04 Abril 2018
O padre Hans Zollner, grande psicólogo jesuíta bávaro de 51 anos e vice-reitor da prestigiada Universidade de Gregoriana de Roma, talvez considerado o principal especialista em abuso sexual e proteção infantil do catolicismo, em quase todos os sentidos da palavra, tem uma missão.
No século XXI, usamos essa frase em relação a alguém que lute por uma causa, o que certamente é o caso de Zollner. Para ele, a proteção de pessoas vulneráveis, principalmente crianças, é parte fundamental da fé cristã. Zollner está determinado a fazer tudo o que puder para promover e desenvolver ambientes seguros.
A reportagem é de John L. Allen Jr., publicada por Crux, 29-03-2018. A tradução é de Luísa Flores Somavilla.
Na história da ordem jesuíta de Zollner, "missão" também significa pegar a estrada e levar o Evangelho para os quatro cantos do mundo, o que também é o seu caso. Nos últimos quatro anos, aproximadamente, ele proporcionou cerca de 600 sessões de treinamento de proteção à criança aos bispos, superiores religiosos e instituições da Igreja, em praticamente todas as partes do mundo. Quando falou ao Crux, em 28 de março, tinha acabado de voltar de uma sessão com os bispos franceses em Lourdes, e entre seus planos para o futuro estavam viagens ao Quênia e a Papua Nova Guiné.
Embora tente comparecer sempre que é convidado, Zollner diz que o número de convites é cerca de um terço maior do que é possível aceitar, mesmo para alguém com tanta energia e empenho incansável. Portanto, ele faz indicações de uma rede crescente de colegas e ex-alunos que pensam de forma parecida.
Em outras palavras, Zollner é a outra face da Igreja Católica em relação a escândalos de abuso sexual - uma face não de disfunção e negação, mas de reforma e esperança.
Zollner é diretor do Centro de Proteção à Criança, lançado em Munique, em 2012, após escândalos de abuso sexual no catolicismo alemão. O centro mudou-se para Roma, que é o centro do mundo católico, em janeiro de 2015 para se tornar realmente global. Ele é membro da Pontifícia Comissão para a Tutela dos Menores do Vaticano, um grupo de discussão criado pelo Papa Francisco em 2014 para aconselhá-lo sobre as políticas de proteção à criança. Desde 2017, ele também é consultor da Congregação para o Clero do Vaticano, o que o colocou em posição de ajudar a estruturar a formação dos futuros sacerdotes.
Hoje, ele vê uma "bola de neve" na Igreja em relação à conscientização e ao interesse sobre a necessidade de políticas fortes de proteção à criança.
Zollner, por exemplo, conta que, há dois anos, na República Tcheca, ele batia nas portas para conversar com funcionários da Conferência dos Bispos do país e com reitores dos maiores seminários e era gentilmente convidado a ir embora. Três meses atrás, no entanto, ele foi convidado para fazer grandes apresentações a esses grupos, e "toda a Igreja apareceu".
Zollner diz que a decisão de realocar o Centro de Proteção à Criança para a Cidade Eterna fez com que ela pudesse responder ao boom nas preocupações sobre a questão.
"Isso mudou toda a perspectiva, bem como o número de convites", disse Zollner ao Crux, em uma entrevista de uma hora em seu escritório, na Universidade Gregoriana.
"Uma das principais razões para nos mudarmos para cá foi que é o centro da Igreja Católica, e todos os bispos passam por aqui periodicamente", afirmou. "Quase todas as congregações e ordens têm residências aqui, principalmente sedes. Muitos têm centros de formação aqui".
Zollner, em muitos aspectos, é a pessoa ideal para liderar a reforma. Ele tem paixão, mas ao mesmo tempo é calmo e extremamente equilibrado, e não é nem um pouco ingênuo. Ele expressa profundo ceticismo sobre soluções "mágicas e misteriosas" e diz que não tem a ilusão de "que isso tudo se resolva em cinco ou dez anos".
Sempre que aborda os líderes da Igreja - que, em média, acontece a cada três dias, 12 meses por ano - Zollner diz que tem três pontos básicos que o norteiam.
