14 Junho 2018
Os períodos como ministro, governador gaúcho e prefeito de Porto Alegre fazem com que Tarso Genro seja um figura notória para quem se interessa em política no Brasil. Hoje em dia, a atuação de Tarso é talvez menos visível, mas pode ter efeitos igualmente amplos sobre a vida de grande parte dos brasileiros. Ele é um dos elaboradores do projeto Segunda Renda, que propõe a criação de um programa de renda mínima específico para o trabalhador formal. O projeto vem sendo desenvolvido em uma parceria do Instituto Novos Paradigmas (INP) e da CSPM, uma sociedade de advogados especializada em ações de defesa à classe trabalhadora, sob a coordenação do cientista político Marcelo Danéris.
A entrevista é de Igor Natusch, publicada por Democracia e Mundo do Trabalho, 11-06-2018.
O estudo, que teve a primeira etapa concluída no primeiro semestre deste ano, aponta que a reforma trabalhista promovida por Michel Temer “institucionalizou os caminhos de fuga das tutelas do trabalho”, na medida em que reduz a massa salarial, fraciona a força de trabalho, restringe o acesso do trabalhador à Justiça e dilui a importância do salário mínimo. Em paralelo às lutas contra as inconstitucionalidades da reforma, o projeto pretende pautar uma segunda discussão: a garantia de renda mínima mensal, equivalente a 50% do salário mínimo vigente, para o trabalhador intermitente ou de tempo parcial cuja renda individual não alcance 1,5 salário mínimo. Em contrapartida, os trabalhadores e trabalhadoras frequentariam cursos de capacitação, oferecidos pelo Estado ou em convênio com instituições privadas, para disputar posições menos precárias no mercado de trabalho. O financiamento do benefício também teria um caráter transformador: além de uma contribuição dos próprios empregadores, os recursos poderiam vir da taxação de grandes fortunas e heranças, além de uma cobrança sobre as grandes movimentações financeiras.
Nesta entrevista ao DMT, Tarso Genro explica mais a fundo as diretrizes básicas da Segunda Renda e discute a proposta em uma visão global, na qual o novo ciclo de acumulação do capitalismo avançado exige novas redes protetivas e novos modos de organização, tanto no campo político geral como na organização dos próprios trabalhadores. A partir de agora, a ideia é pautar a discussão nos mais diferentes ambientes, incluindo os intensos debates das eleições brasileiras de outubro deste ano – e também no Direito do Trabalho, cuja atuação precisará ser repensada profundamente daqui para frente.
Queria começar essa conversa pedindo que o senhor fale sobre o cenário dentro do qual surge o conceito da Segunda Renda. De que forma o momento que estamos vivendo acabou disparando a discussão que deu forma ao projeto?
Essa proposta tem alguns pressupostos. O primeiro: a resistência que os trabalhadores organizam contra a reforma trabalhista é justa e necessária. As normas trabalhistas tradicionais devem e vão continuar vigentes por muito tempo, como sistema protetivo específico das relações de trabalho. O segundo pressuposto é que, em função da natureza do desenvolvimento do capitalismo atual, da destruição dos padrões tradicionais de prestação de serviços e dos processos de trabalho originários da segunda revolução industrial, o mundo mais tradicional do trabalho, envolvido pela CLT, vai diminuir até chegar a um ponto de esgotamento. O terceiro: essas transformações não são parte de um processo engendrado, entre aspas, como originário do “mal”, mas sim um processo objetivo de redução dos custos do trabalho, necessário para o novo salto no desenvolvimento do capitalismo em escala global. E quais as consequências desse processo? Se nós tivéssemos uma sociedade internacional dentro dos parâmetros de uma ideia socialista, todos os elementos de produtividade e de desenvolvimento tecnológico atuais reverteriam em dois marcos fundamentais: na redução da jornada de trabalho e no aumento salarial. Esse é o quarto pressuposto. O quinto pressuposto: como isso não acontece, essa internacionalização tem um efeito cumulativo de enriquecimento das camadas superiores, gerando um maior empobrecimento da classe trabalhadora em geral, principalmente daqueles serviços que são terceirizados, meia-jornadistas, intermitentes, precários e autônomos, que constituem a maioria da força de trabalho e que se encontram desorganizados, pela mudança desses padrões de produção.
