17 Fevereiro 2018
“As ONGs não são melhores que a sociedade da qual surgem; tampouco os políticos, os jornalistas, os empresários e os bispos. Toda organização humana comete erros, o importante é ter capacidade de detectá-los e resolvê-los. Neste caso, a Oxfam-UK cometeu erros”, escreve o jornalista Ramón Lobo, em artigo publicado por InfoLibre, 15-02-2018. A tradução é do Cepat.
Não parece que a Oxfam esteja vivendo seu melhor momento. Encontra-se em meio a um escândalo sexual de consequências imprevisíveis, que pode colocar em risco sua viabilidade econômica. Seria uma pena porque seu trabalho é essencial, tanto nas emergências como na denúncia das causas da pobreza e dos abusos do sistema.
Um exemplo é sua campanha contra os paraísos fiscais.
Tanto o Governo britânico de Theresa May como a Comissão Europeia advertiram que poderão suspender as ajudas se não houver uma explicação clara e uma apuração de responsabilidades. No caso do primeiro, a quantidade anual é de 35,6 milhões de euros. Esta reação tem algo de teatral porque estava, ou deveria estar, a par do ocorrido. No caso europeu, estão em jogo 32,5 milhões de euros.
Antes de seguir, um esclarecimento: a Oxfam é uma confederação de 20 organizações, com pessoa jurídica independente, que tem políticas e estratégias comuns. O escândalo atinge a divisão britânica, a qual chamaremos Oxfam-UK. A seção espanhola, Oxfam-Intermon, não tem nada a ver com este caso, segundo foi explicado por carta a seus sócios e simpatizantes.
A Oxfam é britânica de origem. Nasceu há 75 anos. É essencial nas emergências humanitárias, sobretudo no que diz respeito à água e a sanitização. Também atua no desenvolvimento, em projetos a longo prazo, que busca modificar as estruturas que provocam a pobreza e a injustiça. Um de seus trabalhos é conscientizar sobre os direitos da mulher.
Trata-se de uma voz incômoda. Com esta afirmação não tento sugerir teorias conspiratórias. Os fatos estão claros; as responsabilidades também.
Culpar ao conjunto da Oxfam ou a todas as ONGs equivaleria a destacar a totalidade da Igreja católica pela pedofilia de alguns de seus sacerdotes. O maior erro da Igreja foi acobertar durante anos os abusos, evitar que fossem apuradas as responsabilidades penais, proteger os culpados e não respeitar as vítimas. Neste caso, não existe um sistema de acobertamento global e deliberado, mas, sim, o próprio medo de que se saiba. Há erros graves que deveriam gerar uma mudança de procedimentos.
As ONGs não são melhores que a sociedade da qual surgem; tampouco os políticos, os jornalistas, os empresários e os bispos. Toda organização humana comete erros, o importante é ter capacidade de detectá-los e resolvê-los. Neste caso, a Oxfam-UK cometeu erros.
Do que estou falando? De um escândalo sexual ocorrido em 2011, no Haiti, e divulgado há uma semana pelo jornal The Times, que teve acesso às conclusões de uma investigação interna. Segundo sua informação, Roland van Hauwermeiren, chefe da missão da Oxfam-Reino Unido na emergência pós-terremoto, e outras cinco pessoas realizaram “na sede, em Porto Príncipe, orgias tipo Calígula” com mulheres haitianas, algumas talvez fossem menores de idade, para as quais pagavam 30 dólares por festa. A sede era conhecida como a casa das putas.
A seção espanhola, Oxfam-Intermon, esteve no Haiti, mas sem relação alguma com a casa e os fatos. Sua missão era separada da britânica.
O Haiti é o país mais pobre da América Latina. No dia 12 de janeiro de 2010, sofreu um terremoto de magnitude 7,3 na escala Richter. Morreram mais de 300.000 pessoas, outras 350.000 ficaram feridas e mais de um milhão e meio ficaram sem lar. A violência do terremoto, unida à pobreza, multiplicaram os efeitos devastadores. Nessa situação aterrissou Van Hauwermeiren.
Agora, soube-se que Van Hauwermeiren e outro dos investigados tinham antecedentes de conduta inapropriada no Chade, onde pagaram mulheres locais em troca de sexo.
A diretora adjunta da Oxfam-UK, Penny Lawrence, é a única que apresentou sua renúncia. Tem um motivo: em 2011, era a responsável pela direção de Programas da Oxfam-GB. Teve conhecimento de incidentes no Chade e, apesar disso, enviou Van Hauwermeiren ao Haiti. Primeiro erro grave.
Sem ter mais notícias do ocorrido, abriu uma investigação interna. Assim se explica no comunicado de 5 de agosto, datado em Porto Príncipe, a capital haitiana. Nele se anuncia a suspensão de alguns de seus trabalhadores.
Um mês depois, no dia 5 de setembro de 2011, a Oxfam Internacional publicou outro comunicado no qual informa que a investigação realizada pela Oxfam-UK confirma os casos de má conduta “de uma parte pequena do pessoal que trabalha no Haiti”. Fala de seis indivíduos sem citar nomes e nem qual foi sua atividade inapropriada. Anuncia que os seis deixaram o Haiti e a organização.
Van Hauwermeiren pactuou uma saída por etapas e digna. Segundo erro. Permitiu-se que se enrolasse na Ação contra a Fome, em Bangladesh, até 2014. Esta ONG disse que não foi advertida pela Oxfam.
A Oxfam-UK conta com 2.500 trabalhadores e 31.000 voluntários. Seis ou nove maçãs podres não são um problema estrutural, mas, sim, o que pode ser é a resposta, a tendência a acobertar os escândalos por medo de perder credibilidade. No medo de que os casos se tornem conhecidos, permite-se que pessoas como Van Hauwermeiren passem da Chade ao Haiti, ou que após ser expulsos da Oxfam-GB, encontrem trabalho em outras ONGs que desconhecem seu histórico. É urgente a criação de um arquivo de cooperadores com uma conduta indigna, que dificulte suas transferências de uma ONG para outra.
O ocorrido no Haiti escancarou casos em outras organizações humanitárias. Trata-se de abusos entre expatriados. A porcentagem de assediadores deve ser similar ao que existe em nossa sociedade em tempos de paz. Os capacetes azuis da ONU foram vistos respingados em vários casos na África. O problema de fundo, e mais em uma crise humanitária ou países em guerra, é a impunidade dos perpetradores. É a mesma que permitiu a atuação do produtor Harvey Weinstein, durante muitos anos.
Helen Evans, responsável pela Segurança Global na Oxfam, entre 2012 e 2015, foi a encarregada de investigar alguns dos outros casos de abusos, 37 no total. Em declarações ao Channel 4, afirma que o diretor da Oxfam-UK, Mark Goldring, não fez muito caso. Também disse que apresentou todos estes casos a Charity Commission, organismo que regula e vigia as ONGs no Reino Unido, que tampouco fez algo.
Vivemos em um mundo no qual os governos privatizaram sua responsabilidade, deixando nas mãos das ONGs parte do que corresponde aos estados. Os governos desatam as guerras, vendem as armas e depois esperam que as ONGs coloquem esparadrapos na barbárie. São os mesmos governos que aproveitam a crise econômica para tentar ignorar o Estado de bem-estar, privatizar a saúde, exaurir as pensões, etc. Nesse caso, a privatização é dos lucros. Estamos cercados de depredadores e não é uma boa ideia dizer “todos são iguais”. Não é, porque nós não somos.
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Oxfam. Matar o mensageiro - Instituto Humanitas Unisinos - IHU