"Primeiro, ouvir às vítimas", disse.
"Digo a eles que as vítimas que sabem que eu estou lá - nem sempre do país em questão, mas às vezes - estão orando por você neste exato momento, porque sabem que estamos conversando", disse.
"Também sempre falo sobre alguns encontros das vítimas com a hierarquia da Igreja. Muitas vezes falo do encontro do Santo Padre com as vítimas de abuso em julho de 2014, nos quais estive presente como tradutor dos dois alemães. O que aconteceu durante esses encontros foi muito bonito e mudou suas vidas", observou Zollner.
"Priorizem as vítimas e façam o que puder para fazer justiça", afirmou, resumindo a instrução geral dada aos bispos. "Invistam seu tempo, não fujam, estejam abertos a isso, porque é isso que elas buscam e merecem. É o que pode ajudá-las a ir em frente na vida e possivelmente encontrar a cura".
Em segundo lugar, disse, ele já não pressiona os bispos a adotarem orientações antiabuso fortes, porque por enquanto a maioria das Conferências Episcopais do mundo adotaram tais protocolos. Em vez disso, a questão, segundo ele, é convencer os bispos a fazer esses compromissos permanecerem em vigor.
"Nos mundos anglo-saxônico e germânico, acreditamos que quando se conclui a papelada, acabou, as coisas estão resolvidas", disse, "o que não é verdade em 90% dos países". "Ter um documento escrito é só o começo".
"A questão é: como expandir para a vida real, no dia a dia, nas dioceses, ordens, paróquias, escolas, orfanatos e hospitais?"
De forma relacionada, disse, ele pede que os bispos e outros líderes da Igreja priorizem o trabalho pastoral com as famílias.
"Atender as famílias, ajudando a crescer em uma vida saudável, é o melhor trabalho de prevenção que se pode fazer", disse Zollner. "As famílias tornam-se jovens fortes e autoconfiantes que vão defender seus direitos, e uma família saudável é o ambiente mais seguro para as crianças".
Em terceiro lugar, disse Zollner, ele pede que os bispos invistam recursos em medidas específicas de proteção, como treinamento em prevenção e detecção de casos de abuso, a criação de centros de queixas operacionais, a verificações de antecedentes da equipe, e assim por diante.
"Já vimos nos EUA, na Austrália, na Irlanda, na Alemanha e em outros lugares que com boas medidas de proteção é possível reduzir o número de transgressões e violações de fronteira, bem como casos de abuso, em grande medida", disse.
Ao mesmo tempo, mencionou, os bispos e outros líderes têm que entender que essas medidas de proteção, embora extremamente importantes, não são infalíveis.
"Não há como ter certeza de que nada mais vai acontecer. É uma ilusão, e eu diria que é uma ilusão perigosa", afirmou. "Ainda é preciso abrir os olhos e os ouvidos e aguçar a sensibilidade".
Zollner disse que em sua experiência quando as pessoas se veem diante do desafio e estão empoderadas sobre como enfrentá-lo, elas correspondem.
"Tenho a impressão de que são muito receptivas, e muitas vezes é a falta de conhecimento e de estratégias para lidar com este tema tão desconfortável que intimidam as pessoas de se engajarem", disse.
"Eu sempre coloco que qualquer tipo de instituição, principalmente uma instituição religiosa, tem uma enorme responsabilidade, mas também uma enorme possibilidade - eu diria uma obrigação espiritual e pastoral, mas também um convite - a fazer tudo que for possível para que os jovens possam estar seguros. O que é mais próximo do Evangelho do que isso?", perguntou.
"Isso transforma as pessoas à volta. E eu vejo isso acontecer nessas reuniões", disse Zollner. "Elas abrem os olhos, e, muitas vezes, mesmo de uma posição bastante distante e às vezes defensiva no início, eu geralmente acabo encontrando muito interesse e abertura no final".
Apesar da viagem e da preparação constante para o próximo seminário, o próximo treinamento, a próxima reunião, Zollner diz que consegue se enxergar fazendo isso por algum tempo ainda.
