31 Janeiro 2018
Durante os seus quase cinco anos à frente da Igreja, o Papa Francisco ganhou a admiração das pessoas ao longo de todo o espectro confessional e daqueles sem aliança religiosa alguma, tornando-se talvez o Bispo de Roma mais universalmente querido e respeitado, pelo menos desde São João XXIII.
Dito de forma simples, ele é hoje o maior líder espiritual e mesmo político no cenário mundial.
O comentário é de Robert Mickens, jornalista, publicado por La Croix International, 26-01-2018. A tradução é de Isaque Gomes Correa.
É natural que os católicos tradicionalistas e aqueles com uma tendência política conservadora não o vejam desta forma. Essas pessoas o rotulam de populista subversivo e mesmo de comunista.
Acreditam que Francisco abdicou de seu papel de defender uma antiga ordem mundial pela qual a Igreja de Roma há tempos se coloca como um último baluarte: primeiro, no rescaldo do iluminismo e, mais recentemente, em meio à reviravolta sociopolítica na década de 1960 que continua a apagar as chamados amarras judaico-cristãs da sociedade contemporânea.
Mas as evidências sugerem que, até agora, os apoiadores do papa são em número muito maior do que os detratores.
No entanto, isso pode estar prestes a mudar.
A decisão do Papa Francisco em defender resolutamente o bispo chileno Juan Barros, de Osorno, contra as acusações de que este teria tentado acobertar casos de abuso sexual cometidos pelo padre pedófilo mais notório do país, Fernando Karadima, desapontou um bom número daqueles que vinham dando-lhe boas notas de aprovação.
Será possível que a defesa firme de Francisco dada a Barros e a sua maneira de lidar com as vítimas de Karadima, em particular na acusação de que o bispo fez vista grossa aos abusos cometidos, podem ser um ponto de inflexão crucial deste pontificado?
Em resumo, será que este mais recente capítulo do Caso Barros – que a maioria das pessoas acreditam que o papa errou no tratamento dado semana passada durante a visita ao Chile e ao Peru – irá ser um golpe mortal à sua autoridade e liderança, ou será que é apenas uma tempestade num copo d’água?
Grande parte dependerá de como as pessoas interpretam as palavras e os sentimentos que o Papa Francisco transmitiu durante a coletiva de imprensa a bordo de seu avião que o trouxe da América do Sul para Roma em 21-22 de janeiro.
Três jornalistas perguntaram ao papa por que ele acreditava em Barros e não nas vítimas. "Não há nenhuma prova contra ele. Tudo é calúnia. Está claro?”
O papa se desculpou por acusar as vítimas de calúnia (ou seja, difamação). Disse que empregou a palavra “prova” quando deveria ter dito “evidências”.
Isto fez algumas pessoas começarem a se preocupar, perguntando-se qual realmente é a diferença entre estas duas palavras e se ela altera substancialmente o que o papa estava querendo dizer.
Em seguida, Francisco tentou se desculpar falando que as vítimas de Karadima e os críticos de Barros nunca buscaram um encontro com ele. Antes de tudo, cabe ao papa procurar estas vítimas. Ele sabe das acusações desde 2015 pelo menos, quando decidiu mover o bispo da presidência do ordinariato militar chileno para a Diocese de Osorno.
De fato, o papa se encontrou com vítimas de abusos sexuais clericais quando visitou o Chile. Mas o público nunca ouviu quem elas eram, exceto que não foram pessoas abusadas por Karadima. As pessoas responsáveis por organizar tal encontro privado erraram profundamente ao não incluírem as vítimas do padre pedófilo mais notório do país, especialmente os que acusam publicamente Barros de ter acobertado o ex-padre.
O que os organizadores deste encontro estavam pensando? E por que Francisco – o papa que dá telefonemas inesperados e se reúne com praticamente todo mundo – não insistiu em se reunir com os acusadores/as vítimas?
Sem sequer buscar um encontro com este grupo, ele também os taxou de caluniadores.
