03 Outubro 2018
"A eleição deste ano é marcada pela efervescência de politização e descontentamento que emergiu com força em 2013 no Brasil. Podemos dizer que ela encena uma nova coreografia do que conhecemos por luta de classes”, diz Alana Moraes à IHU On-Line, na entrevista a seguir concedida por e-mail. Segundo ela, na eleição deste ano existe, de um lado, "uma disputa intraelites” acerca dos “rumos do neoliberalismo” e, de outro, "todos aqueles que conseguem se liberar do corpo neurótico, aqueles e aquelas que insistem em uma vida onde o desejo ainda é possível: mulheres, pessoas LGBTQI, negros, artistas". Para esse segundo grupo, diz, “ser de esquerda é, sobretudo, desejar a liberdade e praticá-la — são aqueles que escaparam do regime subjetivo colonial-capitalista e fazem do corpo um campo de batalha".
Alana também comenta a reação de parte das mulheres brasileiras nas eleições deste ano. “O que está acontecendo é um levante global de mulheres e que tem a ver com essa nova luta de classes. Do nosso lado estão aqueles e aquelas que sentem na pele, mas que habitam o mal-estar e que procuram saídas coletivas para a crise na qual todos nós fomos jogadas, ao contrário daqueles que fazem do mal-estar um desejo de destruição do outro”, diz. Ela frisa ainda que o “feminismo é uma outra língua política, é uma experimentação radical de agir politicamente desde o corpo, do mal-estar, do prazer e do desejo de vida”.
Alana Moraes (Foto: Anielle Silva | IHU)
Alana Moraes é graduada em Antropologia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ, mestra em Sociologia e Antropologia pela mesma universidade, e atualmente cursa doutorado no Programa em Antropologia Social do Museu Nacional da UFRJ. É feminista e integrante do coletivo Urucum pesquisa-luta.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Qual sua avaliação da conjuntura eleitoral, especialmente nesta última semana antes da votação?
Alana Moraes - A eleição de 2018 vai ser marcada por um transbordamento das tensões sociais — uma efervescência de politização e descontentamento que emergiu com força em 2013 no Brasil. Podemos dizer que ela encena uma nova coreografia do que conhecemos por “luta de classes”. Isso porque o conflito capital X trabalho na forma pura, ou seja, a figura de um patrão contra a figura do trabalhador (quase sempre um homem branco ainda que pobre), já não dá mais conta de explicar nem a dinâmica de acumulação do capital, nem o próprio ritmo das lutas, daqueles e daquelas que produzem resistências cotidianas.
O que temos hoje, por um lado, é uma disputa intraelites dos rumos do neoliberalismo. Aqui no Brasil isso está muito claro: de um lado, um neoliberalismo estabelecido, aquele que articulou o golpe jurídico-parlamentar contra a Dilma; de outro, a entrada em cena de um neoliberalismo ultraconservador que flerta não apenas com elementos de um fascismo clássico, mas também de um colonialismo puro, racista, patriarcal e etnocida. Trata-se de uma movimentação de exceções incontidas: defesa de tortura, discurso de violência misógina e de racismo explícito. A execução da Marielle e a prisão do Lula são imagens fortes dessa movimentação de exceções. É um cenário que, nós feministas, estamos intuindo já faz tempo. O neoliberalismo foi desenhado a partir de dispositivos ultra-autoritários. O Paulo Guedes, guru econômico do Bolsonaro, esteve na equipe do Pinochet — um dos grandes experimentadores desse novo regime.
Quando dizíamos que grande parte da esquerda estava distraída dizendo que a luta contra o neoliberalismo era uma luta que se dava no plano econômico contra um avanço do “estado mínimo”, era isto que queríamos dizer: o neoliberalismo, na verdade, atua a partir de um fortalecimento dos dispositivos estatais autoritários e violentos (encarceramento, disseminação de punitivismos de todo o tipo, explosão do feminicídio e do genocídio do povo negro) e atua também em um plano imanente, fabricando subjetividades, alimentando no plano pré-individual uma sociedade neurótica com medo da diferença, a crença no fracasso como uma incapacidade individual que joga as pessoas em uma competição permanente, uns contra os outros. Nós dizíamos isso porque sentimos na pele.