A proposta que elaboramos pretende dizer o seguinte: nós temos que opor a esse processo reformista liberal não a visão social-democrata tradicional, mas uma nova visão social-democrata, inspirada em uma ideia socialista. Temos que reorganizar a repartição da renda do trabalho, dentro da massa salarial disponível, e temos que taxar os ricos e os grandes capitalistas, para que eles contribuam para um fundo de equalização da remuneração do trabalho, que será cada vez mais realizado fora dos parâmetros da CLT.
E quais são os elementos básicos dessa proposta?
Nós visualizamos, em um primeiro momento, um deslocamento de renda, de cima para baixo, para aqueles trabalhadores que estão sendo escorchados pela reforma (trabalhista). Quem são? Os intermitentes, que vão ter que trabalhar doze horas por dia para ganhar o salário mínimo; os precários, ou seja, aqueles trabalhadores que prestam serviço uma vez por semana, sem contrato ou com contrato simulado; os meia-jornada, cuja atividade pode ser combinada não só com a prestação precária, como também com a intermitente; e os trabalhadores terceirizados, que têm uma renda baixíssima e que podem, também, ser contratados em outros regimes, dependendo do tipo de prestação que é estabelecido. Então, nós pensamos nesse mundo mais excluído em primeiro lugar, para mostrar que é possível uma intervenção do Estado para regular a distribuição da massa salarial, onerando precisamente os setores empresariais que vão se servir dessas formas de contratação disso para aumentar o seu rendimento e gerar condições de superexploração. Eles devem ser taxados.
Mas como posicionar essa argumentação em oposição a um discurso que defende que o empresariado é onerado demais, que empreender é difícil e que, sem desburocratizar as relações trabalhistas, é impossível o progresso? Ou, em outro sentido, que fala em crise global, na suposta necessidade de diminuir os Estados, mesmo que abrindo mão de capacidade de investimento em questões básicas como saúde, educação etc? Como a proposta de vocês encontra espaço dentro dessas narrativas?
Uma medida como essa só pode ser compreendida dentro de uma nova dinâmica de futuro. Hoje, as principais parcelas da riqueza criada são apropriadas de forma monetária pelo capital financeiro. Para colocar em um exemplo bem popular: jamais um governo de Estado Social poderia fazer aquilo que o (presidente da Argentina, Mauricio) Macri está fazendo. Para sanear sua economia, ele obedeceu às diretrizes do Fundo Monetário Internacional e acabou por aprofundar sua dependência do próprio Fundo Monetário Internacional. Este é o jogo estratégico do capital financeiro, através do qual ele controla as regras do Estado e transforma a Constituição em um mero jogo de palavras, que não tem incidência sobre a vida das pessoas. Só se permite fazer uma legitimação retórica do Estado Democrático de Direito, em uma situação de fracasso quase absoluto.
Então, esta visão que nós temos desenvolvido se apoia, precisamente, na norma constitucional (brasileira) que diz que ninguém pode receber menos que o salário mínimo. Mesmo que a pessoa seja contratada para meia jornada ou de maneira intermitente, o Estado tem que interferir nessa relação e, caso necessário, deslocar renda para baixo e completar o pagamento do salário mínimo a essa pessoa. Se isso for construído, está aberto o caminho para uma nova visão social-democrata de um Estado protetor, de um Estado de Bem-Estar, já que o anterior foi dissolvido.
Nesse sentido, então, a reforma trabalhista aprovada no Brasil em 2017 não seria, por assim dizer, um ponto de partida, mas sim um desdobramento de processos mais amplos e de longa data? Poderíamos, por exemplo, incluir a chamada pejotização, a disseminação do microempreendedor individual em uma espécie de histórico que leva à reforma trabalhista?
Na verdade, o que ocorre com o trabalhador autônomo, o microempreendedor e o pejotismo em geral, é uma tentativa de regulação de um processo anterior, qual seja, a explosão da informalidade nos países capitalistas menos desenvolvidos e com menor capacidade de absorção de sua força de trabalho. A esta informalidade, que é o que dá base objetiva para essas reformas, se responde com a “pejotização”, criando a ilusão que todos os trabalhadores podem ser empresários de si mesmos. Quando, na verdade, apenas alguns poucos podem. É absolutamente minoritário. O resto da força de trabalho vai para a intermitência, vai vender pentes nas esquinas – vai se tornar empresário de si mesmo, mas dentro da miséria, criando sua própria miséria.