“Por que o papa não acredita nestes três homens? Eles vêm agindo de forma coerente ao longo dos anos no que afirmam”, disse Marie Collins, ex-participante do Pontifício Conselho para a Tutela dos Menores.
“Quando perguntado por que acredita em seus companheiros clérigos e não nos sobreviventes, Francisco não consegue apresentar motivo algum”, exclamou uma frustrada Collins esta semana no Twitter.
Uma série de comentadores tentaram explicar a postura do papa. Alguns disseram que ele tem feito o certo: protegendo uma pessoa falsamente acusada, até mesmo à custa de sua própria popularidade. Outros dizem que talvez isto seja assim porque o próprio Francisco fora caluniado quando atuava como superior jesuíta e quando foi bispo na Argentina, portanto hesita acreditar em acusações que não são sustentadas por provas/evidências cristalinas.
Ou, como aqui mesmo se disse na semana passada, talvez Francisco deteste disciplinar os bispos por inação na questão dos abusos sexuais porque, de forma semelhante, ele nunca deu passos decisivos para resolver o problema quando era o Arcebispo de Buenos Aires e presidente da Conferência Episcopal do país.
Talvez ele se sinta assim porque não se encontra na posição de disciplinar os seus iguais com tanta credibilidade ou honestidade a seu lado.
No entanto, existe uma outra explicação possível para a insistência do papa para que Barros continue no cargo ocupado hoje, primeiramente sugerido pelos comentários do pontífice na semana passada no retorno a Roma. Ele falou que o bispo ofereceu a sua renúncia em duas ocasiões distintas, mas ele (o papa) recusou.
Talvez, assim como os seus predecessores, Francisco se preocupe que ao ceder à opinião pública para destituir um bispo desencadeie um precedente negativo que encorajaria os católicos de outros lugares a exigir a remoção dos bispos não aceitos pela comunidade.
Barros tem profundamente dividido as pessoas e o clero de Osorno – e do Chile como um todo – desde o anúncio de sua a nomeação em 2015. Foi atacado verbalmente – e mesmo fisicamente – no dia de sua instalação e, desde então, tem sido publicamente desafiado.
Há obviamente um elemento bastante diferente nesse caso, em particular quando se considera que Francisco destituiu bispos no passado por um tratamento inadequado em casos de abuso sexual, embora cuidadosamente sem afirmar que os motivos eram estes.
Dois casos particulares nos EUA são os mais conhecidos. No curso de alguns meses em 2015, o papa forçou dois bispos deste país a renunciar bem antes da idade normal de aposentadoria, que é de 75 anos: Robert Finn, de Kansas City-Saint Joseph, que tinha apenas 62 anos, e John Nienstedt, de Saint Paul e Minneapolis, que estava com apenas 68 anos de idade.
Muitos entenderam que eles foram forçados a sair por causa do papel no acobertamento de abusos sexuais. Isto, porém, jamais foi dito claramente. Na verdade, Nienstedt nega firmemente que esta tenha sido a razão.
Então por que o papa está sendo tão irredutível na defesa a Barros? Pode-se imaginar que existam figuras católicas poderosas defendendo o bispo.
Dois cardeais, em particular, vêm à mente. São eles Angelo Sodano, italiano que continua a ser uma figura importante no Vaticano, e Jorge Medina Estévez, chileno que serviu como prefeito da Congregação para o Culto Divino e a Disciplina dos Sacramentos e que fora o cardeal-protodiácono que anunciou a eleição de Bento XVI.
Francisco precisa especialmente do apoio – e não se atreve a correr o risco de ter a inimizade – de Sodano, quem continua tendo o respeito e a lealdade de muitas autoridades vaticanas e diplomatas da Santa Sé ao redor do mundo.
O decano do Colégio Cardinalício, de 90 anos de idade, foi núncio apostólico no Chile entre os anos e 1977 e 1988 antes de ser chamado de volta a Roma, onde serviu como secretário de Estado de 1990 a 2006. Ele, mais do que qualquer outra autoridade vaticana, desempenhou um papel decisivo na modelagem do episcopado chileno. Medina, hoje com 91 anos, tornou-se bispo durante a sua época de núncio. Ele e Barros, de 61 anos, devem esta ascensão na hierarquia a Sodano.
