possível. No ápice do lulismo, o PT sabia que acumulava forças que poderiam ser queimadas em um futuro próximo. Sobrava capital político.
Esse capital foi se dilacerando com o desastroso governo Dilma (em seus dois mandatos). Na época do segundo turno de 2014, uma enorme fatia do eleitorado já declarava “voto crítico”, o que significava que votavam mais para evitar Aécio que acreditando, propriamente, que a primeira gestão de Dilma pudesse ser chancelada. Propunha-se a “virada à esquerda” certamente pensando na miséria política que foi o primeiro mandato, quando figuras como Marco Feliciano e Eduardo Cunha acabaram se tornando lideranças no Congresso graças ao desinteresse economicista da mandatária e sua bancada.
No segundo mandato, com o estelionato eleitoral (uma campanha pautada por uma posição mais à esquerda – para contrastar com Marina Silva – seguida da aplicação de todas as medidas que foram negadas e imputadas aos adversários), o capital despencou ainda mais.
Mas ainda havia a cartada Lula. A extrema popularidade (assim como extrema rejeição) do ex-presidente ainda dava margem para muita competitividade, bem acima da força de Ciro Gomes e Marina Silva. Assim, o PT resolveu queimar até o último fio seu capital político, usando a cartada Lula até o fim.
Pode-se dizer que é uma luta ética contra a prisão injusta ou contra o golpe, mas sabemos que isso é mais jogo de cena para a militância que qualquer outra coisa. A força do PT está na sua face movimento, que apesar de todas as crises continua ainda inigualável no Brasil. A face partido, no entanto, é absolutamente pragmática e alia-se a quem for necessário. É maquiavélico no sentido neutro da palavra. A estratégia levou em consideração os dois aspectos e conseguiu retomar, com relativa facilidade, a hegemonia da esquerda.
Como analisa as demais candidaturas até este momento da corrida? Ciro ou Marina são mesmo alternativas interessantes para contrapor a agenda dos últimos anos?
De um ponto de vista mais geral da esquerda, considero que são excelentes candidaturas porque explicitam as duas tendências internas do lulismo. Ciro, o desenvolvimentismo, a retomada do emprego, da indústria, inclusive no seu aspecto ruim de ignorar a pauta ambiental e indígena. Marina, um experimentalismo que combina políticas sociais e ortodoxia econômica, algo próximo do que Nancy Fraser chama “neoliberalismo progressista”.
Ciro é Lula II (2008-10) e Dilma; Marina é Lula I (2003-07), com mais austeridade fiscal e aposta nas invenções no campo fora da macroeconomia. Seriam duas lideranças altamente qualificadas para suceder o PT se o partido não tivesse a compulsão por só admitir a unidade da esquerda sob sua liderança.
A candidatura Boulos, do PSOL, esbarra nas ambiguidades do PSOL. A presença do Sonia Guajajara é a melhor notícia da eleição, mas ao mesmo tempo sabemos que também existe um desenvolvimentismo hardcore no PSOL. O próprio Boulos, além disso, ficou preso no dilema em relação à candidatura Lula e não conseguiu se colocar como linha de frente de um projeto de futuro.
Quanto à direita que se apresenta menos radical, acredita que Alckmin, Amoêdo e Meirelles teriam grandes diferenças?
São diferentes. Alckmin é um social-liberal de perfil conservador que agora perdeu um pouco das amarras que existiam na resistência a políticas mais liberais na economia. Com o crescimento desse discurso por meio de diversos órgãos de emissão que trazem ao Brasil o discurso thatcherista, os tucanos se viram mais à vontade com a assunção de uma linha mais privatista.
Meirelles, por sua vez, tentou colocar uma candidatura full liberal, isto é, liberal no comportamento (expressando posições sobre drogas e aborto) e na economia. Curiosamente, engajou-se no lulismo e tentou se apresentar como alternativa pragmática.
Finalmente, Amoêdo sairá maior por consolidar um campo mais forte do ponto de vista ideológico – algo como um PSOL da direita – em torno ao liberalismo econômico. Apesar disso, adota o modelo norte-americano do “liberal conservador” e, caso um dia cresça mesmo, pode ser alvejado em múltiplos aspectos.
Voltando a Bolsonaro, o que pensa de seu programa econômico e da figura de Paulo Guedes?
A mais pura repetição do pinochetismo. Tecnocratas econômicos voltados para deixar os ricos mais ricos resolvem instrumentalizar políticos autoritários para impor, na marra, sua agenda econômica. Isso se combina ao populismo autoritário de Bolsonaro que, fazendo da comicidade sua própria forma de dizer “eu sou como você”, consegue produzir uma nuvem afetiva ao seu redor.