Bolsonaro é o resultado da organização desse projeto. A masculinidade branca desestabilizada pelas mudanças que aconteceram no Brasil na última década e que está disposta a tudo para recuperar sua supremacia, seu delírio de comando. Não é à toa que os inimigos para eles são todos aqueles que conseguem se liberar do corpo neurótico, aqueles e aquelas que insistem em uma vida onde o desejo ainda é possível: mulheres, pessoas LGBTQI, negros, artistas. Para eles, “ser de esquerda” é, sobretudo, desejar a liberdade e praticá-la — são aqueles que escaparam do regime subjetivo colonial-capitalista e fazem do corpo um campo de batalha, constroem lugares de refúgio e de prazer apesar de todas as mazelas do neoliberalismo.
Esse novo conservadorismo atua no plano da reação e do desejo de morte — já que toda a pulsão de vida foi deles arrancada. Então a luta de classes hoje se dá, sobretudo, nessa arena subjetiva, em uma arena do corpo também: um corpo neurótico e moribundo, paranoico, que sente toda a crise do neoliberalismo de forma a canalizar suas frustrações contra aqueles que contornam de alguma forma essa miséria subjetiva. É uma luta entre corpos. Por isso o corpo da Marielle foi atingido, por isso prenderam o Lula também — porque são corpos que precisam ser neutralizados, exterminados.
Eu acho curioso que uma das principais ofensas acionadas por eles é essa imagem de “vagabundo”. O vagabundo é o militante sem-teto, é o artista, é alguém que faz da vida uma luta permanente, é o professor universitário, são as feministas, os que fazem cultura nas periferias. Quem é o vagabundo? Justamente é aquele que se libertou da oração miserável do capitalismo e seu modo de vida: trabalho, casamento, comprometimento com o “sucesso individual”. Sempre escuto de pessoas na rua, antes de entrar em uma ocupação do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto - MTST: “nossa, aí só tem vagabundo. Ficam o dia todo sem fazer nada, só sabem fazer farra”. Os homens brancos da esquerda continuam insistindo em um plano de “ideias desincorporadas”, em um plano discursivo, mas a explosão do feminismo vem indicando que a luta se faz com o corpo todo, quando nos colocamos nas ruas, nos territórios compartilhados, quando compartilhamos um cotidiano e criamos laços de interdependência, quando compreendemos que resistir é também criar tempo livre.
IHU On-Line - Que avaliação geral faz da última pesquisa Datafolha acerca das intenções de voto para presidente, em que Bolsonaro lidera com 28% das intenções, seguido de Haddad, com 22%, Ciro com 11%, e Alckmin com 10%? Como interpreta esses dados?
Alana Moraes - Bom, tem muita coisa para ser interpretada nessas pesquisas, mas a mais fácil é que o golpe jurídico-parlamentar fracassou. Eles ganharam, mas não levaram. O bloco do golpe se articulou a partir de uma tática bem nítida: uma oportunidade para tirar o PT do governo. Mas eles não tinham estratégia. Não sabiam e não sabem qual o projeto político que une esse bloco uma vez no governo. A direita no Brasil se transformou em uma força meramente destituinte, mas sem nenhum poder de convocação para uma nova ordem. É o resultado do ódio de classe, do desejo de morte. Eles só sabem o que querem destruir: direitos, mulheres, negros, gays, mas não criam nada. Por isso o armamento é o símbolo das paixões que movem o Bolsonaro. “Primeiro a gente tira eles”, e depois? Não teve depois, nunca teve. Eles se fragmentaram e entraram em uma disputa entre eles.
A prisão do Lula ainda trouxe o PT para o jogo novamente — um tiro pela culatra, para usar uma imagem com que eles se identificam. O lulismo se deslocou de um lugar de pactos e conciliação, para esse lugar de poder e perigo. Lula tornou-se perigoso outra vez, tornou-se antissistêmico, um candidato perseguido e essa nova condição atrai a classe do lulismo, os mais pobres que viram suas vidas melhorando no governo Lula, mas também uma nova geração insatisfeita com o sistema, que identifica algo de desobediente na figura do Lula.