Medina virou bispo auxiliar da Diocese de Rancagua em 1984 e foi consagrado em Roma por João Paulo II. Antes de Sodano completar 11 anos como núncio, promoveu Medina como ordinário da diocese.
Quando se tornou secretário de Estado, Sodano pôde continuar exercendo influência na nomeação dos bispos para o Chile (e alhures) como membro da Congregação para os Bispos, posto que ocupou até 2007.
Em 1993, Medina foi nomeado Bispo de Valparaíso, a segunda maior diocese do Chile. Em menos de dois anos, Juan Barros – então secretário pessoal do falecido cardeal-arcebispo de Santiago, Juan Francisco Fresno Larraín – foi nomeado bispo auxiliar de Medina.
O então bispo Medina foi o principal consagrador de Barros, enquanto o Cardeal Fresno serviu como um dos consagradores. Um ano depois, Medina fora designado prefeito da Congregação para o Culto Divino e a Disciplina dos Sacramentos e foi feito cardeal em 1998. À época, também se tornou membro da Congregação para os Bispos, cargo que ocupou até 2006.
Ele e o Cardeal Sodano provavelmente foram decisivos em 2000 quando Barros fora nomeado Bispo de Iquique e, de novo, em 2004, quando Barros fora transferido para ser o bispo do ordinariato militar do Chile. Esta nomeação veio apenas cinco dias após a morte do outro cardeal-protetor do bispo, Juan Francisco Fresno.
Os cardeais Medina Estévez e Sodano ainda estão vivos. Eles foram fundamentais na escalada de Barros dentro da hierarquia da Igreja. Com efeito, Barros é alguém que eles promoveram. É um do grupo deles. Será que Medina e Sodano interviram junto ao Papa Francisco para protegê-lo e proteger a sua reputação – e as suas próprias reputações também?
Provavelmente jamais saberemos. E é difícil saber se Barros tentou manter oculto dos superiores os crimes de abuso sexual de Karadima. Isso porque atualmente não há mecanismos claros e transparentes em vigor para responsabilizar os bispos por tais atos.
De volta à pergunta original: Será que a crise em torno do Caso Barros, que agora circunda o Papa Francisco, se mostrará um golpe mortal para este pontificado, ou será apenas uma tempestade passageira?
Vendo a cobertura da imprensa nestes últimos dias, temos aí uma pergunta difícil de responder.
Os católicos progressistas, chamados de “católicos Vaticano II” nos países de língua inglesa – os quais têm estado entre os apoiadores mais entusiastas do papa –, se abalaram com os mais recentes eventos. Muitos deles, provavelmente uma minoria, estão cada vez mais convencidos que apenas “não caiu a ficha” de Francisco ainda quando se trata das ramificações da crise dos abusos sexuais clericais.
Mas em outras partes do mundo, onde a Igreja ainda não se viu forçada a lidar com casos de abuso sexual dentro de suas fileiras, os últimos eventos estão rapidamente se tornando notícias ultrapassadas. A imprensa nestes lugares, seja católica, seja secular, aplaude o papa por seu pedido de desculpa na escolha equivocada das palavras. Mas os repórteres e formadores de opinião não estão pressionando o papa por esclarecimentos.
No Chile, todavia, as pessoas têm feito exatamente isso. O que não é um bom sinal. Isso significa que a polêmica em torno de Barros, especialmente na forma como o papa recentemente tratou o caso, apenas irá se intensificar.
O principal, no entanto, é que o Papa Francisco vai, provavelmente, enfrentar o problema. O foco sobre este mais recente incidente já começou a mudar de direção, devido ao nosso curto período de atenção. E aqui incluo a atenção dos jornalistas cujo trabalho é pressionar figuras proeminentes.
É como diz o ditado italiano: “Chi vivrà vedrà”. Em resumo, só o tempo dirá.
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Papa Francisco e o Caso Bispo Barros: Golpe mortal no pontificado ou uma tempestade num copo d’água? - Instituto Humanitas Unisinos - IHU