"Meu pai e Deus me equiparam com um corpo físico forte", disse. "Eu aguento bem as viagens e também as alterações de circunstâncias que vêm com elas. Em uma viagem, você vai do inverno para o verão, e a acomodação fornecida também pode ser muito diferente" de lugar para lugar.
Zollner brincou que às vezes as pessoas o aconselham a ficar mais em casa e evitar os "lugares chiques" que encontra na estrada.
"Eu sempre convido quem me diz isso para se juntar a mim por um tempo", disse. "O número de solicitações diminui drasticamente".
Mas no final não é apenas uma constituição robusta e uma forte ética de trabalho Teutônica - apesar de ter ambos em abundância - que conferem a Zollner seu espírito incansável.
Ele sabe que está fazendo tudo isso num momento em que a resposta da Igreja e do Papa à crise de abusos sexuais mais uma vez está pegando fogo, principalmente em relação ao discurso de Francisco em janeiro, que acusou vítimas de um padre pedófilo no Chile de "calúnia" por terem acusado o bispo Juan Barros de encobrimento e exigiu que provassem as alegações. Ele conta que o que o conduz é a sensação de que qualquer que seja a análise dessas controvérsias altamente públicas, as mudanças estão acontecendo de forma mais discreta, sem alarde, na Igreja.
"O que me motiva são as respostas", afirmou.
"Muitas pessoas estão preocupadas que nada esteja mudando, que ouvem repetidamente sobre casos de abuso na Igreja, a maioria no passado, mas alguns no presente", disse. "Mas eu vejo mudanças acontecendo. Penso em todos os países para onde sou convidado agora, que não falavam sobre isso publicamente até um ano ou dois atrás".
"Precisamos estar abertos, ser transparentes, e isso me motiva", disse.
Além disso, outra coisa que o motiva a ir em frente é "o apoio das vítimas e sobreviventes".
"Estou em constante contato com alguns deles, de diferentes países e línguas", disse. “Todos dizem: 'vá em frente, estamos orando por você'. Muitos realmente me impressionaram com sua sabedoria, por compartilharem sua jornada e sua espiritualidade, e quando dizem que estão rezando por mim, isso representa muito e é muito importante para mim".
Além disso, Zollner entende que o trabalho de reforma não pode se restringir a ele. Um dos cursos da Universidade Gregoriana sobre proteção à criança já tem 60 graduados, muitos em "lugares onde muito pouco foi feito até agora", como a África, a Ásia e a América Latina.
Segundo ele, também já há "um bom número de candidatos" para um novo curso da universidade, que, pelo que sabe, é "o primeiro curso universitário do mundo de dois anos que vai preparar especialistas não apenas envolvidos na implementação de orientações [antiabuso] mas vai também ajudá-los a se desenvolver, atualizar e mudar sua cultura".
Ainda não se sabe se a Igreja Católica realmente concluir o trabalho de criar uma verdadeira cultura de prevenção, responsabilização e transparência quando se trata de abuso sexual. A maioria dos especialistas, assim como Zollner, diz que ainda há muita coisa não concluída, como procedimentos claros para lidar com acusações de encobrimento contra superiores e a imposição da mesma disciplina em movimentos leigos e outras entidades católicas que estão em vigor para os sacerdotes.
Uma coisa, no entanto, parece certa: se a Igreja chegar lá, será também graças a Hans Zollner e seu senso de missão.
"Nós tentamos treinar pessoas para serem multiplicadoras, treinando outras pessoas dentro dos contextos", disse. "Estamos vendo isso acontecer. Eles vão saber quais são os próximos passos e onde estão as portas abertas, porque quando se encontra portas abertas, tudo fica muito mais fácil".
Com isso, este reformador determinado encerra a entrevista, porque estava prestes a viajar novamente - no entanto, de volta para Baviera, onde vai celebrar a missa para a família e amigos. Depois da Páscoa, Zollner fará algo quase inédito: vai tirar quatro dias de folga antes de retornar para a missão que tanto o inspira e define.
Depois, para citar Willie Nelson, mal pode esperar para pegar a estrada novamente.
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Jesuíta 'em missão' vê mudanças acontecendo em casos de abuso sexual - Instituto Humanitas Unisinos - IHU