O que está acontecendo aqui no Brasil, hoje, não é diferente do que ocorre nos países mais desenvolvidos. Inclusive, em formas enunciadas já há muito tempo nos Estados Unidos, um país de capitalismo altamente desenvolvido e que é o reino da informalidade, com uma ausência completa de proteção. Ali, eles fizeram a vanguarda dessa experiência que, hoje, se dissemina por todo o mundo e é apresentada como uma coisa moderna. E é moderna, só que é um lado perverso e radicalmente explorador de uma modernidade negativa, que protege fundamentalmente os interesses do grande capital. Então, é uma ideia socialista primária, que enseja a necessidade de elaboração de um novo projeto social-democrata, que nós chamamos neo-social-democrata, que possa se confrontar diretamente com a visão neoliberal.
E a questão do deslocamento de renda, que o senhor mencionou, também dialoga com uma bandeira do pensamento de esquerda, que é a taxação de grandes fortunas.
É um exemplo, e paradigmático. Isso daria ao Estado renda para salvar milhões de crianças da fome, da deserção e da marginalização. Então, trata-se de um projeto que exige um novo modelo tributário, exige taxação de fortunas, exige taxação das heranças e também do grande capital, que é precisamente onde reside o fatal poder de acumulação que as elites têm no Brasil, hoje. O que inclui, inclusive, uma alta classe média rentista, que, para proteger os seus ganhos, passa a compartilhar do mercado financeiro, passa a gostar desse “modelo” e passa a odiar os pobres, que perturbam esse padrão de vida que eles alcançaram.
A proposta de Segunda Renda também considera a capacitação profissional dos beneficiários, como uma contrapartida a esse complemento que garante a renda mínima. Qual o condão que isso tem? Qual o significado, dentro de uma lógica progressista, de capacitar esse trabalhador em um cenário que, pelas condições que estão colocadas, incentiva o contrário, um trabalhador cada vez menos especializado?
Na verdade, no atual estágio de desenvolvimento do capitalismo, temos dois cenários distintos. O primeiro, que vamos chamar provisoriamente como o dos trabalhadores “sobrantes”, inclui os meia-jornadistas, os precários etc, que “sobram” do processo capitalista organizado e que não têm qualquer especialização. E é necessário que não tenham, para que sejam pau para toda obra, tenham mobilidade para prestar serviços que não são considerados nobres no sistema do capital, por qualquer preço. Mas o mundo do trabalho organizado também exige capacitação. Então, é necessário que esse trabalhador, que vai receber (a renda mínima) e que está destinado a prestar qualquer serviço a qualquer preço, se qualifique – conduzido, inclusive, pelo Estado, caso necessário – para disputar a entrada nos atuais no mercado de trabalho. Quanto menos informalidade, menos pobreza, mais organização do mundo do trabalho, e mais importância os trabalhadores qualificados vão ter, para disputar o valor do seu salário.
Isso exige, inclusive, novas formas de associação profissional e de organização das forças de trabalho. Por exemplo: é admissível, hoje, que se tenha, dentro de uma linha de produção, cinco categorias profissionais que não se comunicam. Essas categorias, se estiverem organizadas de uma forma diferente e legalizadas, para fazer a negociação de seu contrato de maneira unitária, vão ser uma força política diferenciada na negociação coletiva. Na verdade a grande luta política se dá dentro da formalidade, da organização e do confronto, no seu limite. E é nisso que precisamos pensar para uma nova social-democracia, capaz de responder aos desafios dos tempos do domínio pleno do capital financeiro sobre o Estado, apoiado pelas novas tecnologias informacionais e infodigitais.
Esta é a natureza subversiva dessa proposta, que é inicial e deve apontar para o futuro. Não significa abandonar a luta pela inconstitucionalidade dessas reformas, não significa que os trabalhadores contratados não devem resistir a essas mudanças.
Devem, porque é um ponto de partida para lutas políticas e sociais ainda importantes por muito tempo. Mas temos que começar a redesenhar o futuro, porque, na medida em que as relações de trabalho vão se dissolvendo, pode ficar o nada em seu lugar.
Indo nessa direção, um dos argumentos mais utilizados contra a reforma trabalhista refere-se ao fato dela ser um ataque à CLT, uma tentativa de destroçá-la e fazer com que se torne inutilizável. Algum crítico da proposta de Segunda Renda talvez possa dizer “bom, na prática isso tudo que está sendo dito significa desistir da CLT, admitir que ela não pode ser salva, e isso fragiliza o trabalhador ainda mais”. Diante de uma crítica de tal natureza, como o senhor se posicionaria?
