13 Setembro 2017
“Ao longo dos seus 2.000 anos de história, a liturgia católica mudou constantemente em resposta às novas situações e culturas. Assim como o software, ela deve continuar sendo atualizada e ajustada às pessoas e às culturas de hoje.”
A opinião é do jesuíta estadunidense Thomas J. Reese, ex-editor-chefe da revista America e autor de “O Vaticano por dentro” (Ed. Edusc, 1998). O artigo foi publicado por Religion News Service, 12-09-2017. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Em resposta aos pedidos dos bispos do mundo inteiro, no dia 9 de setembro, o Papa Francisco deu mais autoridade às conferências episcopais nacionais para determinarem as traduções e as adaptações litúrgicas. Ele fez isso em uma carta intitulada Magnum Principium ou “O grande princípio”.
A reforma da liturgia foi o efeito mais visível do Concílio Vaticano II (1962-1965), que reuniu todos os bispos católicos do mundo para atualizar a Igreja. Na sua Constituição sobre a Liturgia, de 1963, os Padres conciliares reconheceram a necessidade de encorajar a participação dos leigos e de adaptar a liturgia às culturas locais. Eles haviam antecipado que a maior parte desse trabalho seria feito pelas assembleias nacionais dos bispos, conhecidas como conferências episcopais.
Uma missa provisória, que eu chamarei de “Reforma Litúrgica 1.0”, foi lançada em 1965. Essa versão pedia que se traduzisse a missa para o vernáculo e que se virasse o altar para que ficasse de frente para o povo.
A “Reforma Litúrgica 1.0” foi uma mudança revolucionária, como passar do DOS ao Windows. Novas atualizações e correções foram antecipadas. Em última análise, elas resultaram na missa anunciada pelo papa no dia 28 de abril de 1969, que eu chamarei de “versão 2.0”.
Essa atualização incluiu revisões significativas no rito introdutório, na apresentação das oferendas, no beijo da paz e nas orações eucarísticas adicionais.
O Papa Paulo VI esteve intimamente envolvido no desenvolvimento da missa de 1969. A sua formação litúrgica e a sua experiência com o Rito Ambrosiano enquanto era arcebispo de Milão tornaram-no aberto à possibilidade de usar outras orações eucarísticas além do Cânone Romano.
Por outro lado, ele vetou que se abrisse mão das orações durante a apresentação das oferendas. Os redatores queriam tirar a ênfase dessa parte do rito, que, no passado, era chamado de “Ofertório”. Não havia dúvida de que o Papa Paulo VI, assim como Bill Gates, estava no comando.
Dados os desafios enfrentados pelos reformadores, a “Reforma Litúrgica 2.0” foi uma conquista extraordinária. O novo lecionário das leituras tanto para os domingos quanto para os dias da semana oferece aos católicos uma seleção mais rica do que no passado de leituras das Escrituras. As orações eucarísticas adicionais, embora subutilizadas pelo clero, são grandes acréscimos à vida de oração da Igreja.
As pessoas ficaram um pouco confusas quando a “versão 1.0” foi lançada, mas rapidamente a pegaram e abraçaram a ela e às suas atualizações. Embora alguns obstáculos se opuseram às reformas, a versão antiga da liturgia, assim como DOS, foi desaparecendo.
As reformas seguiram um longo caminho rumo ao aumento da participação dos leigos na Eucaristia, mas o Vaticano hesitou ao permitir adaptações da liturgia às culturas locais. As duas adaptações mais significativas foram para a Índia, no fim dos anos 1960, e para o Zaire, em 1972. Eles foram autorizados, para fins experimentais, por um período limitado de tempo.
Mais atualizações estavam sendo feitas. Orações adicionais foram escritas em inglês para as liturgias dominicais, que se sincronizariam com as leituras litúrgicas do ciclo de três anos. Assim, a oração de abertura retomaria os temas das leituras de cada domingo. Uma tradução nova e melhor em inglês também foi preparada pela Comissão Internacional sobre o Inglês na Liturgia (ICEL, na sigla em inglês). Essa tradução de 1998 foi aprovada por todas as conferências episcopais de língua inglesa, mas nunca foi aprovada por Roma.
Com o passar do tempo, o movimento de reforma experimentou uma crescente oposição no Vaticano e, no fim, uma hostil retomada do controle por parte daqueles, incluindo o cardeal Joseph Ratzinger, que sentiam que as reformas haviam ido longe demais.
O arcebispo Annibale Bugnini, que encabeçara as reformas, foi exilado de Roma e foi enviado como núncio ao Irã em 1976, onde ele celebrou a Missa de Natal pelos reféns na embaixada estadunidense. O cardeal Francis George, de Chicago, em 2002, liderou um golpe na ICEL, removendo aqueles que haviam apoiado a reforma e substitui-os por pessoas mais alinhadas com o pensamento vaticano. Em vez de respeitar as traduções locais, Roma começou a “microgerir” as traduções.
Assim começou a “Reforma Litúrgica 3.0”, ou aquilo que muitos chamaram de “Reforma da Reforma”. A tradução da ICEL de 1998 foi jogada no lixo e substituída por uma tradução estranha e mais literal em 2011. É como o MS Vista, uma versão de 2007 do Windows que foi rejeitada pelos usuários.
Ela também trouxe de volta a versão em latim pré-Vaticano II da missa. Divulgar uma versão antiga e nova da missa causou confusão entre padres e leigos. Foi como se a Microsoft decidisse trazer o DOS de volta.