Curioso que podemos ter um segundo turno muito parecido com o que foi o plebiscito chileno que derrotou Pinochet: de um lado, uma campanha movida pelas paixões de morte do pinochetismo, pelos corpos neuróticos, de outro, uma campanha movida pelas paixões de vida, alegres, pelo desejo de liberdade. Vejam como essa parece ser a coreografia da luta de classes no neoliberalismo desde o pinochetismo.
IHU On-Line - Quais são as razões, na sua avaliação, da baixíssima intenção de votos na candidatura do PSOL à presidência? O partido ainda não se consolidou como uma força de esquerda para enfrentar o PT?
Alana Moraes - Essa é a melhor candidatura do PSOL à presidência da República desde a sua fundação. Do ponto de vista programático, é uma campanha que conseguiu oferecer uma síntese para questões urgentes que podem conformar hoje um novo campo radical. Nesse sentido, é um programa muito inovador. Pela primeira vez temos a defesa do desencarceramento em uma chapa presidencial, a defesa da legalização do aborto, do desmatamento zero, é um programa que assume a pauta da memória e da verdade como fundamental para neutralizar os dispositivos autoritários do estado brasileiro, fala em desmilitarização das polícias, o primeiro programa na história que apresenta uma proposta de um sistema nacional de democracia direta, a primeira vez que temos uma chapa presidencial com uma mulher indígena — tudo isso é muito novo e no meu ponto de vista é resultado do levante de 2013. É um programa que conseguiu assumir as pautas das ruas. E também é uma sinalização importante do PSOL no sentido de se aproximar de uma experiência periférica e popular. Mas a história é feita também de apostas a longo prazo. Demoramos 518 anos para assumir a pauta indígena na esquerda.
Essa é uma eleição marcada pela polarização do petismo contra o antipetismo — são as consequências não previstas da luta de classes, temos que lidar com elas. Não acho que seja uma polarização artificial porque, de fato, ela organiza paixões na sociedade brasileira. Mas acredito que o PSOL se posicionou muito bem na luta contra o golpe e agora na candidatura do Guilherme [Boulos] que aponta para a superação do lulismo e suas contradições, mas sem abandonar a perspectiva de construir um projeto popular, inclusive em aliança com o petismo. A candidatura do Guilherme é também a candidatura de milhares de mulheres que constroem cotidianamente a luta por uma vida vivida a todo custo nas ocupações urbanas, isso não é desprezível em um país como o nosso.
IHU On-Line - Como o PSOL está se articulando nesta eleição diante das disputas à esquerda?
Alana Moraes - O PSOL também está experimentando nesse mar de instabilidade institucional e democrática. Com todos os limites internos, o PSOL foi o partido de esquerda que produziu as figuras mais interessantes dentro da esquerda organizada, de uma nova geração: a Áurea Carolina e a experiência inovadora de um mandato coletivo em Belo Horizonte, a própria Marielle e o debate sobre o racismo cotidiano da polícia e o avanço da militarização das nossas cidades, a experiência de Belém. É um partido que vem apresentando candidaturas negras e populares no Brasil — muito por conta da luta dos próprios negros e negras internamente. Existe uma tensão interna que tem a ver com a própria disputa sobre o que é ser de esquerda hoje. De um lado, tendências que são mais apegadas às próprias estruturas do partido, de outro, forças que apostam mais do lado de fora, que sentem a desconfiança generalizada em relação às estruturas partidárias.
Tem setores no PSOL que querem avançar nos problemas do século XXI, nas pautas do movimento negro, feminista, nas lutas da cidade; outros estão mais apegados no século XX e em um marxismo menos ventilado. Assim como em outros partidos de esquerda, o PSOL está lidando com o esgotamento da forma partido. Como deixar de ser um partido de parlamentares e suas correntes muitas vezes consumidas por disputas internas e autofágicas para tornar-se um lugar de confluências, mais aberto e arejado? É uma luta das forças centrípetas contra as centrífugas — que está acontecendo em vários espaços da esquerda dita organizada. O PSOL ainda tem que enfrentar a ameaça da cláusula de barreira que está pairando nessa eleição — então não se trata de uma resposta fácil.
