21 Março 2018
A mitificação do papado no segundo milênio cristão enrijeceu a Igreja e contrastou sua vocação à renovação. O mito, que também sobreviveu como drama em papas eminentes do século XX, foi finalmente removido pelo Papa Bento XVI. A reforma do Papa Francisco começa a partir daí. Não da teologia, mas da vida.
A opinião é de Raniero La Valle, jornalista e ex-senador italiano. O artigo foi publicado por Chiesa di Tutti Chiesa dei Poveri, 20-03-2018. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Os alistados em tempo integral no partido antipapista receberam muito mal o testemunho do ex-Papa Bento em apoio do Papa Francisco, com um reconhecimento de sua sabedoria teológica e da continuidade de seu pontificado com o anterior.
Assim, tentaram destruir seu significado, revelando que, na carta em que Ratzinger se comprazia com a iniciativa da Livraria Editora Vaticana, que publicou uma coleção de comentários sobre os primeiros cinco anos do atual pontificado, havia também uma reserva em relação a um dos teólogos que haviam colaborado com ela.
Na realidade, embora a crítica a um dos autores da coleção pudesse ser fundamentada, isso não tira nada da notícia principal, que está na rejeição do velho papa de tomar partido ou até mesmo a liderança da facção anti-Bergoglio.
Pelo contrário, deve-se dizer que esse rescaldo polêmico que se seguiu ao límpido posicionamento do ex-papa, teve o mérito de trazer à tona, como objeto de reflexão na Igreja, a própria natureza do papado, até mesmo para além do julgamento sobre o hoje. E isso precisamente porque foi Papa Bento que derrubou o obstáculo que impedia uma revisão da natureza e do modo de exercício do primado petrino e, por isso, impedia a reforma do papado. Reforma já madura na consciência da Igreja, como devia estar no conclave que elegeu Bergoglio e como o próprio Papa Francisco deveria anunciar no programa de seu pontificado, a Evangelii gaudium, na qual, no número 32, escrevia: “Dado que sou chamado a viver aquilo que peço aos outros, devo pensar também numa conversão do papado”, e como deveria repetir em 17 de outubro de 2015 no discurso pelo 50º aniversário da instituição do Sínodo, dizendo que a Igreja é uma pirâmide invertida, em que o vértice se encontra abaixo da base.
O obstáculo a essa reforma, porém, era que, durante o segundo milênio cristão, o papado tinha sido fortemente mitificado, quase posto no lugar de Deus. A minha geração viu o ápice disso na figura hierática de Pio XII, o “Pastor Angelicus”. Depois, após o parêntese de João XXIII, a mitificação chegou aos faustos do Papa Wojtyla, do qual se disse que derrotou sozinho o comunismo e que as multidões que aplaudiam queriam “santo subito!”.
Mas foi em Paulo VI que o mito chegou à sua máxima crise. Ele se fez guardião dele, quando, no Vaticano II, tinha imposto (e acrescentado em nota “prévia”) uma interpretação restritiva própria ao documento conciliar sobre a colegialidade episcopal, para remover dele qualquer sombra que pudesse ameaçar ofuscar a doutrina do primado e descolorir a figura do papa.
E, no dia 1º de setembro de 1966, em uma parada em Anagni, onde Bonifácio VIII tinha recebido a mítica bofetada francesa, reivindicou os méritos daquele papa, “que, mais do que outros, havia afirmado a mais plena e solene autoridade pontifícia” no quadro conceitual “dos dois poderes, um espiritual, o outro temporal”, dispostos, porém, em uma “escala de valores” em que o espiritual devia “condicionar os outros valores humanos” e, enfim, interpelou os fiéis assim: “Esta comunidade (a Igreja) é organizada e não pode viver sem a enervação de uma organização precisa e poderosa que se chama Hierarquia. Meus filhinhos, é a Hierarquia que está falando a vocês, é o Vigário de Cristo que hoje está diante de vocês... Posso lhes pedir, filhinhos caríssimos, esta graça que vocês certamente não vão me rejeitar: amem o papa, amem o papa, porque, sem qualquer mérito seu e certamente sem nenhuma busca sua, coube-lhe esta estranha e singular vocação de representar Nosso Senhor. Não olhem para nós, olhem para o Senhor a quem representamos...”, e a frase não terminou por causa dos aplausos.
