02 Outubro 2017
Francesco Arzillo é magistrado administrativo em Roma e estudioso de filosofia e direito. Seu comentário a correctio dirigida ao Papa Francisco, por sete heresias das quais este teria se tornado propagador, soa como o início deste diálogo sobre a interpretação da Amoris Laetitia que o secretário de Estado, o cardeal Pietro Parolin, definiu, ontem, como “importante também dentro da Igreja”.
A informação é de Sandro Magister, publicada por Settimo Cielo, 29-09-2017. A tradução é do Cepat.
É o que o cardeal Gerhard Müller deseja que se coloque em andamento entre um grupo de cardeais designados pelo Papa e os duvidosos, e a respeito do qual o próprio Francisco interveio, no dia 10 de setembro – quando a correctio já lhe havia sido enviada –, dizendo textualmente aos jesuítas da Colômbia, em um encontro a porta fechada, segundo o que relatou La Civiltà Cattolica:
“[Quero] dizer uma coisa que acredito que a devo dizer em justiça e também por caridade. Porque escuto muitos comentários – respeitáveis porque os dizem filhos de Deus, mas equivocados – sobre a Exortação apostólica pós-sinodal. Para compreender a Amoris Laetitia é necessário lê-la do início ao fim. Começar com o primeiro capítulo, continuar pelo segundo... e assim seguindo... e refletir. Ler o que se disse no Sínodo”.
“Uma segunda coisa: alguns sustentam que a moral que está na base da Amoris Laetitia não é uma moral católica ou, ao menos, que não é uma moral segura. Diante disto, quero reafirmar com clareza que a moral da Amoris Laetitia é tomista, a do grande Tomás. Podem falar disto com um grande teólogo, entre os melhores de hoje e entre os mais maduros, o cardeal Schönborn. Quero dizer isto para que ajudem as pessoas que acreditam que a moral é pura casuística. Ajudem elas a perceber que o grande Tomás tem uma riqueza muito grande, capaz de também hoje nos inspirar. Mas de joelhos, sempre de joelhos...”.
Abaixo, segue o artigo de Francesco Arzillo.
É possível corrigir os corretores? A tradição especulativa medieval nos diz que sim. Basta pensar no famoso Correctorium fratris Thomae de William de la Mare, por sua vez respondido por vários Correctoria corruptorii, obra de diversos autores.
Diante de um ato tão grave e singular, que supera com audácia o fosso que separa o dubium do julgamento em uma matéria tão delicada, é possível se limitar, agora, a algumas perguntas relacionadas às sete propostas consideradas como “falsas e heréticas” e as supostas correspondências que emergem da leitura de todo o texto.
2.1. Em primeiro lugar, as propostas individualizadas como heréticas já parecem constituir o fruto de uma hermenêutica das declarações e dos documentos papais, além das – cumulativamente – ações e omissões atribuídas ao mesmo. Trata-se, por assim dizer, de propostas “de segundo grau”.
A primeira pergunta é, por conseguinte, dupla:
- Por que não se reproduziram, na parte central do texto formulada em latim, direta e exclusivamente, as propostas originais dos textos papais?
- No caso de que as propostas façam referência também aos comportamentos ativos e omissos do Papa, proporcionou-se uma demonstração suficiente sobre a congruência das mesmas em relação a tais comportamentos?
2.2. A segunda pergunta é:
- A qualificação como heresia é considerada, aqui, em seu sentido próprio, concernente às doutrinas que requerem o assentimento da fé teologal (doutrinas de fide credenda), segundo o can. 750, parágrafo 1 do Código de Direito Canônico?
Ou os redatores pretendem atribuir a qualificação de “heresia” também às afirmações que contrastam só com as doutrinas de fide tenenda, segundo o can. 750, parágrafo 2 do Código, entre as quais, de acordo com a nota doutrinal ilustrativa da Congregação para a Doutrina da Fé anexa ao Motu proprio de 1998 Ad tuendam fidem, é preciso incluir também não poucas verdades de ordem moral? E, em caso positivo, como se justificaria esta qualificação, que não parece estar de acordo com as indicações da própria nota?
1) “Uma pessoa justificada não tem a força, com a graça de Deus, para seguir as exigências objetivas da lei divina, como se qualquer um dos mandamentos de Deus fosse impossível para os justificados; ou como significando que a graça de Deus, quando produz a justificação do indivíduo, não produz invariavelmente, e de sua própria natureza, a conversão de todo o pecado grave, ou não é suficiente para a conversão de todo pecado grave”.
Em que ponto de seu ensinamento o Papa fala de impossibilidade de observar os mandamentos por parte de quem está justificado?
Com isto, faz-se referência a uma impossibilidade absoluta ou a uma dificuldade concreta mais ou menos grave, ainda que seja temporal?
As duas hipóteses são equiparáveis em relação à doutrina exposta no capítulo 11 do decreto sobre a justificação do Concílio de Trento?