Minha opinião é que o PSOL vai se transformar muito depois desse processo eleitoral, mas precisará sair dele com uma aposta política de enraizamento na sociedade. Não dá mais para comprar a ficção das estratégias de marketing de rede como atalho de uma politização que precisa estar na vida real, no dia a dia. Não temos mais atalhos, o que nos resta é praticar incansavelmente o que acreditamos. Eu acho que o PSOL pode ser um lugar importante de articulação de um municipalismo para 2020 com novas pautas de radicalização democrática, direito à cidade, enfrentamento à militarização, direito à moradia — produzir confluências territoriais, alianças mais do que guerras programáticas, convocar o feminismo para esse fazer-cidade. Vai depender de uma aposta política.
IHU On-Line - Como você avalia o papel das mulheres nesta eleição e as manifestações do último final de semana, contra Bolsonaro?
Alana Moraes - Paul Preciado diz que precisamos superar a luta pela “reapropriação dos meios de produção” para uma “reapropriação dos meios de reprodução”, uma reapropriação do “saber-do-corpo”, dos afetos, das nossas capacidades de produzir uma infraestrutura para a vida, de produzir alianças, curas coletivas. Isso porque o capitalismo financeirizado não atua apenas nos expropriando economicamente, mas subjetivamente, imaginativamente. Ou seja, precisamos voltar à vida, ao corpo. E nós, mulheres, nunca saímos daqui — por forças das próprias estruturas, aliás. Agora com o desemprego crescente, o avanço da financeirização, do endividamento, o capitalismo se apropria da vida como um todo, não apenas no “local de trabalho”, ele se apropria do tempo, do que entendemos como vida boa. A imagem da classe trabalhadora como uma classe masculina, branca, operária nunca foi tão frágil.
Então, se de um lado temos atuando uma necropolítica, esse neoliberalismo que produz suas próprias crises para permanecer em uma crescente de violência e autoritarismo, de outro temos práticas radicais de vitapolítica, produzida por aquelas que fazem da luta a própria vida. A luta de classes hoje tem essa imagem das forças de morte contra as forças de vida. O que está acontecendo é um levante global de mulheres e que tem a ver com essa nova luta de classes. Do nosso lado estão aqueles e aquelas que sentem na pele, mas que habitam o mal-estar e que procuram saídas coletivas para a crise na qual todos nós fomos jogadas, ao contrário daqueles que fazem do mal-estar um desejo de destruição do outro.
O feminismo é uma revolução feita por outros meios e, eu diria, a que teve mais êxito. De certa forma, nos afastamos desse imaginário ocidental e masculino de que fazer revolução é operar uma ruptura radical com o mundo que vivemos, é fazer um grande dia seguinte, começar do zero. Nós nunca pudemos romper com o mundo que vivemos, mas ao contrário, nós somos as que têm que permanecer para que tudo não desabe. Isso quer dizer que sempre tivemos um compromisso com o mundo que temos, com todas as suas desgraças e contradições. Nossa revolução tem a ver com uma habilidade para composições e recomposições, com práticas de fazer relação, de insistir em uma economia de confianças, em uma prática constante de interdependência — fomos exiladas do pacto da cidadania moderna, fomos exiladas do “mundo do trabalho assalariado”, fomos exiladas da política partidária feita pelos dirigentes homens, então aprendemos a viver no exílio. Com a radicalidade da crise que vivemos — que não é só uma crise econômica, mas também civilizacional — somos nós que estamos preparadas e dispostas a fazer a recomposição de mundos possíveis, a instituir nas relações e nas curas contra a feitiçaria do neoliberalismo.
O feminismo é uma outra língua política, é uma experimentação radical de agir politicamente desde o corpo, do mal-estar, do prazer e do desejo de vida. O neoliberalismo sabe que somos as verdadeiras inimigas e por isso eles declaram guerra contra as mulheres. Nós somos as que constroem as alianças, a possibilidade de lutarmos juntos, de pensarmos juntos e de irmos fazendo outros corpos para nós mesmos — ao contrário do que fabrica a subjetividade neoliberal de indivíduos autossuficientes, com seus projetos intelectuais e políticos próprios. Nós nunca tivemos outra escolha senão sobreviver juntas, então é isso que vamos fazer com toda a nossa força. Fazer da vida uma vida vivível a todo custo contra a política de morte e destruição.
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A polarização política, as paixões da sociedade e a disputa pelos rumos do neoliberalismo. Entrevista especial com Alana Moraes - Instituto Humanitas Unisinos - IHU