15 Março 2018
Uma nova tecnologia — a intervenção precisa sobre o genoma — pode ser feita no interesse comum, mas também em benefício de poucos. O problema é econômico, político e jurídico, e a batalha já começou.
O artigo é de Bernard Dujon, professor emérito na Universidade Pierre-et-Marie-Curie e no Instituto Pasteur, membro do Instituto da França (Academia das Ciências), publicada no Le Monde Diplomatique francês e reproduzido por Outras Palavras, 13-03-2018. A tradução é de Maurício Ayer.
“Você é a favor ou contra?” No domínio da genética, e mais particularmente no das modificações direcionadas dos genomas, essa questão frequentemente suplanta as outras. Ela é colocada com uma insistência ainda mais estridente desde o desenvolvimento de novas ferramentas moleculares, chamadas Crispr, que permitem cortar, eliminar e substituir sequências muito precisas do genoma com facilidade. Em teoria, esses métodos abrem campos de aplicação ilimitados. Mas podemos mesmo saber o que devemos pensar a respeito disso antes de saber do que se trata?
Modificar um genoma consiste em substituir de maneira direcionada um gene ou um fragmento de gene por um elemento – um pedaço de DNA – com o objetivo de repará-lo ou, ao contrário, torná-lo inativo. Em laboratório, os pesquisadores utilizam esse procedimento já há várias décadas, mas com ferramentas moleculares, cuja manipulação mais laboriosa limitava o uso.
Não se deve confundir a modificação direcionada de genomas – em inglês genome editing — com a simples transgênese, que consiste em inserir um gene adicional em um genoma esperando que ele confira um novo caráter a uma célula ou ao organismo, mas sem dirigir deliberadamente o seu local de inserção preciso (lócus). Os organismos geneticamente modificados (OGMs), que levantam tantas questões, ou a terapia gênica sob sua forma inicial são provenientes da transgênese. No caso do genome editing, apenas o lócus selecionado deve ser modificado e de maneira direcionada (leia “Agir sobre o genoma” [em francês]).
As ferramentas moleculares utilizadas existem em estado natural ou são originadas da simples junção de elementos naturais, pois a natureza não se priva de remodelar os genomas. Ela faz isso o tempo todo. Os fenômenos de transgênese, como as inserções direcionadas ou as mutações aleatórias, são processos correntes sem os quais nós não existiríamos. Nas últimas décadas, a pesquisa pôs em evidência em todos os genomas estudados, inclusive o nosso, traços de genes provenientes de outros organismos, adquiridos por transgênese nas linhagens ancestrais. Os mecanismos responsáveis por essas transferências não são ainda bem compreendidos, mas certamente desempenham um grande papel na evolução biológica.
Por exemplo, o genoma da batata doce (Ipomoea batatas) contém e faz funcionar grupos de genes provenientes da bactéria Agrobacterium. Normalmente, esta última vive em simbiose com as leguminosas e lhes permite fixar o nitrogênio atmosférico. Mas com a batata doce, não há simbiose. Os genes da bactéria integraram o genoma de uma planta ancestral por transgênese natural e agora são transmitidos de geração em geração em todas as variedades de batata doce.
Nós consumimos então, há séculos, uma planta transgênica natural. Outro exemplo: sabe-se hoje que um elemento tão importante para todos os mamíferos – inclusive nós mesmos – como a placenta provém igualmente de uma transferência de gene. As sincitinas, proteínas essenciais à formação dessa estrutura sem a qual o feto não poderia se desenvolver, devem sua síntese a genes que nossos ancestrais longínquos não possuíam. Eles as adquiriram por conta de infecções por vírus análogos aos retrovírus atuais, que, como o vírus da imunodeficiência humana (HIV), apresentam a particularidade de inserir seu próprio genoma no genoma da célula infectada. No caso da placenta, o gene viral que servia para produzir o invólucro do vírus foi capturado pela célula infectada da linhagem germinal e, com a evolução, serviu para a síntese de sincitinas nos seus descendentes.
O fenômeno de transgênese existe igualmente entre os micro-organismos. O próprio sistema Crispr não é outra coisa senão um tipo de mecanismo de imunidade das bactérias contra os vírus que as infectam. Porém, mais que uma memória celular limitada a uma só geração como a de nosso próprio sistema imunológico, as bactérias dispõem de uma memória molecular transmissível às gerações seguintes. Aquelas que sobrevivem a uma infecção integram em seu
próprio genoma no lócus Crispr cópias de sequências curtas de DNA correspondentes ao vírus.
Elas podem também transmiti-los aos seus descendentes, que reconhecerão e destruirão os novos vírus da mesma família. O traço adquirido torna-se hereditário. É esse sistema que os pesquisadores utilizam agora para modificar os genomas depois de ter substituído os fragmentos dos vírus por fragmentos dos genes em que se deseja focar. Mas, enquanto esses fenômenos se produzem de maneira aleatória na natureza, pode-se dirigi-los em laboratório.
Essa ação humana sobre o material genético é realmente nova? Pelos métodos utilizados, certamente; pelos resultados obtidos, não. Há milênios, a humanidade nunca deixou de agir sobre os genomas pela pecuária e agricultura. Sem esquecer os animais de estimação: a incrível diversidade de raças de cachorro que nós selecionamos não existiria sem as instabilidades do genoma do lobo. Tratava-se, evidentemente, de uma ação empírica, cujos mecanismos não eram conhecidos pelos operadores, mas os genomas nem por isso eram menos modificados, a tal ponto que as raças animais e as variedades vegetais que nós utilizamos e encontramos hoje não têm mais muita coisa em comum com os seus ancestrais naturais.
