02 Julho 2018
“Os períodos pós-conciliares, em sua maioria, têm sido confusos, mas a desordem deste período foi agravada por novas ansiedades globais em torno de ruína ambiental, guerra nuclear e globalização”, constata Massimo Faggioli, professor de teologia e estudos religiosos na Universidade de Villanova, autor de Catholicism and Citizenship. Political Cultures of the Church in the Twenty-First Century [O catolicismo e a cidadania. Culturas políticas da Igreja no século XXI] (Liturgical Press, 2017), em artigo publicado por Commonweal, 28-06-2018. A tradução é de Walter O. Schlupp.
Segundo ele, “A atitude do Vaticano II em relação ao passado da igreja era complexa e ambivalente. Está claro, pela maneira como o concílio lidou com a questão das concordatas e das nomeações de bispos, que ainda havia o desejo de manter certas características da antiga relação entre a igreja e o poder político”
“Mas os ensinamentos do Vaticano II – continua - sobre liberdade religiosa, ecumenismo e religiões não-cristãs representaram uma ruptura com aspectos-chave da teologia que haviam sustentado o cristianismo. Quanto à eclesiologia, no parágrafo 8 da Lumen gentium, o Vaticano II analisou a maneira como o próprio Jesus lidou com as questões de liberdade e coerção, especialmente a coerção religiosa”.
“Não há dúvida de que o cristianismo ainda precisa criar uma teologia política – conclui Massimo Faggioli - capaz de lidar com a secularidade, os perigos do populismo, a desigualdade, a mudança climática e o transumanismo, entre outras questões prementes. Precisa de uma nova teologia do bem comum, que seja adequada aos problemas e possibilidades do nosso próprio tempo. Seria um delírio, entretanto, pensar que encontraremos o que buscamos, ou o que precisamos, em uma ressurreição do cristianismo pré-moderno”.
A atual onda de antiliberalismo no Ocidente e na Igreja Católica está trazendo à tona cinquenta anos de desapontamentos. Só um cego não notaria o fato de que o período pós-Vaticano-II – aquilo que Karl Rahner chamou de início da "Igreja mundial", uma nova era na história do cristianismo – tem sido confuso, cheio de tensões e incerteza. Os períodos pós-conciliares, em sua maioria, têm sido confusos, mas a desordem deste período foi agravada por novas ansiedades globais em torno de ruína ambiental, guerra nuclear e globalização.
O novo antiliberalismo surge de uma tentação bastante antiga, que é a nostalgia. Os antiliberais sonham com um novo cristianismo que restaure a igreja a uma posição de domínio oficial imposta pelo Estado. São alérgicos ao pluralismo, especialmente cultural e religioso. Isso está presente na agenda de Trump e nos governos de direita ora no poder na Itália, Áustria, Hungria e Polônia, bem como no Estado Livre da Bavária, na Federação Alemã. O recente encontro entre o cardeal Raymond Burke e o novo ministro italiano do interior, Matteo Salvini, é emblemático para esse realinhamento. Salvini é conhecido não só por suas ameaças de inconstitucional repressão policial-estatal contra migrantes e ciganos na Itália, mas também por declarar que Bento XVI ainda é seu papa.
Algumas pessoas na Europa e nos Estados Unidos ainda não aceitaram o fato de que vivemos numa igreja universal (world church) que representa uma evolução histórica para além do cristianismo medieval. O estado de negação por parte dos que continuam acreditando ser possível o retorno ao cristianismo é impulsionado por muitos fatores, principalmente pelo retorno do mito de que toda a categoria do “secular” seria uma invenção liberal, o mito de que "antigamente não existia o secular. "
Naturalmente não são novidade políticos populistas que usam a religião para apelar para a violência. O maior problema é a legitimidade que a nova geração de católicos antiliberais parece disposta a conferir a esse tipo de ira populista, na intenção de superar os atuais desafios políticos com um retorno ao passado – como se as falhas do liberalismo automaticamente fizessem o cristianismo novamente possível. O fato puro e simples é que o cristianismo falhou. Os setores geralmente denominados "catolicismo liberal" e "teologia liberal" reconhecem isso.
Em importante livro publicado este ano na Itália e na Alemanha, a jovem historiadora da igreja Gianmaria Zamagni narra a história moderna do debate sobre a "era constantiniana" do catolicismo europeu. A crítica do modelo constantiniano do cristianismo começa pelo menos trinta anos antes do Vaticano II. Em 1932, no primeiro volume da Kirchliche Dogmatik, Karl Barth identificou Constantino como a razão do declínio do cristianismo. Na primavera de 1963, quando estavam em andamento os debates sobre o que viria a ser a Gaudium et spes, o dominicano francês Marie-Dominique Chenu também chamou a atenção para os problemas do constantinianismo num artigo intitulado "A Igreja e o Mundo". Barth e Chenu não foram casos isolados. Friederich Heer, Erik Peterson, Ernesto Buonaiuti, Étienne Gilson, Jacques Maritain, Emmanuel Mounier e Yves Congar apresentaram argumentos semelhantes.