A responsabilidade política de Paulo Guedes é imensa, já que a campanha de Bolsonaro passaria por significativas dificuldades sem um fiador no mercado. Nunca poderemos esquecer o papel que esse senhor e seu programa produziram para a crise da democracia no Brasil.
Sobre a esquerda, como a analisa nesta corrida eleitoral e também em sua atuação desde o impeachment?
Completamente fragmentada. Muitos dão por suficiente fazer um diagnóstico psicologista de que seriam vaidades e ressentimentos que nos separariam. Há, no entanto, diferenças reais em termos de projeto, diagnóstico e estratégia. Não vejo muita chance de se produzir uma unificação.
O que fica mais claro desde o impeachment é que a direita encontrou uma linguagem mais permeável ao senso comum – que envolve punitivismo e crítica ao governo – que a esquerda. Stuart Hall, lá nos anos 70, já destrinchava essa situação mostrando como a hegemonia da direita é conquistada não apenas desde cima, como o discurso contra a financeirização costuma pensar, mas também desde baixo, com uma subjetivação que consegue se conectar com a vida das pessoas.
Por ora, a luta que sabíamos ser a decisiva nesses últimos anos, a chamada “classe C”, “batalhadores” ou “nova classe média”, está sendo ideologicamente perdida por mil e uma razões.
Existe, além disso, um enorme diferendo entre nós: para uns, a prioridade é o retorno do PT ao poder para “vingar o golpe”, redimir Lula e voltar aos quadros da década passada. Para outros, o alarme antifascista soa mais alto e nos levaria a recorrer a todas as estratégias possíveis para evitá-lo. Entre uma e outra, nossa força mais potente, o PT, está sem dúvida ao lado da redenção. O PT sempre restaura a polarização porque precisa do antipetismo para manter-se como eixo da política.
O risco que Ciro e Marina representam é exatamente esse: deslocar o PT do eixo e torná-lo uma força política entre outras numa cisão maior. Por isso, apesar da rivalidade, o PT sabe que o antipetismo é um verso dialético necessário para afirmação da sua hegemonia. Ele combate o antipetismo, mas não pode o atravessar para outra configuração, como desde 2013 diversas vezes foi ensaiado.
Tanto pela estratégia pragmática quanto na sua face movimento, mesmo que perca, o PT está mais preocupado em falar para a “História”, com H maiúsculo, que propriamente em evitar o fascismo. Para o restante da esquerda, é desesperador.
Considera que as grandes necessidades nacionais estão devidamente em debate, ao menos em alguma das candidaturas? Quais devem ser as prioridades políticas brasileiras?
Há várias grandes necessidades, como previdência, legislação trabalhista e política fiscal, sendo debatidas com bastante afinco. Mas outras bem sérias, como educação e projeto para o século 21, nem conseguiram entrar no debate. Os dois grandes desafios que se colocam – a construção de um modelo de crescimento que não seja inviável do ponto de vista ecológico e a Quarta Revolução Industrial – estão a quilômetros do debate.
Nesse sentido, o populismo serve para enfraquecer ainda tais debates. Promove a infantilização das questões numa luta “nós contra eles” e acaba, assim, eliminando a consciência da complexidade dos problemas.
Há de fato uma “onda fascista” em eclosão no Brasil? Refletiria ventos globais?
Sim, há uma onda fascista, embora nem todas as pessoas que adotam o candidato de extrema-direita sejam fascistas. Mas que existe uma germinação micropolítica de ideias de unidade, de destruição da diferença e uma certa sede de destruição das instituições somada ao culto ao líder, parece evidente. Grupos sociais que vinham perdendo espaço, ou ao menos ficando em casa, estão cada vez mais visíveis.
Assim como a onda anterior, chamada por alguns de “cidadanista”, e como tudo no mundo atual, ela se conecta a movimentos globais que ameaçam criar um grande Armagedon por todo planeta, restaurando ideias e hierarquias mortas em novas configurações. Putin é o arquiteto desse novo mundo.
O que vislumbra para o país após as eleições? Seguiremos em crise profunda?
É difícil imaginar que escaparemos, num futuro próximo, de perder nossas liberdades.
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"O PT sabe que precisa do antipetismo para manter sua hegemonia política". Entrevista com Moysés Pinto Neto - Instituto Humanitas Unisinos - IHU