E certamente é por causa da forte consciência dessa representação recapitulada nele que o Papa Montini cumpriu seus gestos mais extremos, como a Humanae vitae, desatendida pela Igreja, ou a decapitação e redução ao silêncio da Igreja de Bolonha.
Mas o mito se reverteu em tragédia quando Aldo Moro, apesar da súplica montiniana às Brigadas Vermelhas que o raptaram, foi morto. E, na oração nos arrepiantes funerais de Estado que Moro tinha dito que não queria, Paulo VI se mostrou pesaroso, porque o intercâmbio com Deus não funcionou, e o interpelou com um lamento que se assemelha mais ao “Meu Deus, Meu Deus, por que me abandonaste?” de Jesus do que às queixas de Jonas a Deus, que havia se arrependido de querer destruir Nínive e não a destruíra.
Em tal lamento, Paulo VI rompe, no grito e no pranto, o selo da “inefável dor com que a tragédia presente – disse – sufoca a nossa voz”, e se condói, quase incrédulo, com Deus: “Tu, ó Deus da vida e da morte, Tu não escutaste a nossa súplica pela incolumidade de Aldo Moro, esse homem bom, manso, sábio, inocente e amigo”. E foi tamanha a dor que, depois de poucos meses, Paulo VI morreu.
Por fim, chegou Bento XVI, “o papa teólogo”, que fez suavemente o ato mais subversivo do mito, com sua renúncia como papa, desmitificando desse modo o papado. E justamente a partir daí que começa a reforma da Igreja.
Mas em qual direção? A disputa em torno da carta de Ratzinger sobre Bergoglio ocorreu como se a discussão dissesse respeito sobre a taxa de teologia dos papas: Ratzinger legitimado como papa teólogo que veio das cátedras da douta Europa, mas pouco perito em humanidade; Bergoglio fora de lugar como papa, mas apto a compreender a concretude da vida cristã, vindo das estradas do fim do mundo. Disputa que Ratzinger resolveu dizendo que nem ele é um teórico sem humanidade concreta, nem Francisco é um homem prático sem teologia.
Mas o erro dessa disputa está no pressuposto segundo o qual o predicado necessário do papa é “profissão teólogo”. Certamente, há um sentido de se falar de papas teólogos, assim como o Concílio pensava em bispos teólogos e como, aliás, seria de se esperar que fossem todos os cristãos. Outra coisa, porém, é fazer da teologia a profissão do papa.
A profissão de Pedro não era teólogo, mas pescador. Assim Jesus o tomou e, com ele, também os outros. Além disso, até mesmo como pescadores eles deixavam a desejar. E, se não fosse por Jesus, que mandava lançar as redes e distribuir os peixes, as multidões permaneceriam em jejum.
O papa não é o cientista de Deus, mas é seu mensageiro. O próprio termo “teologia”, aliás, é exagerado. Não há uma “ciência” de Deus, Deus não pode ser encerrado no nosso conhecimento, não está lá, está “em uma brisa suave”.
Diz o Evangelho de João: ninguém jamais viu a Deus, é o Filho que o revela, que o narra, que faz sua “exegese”. Portanto, a rigor, há apenas um teólogo, que é Jesus, assim como um único mestre, que é ele.
Por isso, o Papa Francisco não deve passar pelo crivo de uma academia, e não estão nesse plano a continuidade e as diferenças com seu antecessor. E é justamente aí que começa, então, o fascínio da pesquisa, o esforço da interpretação, o compromisso para entender o “mistério Bergoglio”, assim como nos tempos do Concílio fomos desafiados a compreender “le mystère Roncalli”, como foi chamado pelos franceses o segredo do papa que, com o Concílio, estava mudando a Igreja. Por isso, é tão fascinante a pergunta sobre quem realmente é Francisco e com que força ele está mudando, junto ao homem moderno, a própria ideia de religião e o imaginário de Deus.
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Profissão teólogo ou pescador? A figura do papa na Igreja. Artigo de Raniero La Valle - Instituto Humanitas Unisinos - IHU