A reforma da reforma pôs fim a quaisquer novas inovações. Novas ideias não eram bem-vindas em Roma.
No início do seu papado, a reforma litúrgica não foi uma prioridade para o Papa Francisco. Em 2014, ele nomeou o cardeal Robert Sarah como prefeito da Congregação para o Culto Divino do Vaticano. O cardeal apoia a reforma da reforma e até mesmo promoveu missas em que o padre se volta para o Oriente, de costas para o povo.
Essa foi, talvez, a pior nomeação de Francisco. Ele já havia fechado o escritório que Sarah dirigia na Cúria Romana, e Francisco sentiu que precisava lhe dar um emprego. A posição na Congregação estava em aberto.
Quando o Conselho dos Cardeais que aconselha o papa perguntou aos bispos que questões eles achavam que deveriam ser tratadas pelas conferências episcopais e não pelo Vaticano, a resposta quase universal foi a tradução litúrgica. Os bispos estavam cansados de serem criticados por Roma. O cardeal Oswald Gracias, de Bombaim (Mumbai), na Índia, ouviu isso de todas as conferências episcopais na Ásia.
Em resposta, o papa nomeou uma comissão no início deste ano, presidida pelo arcebispo Arthur Roche, o número dois da Congregação para o Culto Divino, para examinar a questão. Isso claramente foi um cerco em torno do prefeito Sarah. O papa aceitou as recomendações deles, e Roche explicou-as à mídia.
A lei da Igreja foi esclarecida pelo papa para enfatizar a intenção original do Vaticano II de conferir autoridade primária às conferências episcopais sobre as traduções litúrgicas. Agora, o Vaticano simplesmente “confirma” ou “ratifica” a aprovação dos bispos a essas traduções depois de revisá-las. Não há mais “microgestão”.
Quando se trata de “adaptações” ou de mudanças na liturgia, o papel do Vaticano é um pouco maior. Ele deve rever e avaliar as adaptações, a fim de salvaguardar a unidade substancial do Rito Romano. O impressionante é que os documentos explicativos citam o Vaticano II, que falou de “adaptação radical” da liturgia. Esse parece ser um claro convite às conferências episcopais para proporem mudanças significativas na próxima etapa da renovação litúrgica.
Como poderá ser a próxima fase, a “Reforma Litúrgica 4.0”?
Um primeiro passo seria analisar as atualizações que foram canceladas por causa da reforma da reforma. Embora as pessoas se confundiriam se as suas respostas na missa fossem mudadas de novo, não causaria nenhum problema permitir que os padres usem a boa tradução da ICEL de 1998 como uma alternativa à má tradução inglesa atual. É preciso deixar que os usuários decidam qual interface preferem.
Um segundo passo é esclarecer a posição da liturgia pré-Vaticano II. A Igreja deve ser clara ao afirmar que esse produto está sendo eliminado. Ele só está sendo permitido por respeito às sensibilidades dos fiéis que acham difícil a mudança. Batismos, confirmações, matrimônios e ordenações no rito antigo devem ser descontinuados. O rito antigo não deveria ser ensinado nos seminários. Qualquer seminarista que tenha problemas com o novo rito não deveria ser ordenado. Os pais deveriam ser instruídos a criar seus filhos no novo rito.
Em terceiro lugar, novos prefácios precisam ser redigidos para cada domingo no ciclo de três anos, que retirassem seus temas das leituras das Escrituras daquele domingo, de modo que a assembleia visse uma conexão entre a Liturgia da Palavra e a Liturgia Eucarística.
Em quarto lugar, são especialmente necessárias mais orações eucarísticas que incluam respostas da assembleia, assim como a “Oração Eucarística para Missas com Crianças II”. A Igreja precisa mostrar que a oração eucarística não é apenas a oração do padre, mas de toda a assembleia.
Um quinto passo seria examinar e experimentar o momento do beijo da paz, que, ao longo dos séculos, moveu-se na liturgia. O momento mais antigo era no fim da Liturgia da Palavra.
Essa última recomendação me lembra a enfatizar que a Igreja precisa de um processo melhor para desenvolver e implementar mudanças na liturgia. A Constituição sobre a Liturgia fala sobre conceder às conferências episcopais o poder de permitir “as experiências preliminares necessárias durante um determinado período de tempo entre certos grupos adequados para o propósito”.
Em vez de tudo ter que vir de cima para baixo, a partir do Vaticano, é claro que os Padres conciliares esperavam que as conferências episcopais fossem criativas no desenvolvimento das adaptações. Essas adaptações, mesmo as “adaptações radicais”, seriam testadas localmente antes de serem propostas para a aprovação da Santa Sé.
No mundo secular, isso se chama “teste-beta” ou “teste de mercado”. Obter feedback da assembleia para melhorar as adaptações seria uma parte essencial desse teste.
Ao longo dos seus 2.000 anos de história, a liturgia católica mudou constantemente em resposta às novas situações e culturas. Assim como o software, ela deve continuar sendo atualizada e ajustada às pessoas e às culturas de hoje. Permitir a criatividade e a experimentação é a melhor maneira de preparar a “Reforma Litúrgica 4.0”.
O Papa Francisco abriu a porta; os bispos precisam fomentar a criatividade.
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Reformar a liturgia católica deveria ser como atualizar um software. Artigo de Thomas Reese - Instituto Humanitas Unisinos - IHU