O que eu diria (a esse eventual crítico) é que Direito do Trabalho está, em geral, em crise terminal. E não porque ele é impotente, para o que ele veio regular: na verdade, o que ele veio regular é que tende a desaparecer. É uma evolução da dominação capitalista e das necessidades do capitalismo. Então, nós temos que compreender que essa sociedade da segunda revolução industrial, que teve na CLT o seu apogeu protetivo, ainda vai nos acompanhar por muito tempo, mas vai se reduzir de forma cada vez mais acentuada, com o passar dos anos. E sua redução reduz a importância da força de trabalho organizada, nos embates sindicais e políticos tais como ocorriam na civilização industrial clássica. Então, um novo sistema protetivo a ser instituído vai, naturalmente, redundar em um novo sistema organizativo das classes trabalhadoras – essas que saem da informalidade e que têm que se requalificar para entrar no mercado de trabalho.
Então, nós não podemos nos ater à eternidade da CLT. Porque a CLT é datada historicamente, ela integra um determinado ciclo no desenvolvimento. Quando se menciona isso a dirigentes sindicais, eles dizem “sim, acho que é correto (esse conceito), mas é difícil levantar essa questão, pois seria como se nós estivéssemos querendo extinguir a CLT”. E a questão não é essa. É importante reforçar a CLT, reforçar a briga pela sua manutenção, mas compreender que terá que vir uma nova regulação, voltada para o novo mundo do trabalho e para as novas formas de produção, que a CLT não abrange e necessariamente não vai abranger.
E os sindicatos, como ficam nessa situação?
Os sindicatos fatalmente vão ter que mudar. Se os sindicatos ficarem apenas representando as suas categorias profissionais tradicionais, eles certamente vão esgotar seu potencial, vão ser cada vez mais fracos na negociação com seus patrões. Na minha opinião, os sindicatos têm que começar, hoje, a estabelecer relações horizontais, dentro do âmbito do trabalho, para travarem lutas conjuntas.
Vamos tomar por exemplo a linha de montagem da Volkswagen. Você vê, nessa linha de montagem, provavelmente seis ou sete sindicatos ou associações profissionais. Quando ocorre uma convenção coletiva de trabalho, quem pauta essas negociações são os setores mais organizados, que têm voz mais forte perante ao patrão, e que talvez não representem sequer a universalidade de seu ambiente de trabalho. Aquele varredor que passa no corredor, aquele cozinheiro, aquele funcionário terceirizado para fazer um determinado serviço de computador ou para reformar um ar-condicionado, nunca está representado naquela negociação.
Então, essa fragmentação tem que ser resolvida pela ideia política e pela norma jurídica. Ela não se reorganiza espontaneamente, como se organizaram as antigas categorias profissionais. E dessas novas relações de trabalho que pode germinar ou uma sociedade mais livre, com maior identidade cidadã, ou um novo tipo de fascismo, com a mesma origem que teve no século passado: o lúmpen, o desorganizado e o marginal, que é arrebanhado pelo rancor e que se torna um instrumento da direita. Esse é o alcance político, também, da intervenção do Estado para construir marcos regulatórios protetivos nesse novo elemento fundacional das relações de trabalho.
Uma vez estabelecidas as diretrizes para a Segunda Renda, como se pretende avançar? Tanto no sentido de ampliar um processo de construção coletiva, quanto para acionar os mecanismos de pressão que possam fazer com que a proposta ganhe corpo e projeção?
Acho que é preciso atuar, predominantemente, em três frentes. Primeiramente, no debate político. Queremos que os candidatos que se pautem pela esquerda e pela centro-esquerda manifestem sua opinião sobre essa proposta. E acolham ela, em parte ou na sua totalidade, em seus programas de governo, para que isso se transforme em um debate político na sociedade. A segunda frente é você travar um amplo debate jurídico e constituir um conjunto de ações na esfera judicial, para declarar o maior número possível de inconstitucionalidades nas recentes reformas. Porque isso aguça a capacidade de resistência dos trabalhadores.
Mas, e aí vem a terceira frente, nós temos que criar uma nova doutrina das relações de trabalho, para compreender que o Direito do Trabalho não é mais só o Direito do trabalhador contratado, do trabalhador da CLT. Ele é, cada vez mais, como Direito do conjunto da força de trabalho, após nossos colegas juristas e advogados têm que botar a sua imaginação a funcionar. O Direito do Trabalho, hoje, é muito mais próximo do Direito social, e quem sabe da seguridade social em geral, do que, propriamente, só do direito do trabalhador com carteira assinada. Essa discussão é imperiosa, e nós também precisamos atuar nesse ponto específico.
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Segunda Renda: um novo programa protetivo aos trabalhadores mais explorados - Instituto Humanitas Unisinos - IHU