2) “Os católicos que obtiveram o divórcio civil do cônjuge com o qual estão validamente casados e contraíram um matrimônio civil com alguma outra pessoa, durante a vida de seu cônjuge, e que vivem more uxorio com sua parceira(o) civil, e que escolhem permanecer neste estado com pleno conhecimento da natureza de seu ato e com pleno consentimento da vontade do ato, não estão necessariamente em um estado de pecado mortal, e podem receber a graça santificante e crescer na caridade”.
3) “Um crente católico pode ter pleno conhecimento de uma lei divina e optar por violá-la voluntariamente em uma matéria grave, mas não estar em um estado de pecado mortal como resultado deste ato”.
Considerando que no n. 305 da Amoris Laetitia se diz que “por causa dos condicionamentos ou fatores atenuantes, é possível que uma pessoa, no meio de uma situação objetiva de pecado – mas subjetivamente não seja culpável ou não o seja plenamente –, possa viver na graça de Deus, possa amar e possa também crescer na vida de graça e de caridade, recebendo para isso a ajuda da Igreja”, em que sentido esta passagem refletiria as afirmações presentes nas propostas “heréticas” 2 e 3, ao passo que parece, ao contrário, contradizê-las certamente, com referência ao requisito da culpabilidade subjetiva?
Além disso, em que outra passagem de seus documentos ou discursos o Papa afirmou que tais cristãos, em presença da plena consciência da natureza de sua ação e com plena posse da vontade, não estariam em pecado mortal?
4) “Uma pessoa, enquanto obedece uma proibição divina, pode pecar contra Deus por meio deste mesmo ato de obediência”.
De onde saiu esta proposta, formulada nestes termos?
5) “A consciência pode julgar verdadeira e corretamente que os atos sexuais entre pessoas que contraíram um matrimônio civil entre si, ainda que um, ou ambos, esteja sacramentalmente casado com outra pessoa, às vezes, podem ser moralmente corretos ou reivindicados ou, inclusive, mandados por Deus”.
Como se relaciona esta proposta com a da Amoris Laetitia, n. 303, na qual se lê: “Mas esta consciência pode reconhecer não só que uma situação não responde objetivamente à proposta geral do Evangelho, mas reconhecer também, com sinceridade e honestidade, aquilo que, por agora, é a resposta generosa que se pode oferecer a Deus e descobrir com certa segurança moral que esta é a doação que o próprio Deus está a pedir no meio da complexidade concreta dos limites, embora não seja ainda plenamente o ideal objetivo”?.
Trata-se de uma diversidade só linguística ou de tipo expressivo, ou também de uma diversidade no conteúdo?
6) “Os princípios morais e as verdades morais contidas na revelação divina e na lei natural não incluem proibições que condenam absolutamente certos tipos de atos, porque são sempre gravemente ilícitos por causa de seu objeto”.
A afirmação da Amoris Laetitia 304, segundo a qual “é verdade que as normas gerais apresentam um bem que nunca se deve ignorar nem descuidar, mas, na sua formulação, não podem abarcar absolutamente todas as situações particulares”, verdadeiramente, contradiz sob qualquer aspecto a doutrina do intrinsece malum?
Isto ocorre ali onde se tem em conta, ao avaliar as situações particulares, os perfis pertinentes à culpabilidade subjetiva, que enquanto tais não se fixam no objeto das ações?
7) “Nosso Senhor Jesus Cristo quer que a Igreja abandone sua antiquíssima disciplina de negar a Eucaristia aos divorciados e novamente casados, e de negar a absolvição aos divorciados e novamente casados que não expressem nenhuma contrição, nem o firme propósito de reparar seu atual estado de vida”.
A intenção, aqui, é dizer que o abandono da disciplina (entendida como disciplina canônica) subsiste também onde se recorra à clássica probata praxis in foro interno, reconsiderada à luz das indicações da Amoris Laetitia, no que concerne à absolvição na confissão?
No que concerne à Eucaristia, qual é a relação, segundo a “mens” dos redatores da correctio, aos fins que aqui interessam, entre a noção de “pecado mortal” e a noção de “pecado grave manifesto” do artigo 915 do Código de Direito Canônico, tal como é interpretada pela Declaração sobre a admissibilidade à Sagrada Comunhão dos divorciados em segunda união do Pontifício Conselho para os Textos Legislativos, publicada no ano 2000?
Espera-se que provoquem subsequentes reflexões nos autores da correctio e naqueles que desejam compartilhar sua proposta, sem nem sequer imaginar a enorme complexidade das questões em jogo, quando se utiliza a palavra “heresia”, sobretudo quando se aplica aos textos do magistério.
De qualquer modo, é preciso animar o fiel católico que presta a necessária “anuência religiosa do entendimento e da vontade” (can. 752) ao magistério ordinário papal, em cujo âmbito entra também Amoris Laetitia, para que se mantenha em uma disposição de espírito positiva.
Para o restante, a questão da interpretação e a aplicação deste texto terá futuros desenvolvimentos e contribuições por parte de pastores, teólogos e fiéis.
Como também não se deve excluir a possibilidade de posteriores – talvez desejáveis – intervenções da sede petrina, em um futuro mais ou menos próximo.
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Também a “correctio” gera “dubia”. O comentário de um filósofo do direito - Instituto Humanitas Unisinos - IHU