O trigo, por exemplo, é um híbrido entre dois ou três – a depender da variedade – cereais esquecidos há muito tempo. À medida que foram acontecendo as seleções empíricas, os rendimentos aumentavam, as propriedades das farinhas melhoravam e se diversificavam. Ainda não se sabe com precisão, atualmente, quantos genes foram modificados, nem como. Mas eles o foram. No caso do milho, os pesquisadores puderam reconstituir as seleções efetuadas a partir
do teosinto das populações indígenas, agindo principalmente sem o conhecimento sobre os genes, cuja existência era ignorada até então. Mas agindo, de todo modo. O mesmo acontece com as vacas leiteiras, os cavalos, os porcos, etc., selecionados por suas performances e que não têm, claro, exatamente os mesmos genes de seus ancestrais naturais. Também é o caso das cepas de leveduras utilizadas na produção de cerveja ou na fermentação da vinicultura: trata-se, em sua maioria, de híbridos complexos selecionados empiricamente e que podem portar genes estrangeiros às Saccharomyces de origem. Em todos os casos, não se utilizou de mutagênese ou transgênese artificiais; apenas foram colhidas aquelas que a natureza já produzia.
Todos os genomas se modificam o tempo todo, e não apenas em longo prazo. Eles mudam a cada geração – o dos humanos em particular. Comparando a sequência integral do genoma de um recém-nascido às de seus pais, pode-se identificar com extrema precisão todas as mutações que apareceram em uma geração ao longo do processo reprodutivo. Centenas de análises desse tipo forneceram resultados perturbadores: somos todos mutantes! Mais precisamente, cada recém-nascido carrega em média umas cinquenta mutações pontuais, ou seja, mudanças limitadas a um pequeno número de nucleotídeos, ou mesmo em um único. O mais comum é que essas alterações, felizmente, não tenham efeito deletério. Mas isso não é tudo: a cada nova geração segmentos mais ou menos longos de DNA desaparecem, se deslocam ou se duplicam.
Eles podem portar genes ou fragmentos de genes que assim desaparecem, se multiplicam ou mudam de ambiente genômico de maneira aparentemente aleatória. Ao todo, essas mutações ditas estruturais implicam um número de nucleótidos muito maior que as mutações pontuais.
O genoma encontra-se, então, significativamente modificado, mas, na maior parte do tempo aqui também, sem consequência nefasta. Algumas dessas mutações mostram-se, por outro lado, deletérias, e levam, por exemplo, a deficiências mentais graves ou a casos de autismo. É em relação a esses fenômenos naturais que é preciso ressituar as modificações direcionadas dos genomas, assim como as esperanças ou temores que elas podem suscitar.
Se, com as ferramentas moleculares atuais, os pesquisadores são, em princípio, capazes de modificar precisamente e de maneira dirigida os genes que eles quiserem, por que fazê-lo e em que condições? Os casos das doenças monogênicas hereditárias, como as beta-talassemias ou mucoviscidose, que resultam cada uma de uma mutação causal conhecida em um gene bem definido e transmitida de geração em geração, parecem simples. Aplicando a tecnologia Crispr,
conseguimos recentemente corrigir uma mutação desse tipo em células sanguíneas de cepas obtidas de um paciente talassêmico. Pode-se, desde então, imaginar, feitos todos os controles necessários, a reinjeção dessas células modificadas no paciente como tratamento de sua doença.
O assunto então se complica: se o tratamento der certo, ele deve ser reproduzido em cada geração em todos os membros da família ou procurar modificar a linhagem germinal para erradicar a doença? A regulamentação se opõe a isso em muitos países e a convenção internacional de Oviedo foi assinada com essa diretriz em abril de 1997. De todo modo, se os progressos da pesquisa prosseguirem no ritmo atual, podemos apostar que a questão não deixará de se colocar
de novo. O verdadeiro problema está em que os pesquisadores não estão por enquanto em condições de predizer todas as consequências de uma mudança, mesmo que limitada a um único gene.
No caso de doenças geneticamente mais complexas como os cânceres, por exemplo, agir sobre os genomas abre uma imensa esperança. Fomos bem sucedidos, por exemplo, em modificar geneticamente os glóbulos brancos (linfócitos), de maneira a fazê-los mirar e matar especificamente as células cancerosas. Os primeiros testes realizados com crianças leucêmicas resultaram em melhoras. Para além dos cânceres, a terapia gênica orienta-se agora na direção dessas novas tecnologias. A principal dificuldade de aplicação dessas modificações dirigidas dos genomas ao uso terapêutico humano consiste em assegurar que apenas o gene focado é modificado e que outras alterações não desejadas não se produzam em outros lugares durante o processo. Esse problema existe com as ferramentas Crispr, assim como com as precedentes, mas as técnicas de controle avançam a uma velocidade muito grande.
Finalmente, é preciso se interrogar sobre a utilidade geral das modificações de genomas. No domínio das plantas, assiste-se a uma proliferação de construções genéticas de interesse variável, às vezes somente ornamental. Algumas, ao contrário, levam a melhoramentos agronômicos apropriados a resolver problemas alimentares. Mas se coloca imediatamente o problema do acesso aos grãos; pois, se os genes naturais não podem ser patenteados, o mesmo não acontece com linhagens que portam os genes modificados nem com os métodos que permitem essas modificações. Nos Estados Unidos, a tecnologia Crispr é objeto de uma batalha jurídica. Os desdobramentos potenciais aguçam os apetites.
Então, a favor ou contra? A favor, se a ação sobre os genomas se faz no interesse do maior número de pessoas e em particular dos mais necessitados. Contra, se a ação sobre os genomas se faz unicamente em benefício de alguns. O problema não é mais científico, mas econômico, jurídico e político.
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Genética e transgenia: os novos debates - Instituto Humanitas Unisinos - IHU