A atitude do Vaticano II em relação ao passado da igreja era complexa e ambivalente. Está claro, pela maneira como o concílio lidou com a questão das concordatas e das nomeações de bispos, que ainda havia o desejo de manter certas características da antiga relação entre a igreja e o poder político. Mas os ensinamentos do Vaticano II sobre liberdade religiosa, ecumenismo e religiões não-cristãs representaram uma ruptura com aspectos-chave da teologia que haviam sustentado o cristianismo. Quanto à eclesiologia, no parágrafo 8 da Lumen gentium, o Vaticano II analisou a maneira como o próprio Jesus lidou com as questões de liberdade e coerção, especialmente a coerção religiosa: “Assim como Cristo realizou a obra de redenção na pobreza e sob perseguição, a Igreja também é chamada a seguir o mesmo caminho que poderia comunicar os frutos da salvação aos homens... [A Igreja] ‘como um estranho em terra estrangeira, avança em meio às perseguições do mundo e às consolações de Deus’, anunciando a cruz e a morte do Senhor até que Ele venha.”
De todas as ambivalências e, por vezes, ambiguidades intencionais dos documentos do Vaticano II, o Concílio representou uma reavaliação da história da relação da Igreja com o poder político, especialmente no século XX. Os bispos e teólogos do Vaticano II proferiram um claro, embora geralmente implícito, julgamento moral e teológico sobre os esforços para lidar com a modernidade mediante redirecionamento do totalitarismo e o autoritarismo no sentido de proteger a igreja institucional e promover uma ordem social cristã. (Quantos dos defensores dos regimes autoritários na Europa antes da Segunda Guerra Mundial se tornaram, trinta ou quarenta anos depois, líderes do Vaticano II?)
Esse julgamento foi baseado, em parte, em nova percepção histórica dos mitos que alimentaram a postura antimoderna da igreja. Um deles foi o mito de uma conspiração judaica contra a igreja. E esse mito pernicioso se encaixava no mito triunfalista mais amplo sobre as glórias do cristianismo, que só precisavam ser recuperadas e renovadas. Esse foi o mito que o Papa João XXIII teve na mira no discurso de abertura do Concílio Vaticano II em 11 de outubro de 1962:
“No exercício diário de nosso ofício pastoral, às vezes temos que escutar, para nosso grande pesar, as vozes de pessoas que, embora ardendo de zelo, não estão dotadas de muito senso de discrição ou medida. Nestes tempos modernos, elas só conseguem enxergar prevaricação e ruína. Dizem que nossa era, em comparação com eras passadas, está piorando, e se comportam como se nada tivessem aprendido com a história, a qual não deixa de ser a mestre da vida. Comportam-se como se, na época dos antigos concílios, tudo fosse um triunfo completo para a ideia e a vida cristãs e para a liberdade religiosa cabível. Temos para nós que precisamos discordar dos profetas da tristeza, que sempre estão prevendo o desastre, como se o fim do mundo estivesse próximo…. Basta percorrer as páginas da história eclesiástica para observar com clareza como os próprios concílios ecumênicos, embora tenham sido uma sucessão de autênticas glórias para a Igreja Católica, muitas vezes estiveram acompanhados das mais sérias dificuldades e sofrimentos por causa de indevida ingerência por parte das autoridades civis. Os príncipes deste mundo, na verdade, às vezes com toda a sinceridade, pretendiam proteger a igreja. Entretanto, mais frequentemente, isso se deu não sem dano e perigo espiritual, já que o interesse deles era guiado por pontos de vista de uma política egoísta e perigosa.”[U1]
Tudo isso nos diz algo hoje. A recusa em aprender com a história parece ser um problema para a igreja agora, assim como foi em 1962. É preciso reconhecer que as rupturas globais da atualidade contestam diretamente algumas suposições do Vaticano II.
Quando os documentos conciliares discutem violência, por exemplo, eles nunca fazem referência à violência religiosa. Nesse sentido, o Vaticano II precisa de uma recontextualização radical. Mesmo assim, o concílio ainda tem algo importante a dizer aos católicos que “se comportam como se na época dos antigos concílios tudo fosse um triunfo completo para a ideia e vida cristãs e para a liberdade religiosa cabível.” Em algumas partes do mundo, onde o cristianismo costumava ser a única ou principal religião, mas agora é uma religião minoritária, alguns estão novamente ansiando pela restauração de um cristianismo idealizado. Eles precisam atentar para a advertência de João XXIII.
Voltar à Idade Média não é apenas uma impossibilidade prática - especialmente no "sul global", onde o cristianismo está crescendo. É também, e não menos importante, uma impossibilidade teológica. A renovação da teologia católica no século XX não foi essencialmente um retorno às fontes medievais, nem mesmo aos patriarcas da igreja; foi acima de tudo um retorno ao exemplo do próprio Jesus. Levar a sério esse exemplo, como faz Dignitatis humanae, é resistir a qualquer esforço visando impor o cristianismo coercitivamente. O cristianismo frequentemente deixava o indivíduo com muito pouco espaço para autodeterminação – pouca margem de escolha, por exemplo, sobre se e com quem se casar. Muitas vezes presumiu que as decisões mais importantes para a vida de uma pessoa seriam feitas preferencialmente pela família, pela comunidade, pela igreja ou pelo Estado. O cristianismo também forneceu pretexto teológico para guerras religiosas, pretexto agora evidentemente irreconciliável com o ensino católico.
Finalmente, o cristianismo contou com a identificação do catolicismo com a civilização europeia. Mas não é preciso ser europeu para ser católico, fato que se torna mais evidente a cada ano que passa. A romanitas não é mais uma característica essencial da cristandade católica - se é que já foi. A teologia do Vaticano II aponta para o Reino de Deus e não para uma igreja protegida por um establishment político, constitucional, social ou cultural.
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Estado de negação. Por que alguns católicos ainda tentam ressuscitar o cristianismo medieval - Instituto Humanitas Unisinos - IHU