12 Agosto 2017
Também este ano se renova a tradição, dentro do Festival dos Dois Mundos, dos “Sermões em Spoleto". O ciclo, que abriu em 1º de julho e segue até o dia 15, está sendo dedicado a “A oração de Jesus: o Pai nosso”.
Com "Seja feita a vossa vontade", o cardeal italiano, Gianfranco Ravasi dá continuidade à reflexão sobre as palavras do Pai nosso. O texto foi publicado por Avvenire, 08-07-2017. A tradução é de Luisa Rabolini.
Tertuliano, que foi o primeiro comentarista cristão do "Pai nosso" com o seu De oratione Domini escrito no final do século II, afirmava que esta oração ensinada por Jesus é o "breviarium totius evangelii" (1.6): não por acaso é inserido pelo evangelista Mateus no Sermão da montanha, considerado por muitos como a Magna Charta do cristianismo. Meditar sobre o texto da oratio perfectissima – como a definia são Tomás de Aquino em sua Suma Teológica (II, II, q.83, a.9) –, é, portanto, uma forma de redescobrir a essência da mensagem cristã. Mais ainda, um teólogo, Aimé Solignac, considerava que "o Pai nosso também pode ser a oração de todos os filhos de Abraão, expressão de sua fé em um Deus pessoal que é Pai e Criador e amor fraterno para com todos os homens". Ora, a terceira invocação "Seja feita a vossa vontade assim no céu, como na terra" é, em certo sentido, o desenvolvimento lógico do anterior "Venha o vosso reino". Na verdade, a vontade divina tem por objeto a implementação do Reino de Deus, que se cumpre na paz, na salvação e na justiça, "Deus, nosso Salvador, deseja que todos os homens sejam salvos e cheguem ao pleno conhecimento da verdade" (1Timoteo 2,3-4). Aliás, "Esta é a vontade de vosso Pai que está nos céus, que nenhum destes pequeninos se perca" (Mateus 18:14). "Fazer a vontade do Pai" é também o compromisso fundamental de Cristo: "Porque eu desci do céu, não para fazer a minha vontade, mas a vontade daquele que me enviou. E a vontade do Pai que me enviou é esta: Que nenhum de todos daqueles que me deu se perca" (Jo 6,38-39). No momento supremo de sua morte, Jesus dirige-se ao Pai assim: "Aba, Pai, tudo para você é possível. Afasta de mim este cálice! Todavia, que não seja o que eu quero, mas sim o que tu queres" (Marcos 14:36).
"Fazer a vontade do Pai" é também o principal compromisso do discípulo, como é repetido no Evangelho: "Nem todo aquele que me diz 'Senhor, Senhor', entrará no reino dos céus, mas aquele que faz a vontade do meu Pai, que está nos céus (...) Pois todo aquele que faz a vontade de meu Pai que está nos céus, esse é meu irmão, minha irmã e minha mãe" (Mateus 7:21; 12:50). Claro que, às vezes, aos olhos dos homens a vontade de Deus resulta misteriosa e até obscura: "Todos os povos da terra são como nada diante dele. Ele age como lhe agrada com os exércitos dos céus e com os habitantes da terra. Ninguém é capaz de resistir à sua mão nem de dizer-lhe: ‘O que fizeste?’" (Daniel 4:35). E o protesto de Jó é um testemunho dilacerante disso. Justamente a partir desse contraponto entre vontade-liberdade divina e vontade-liberdade humana, gostaríamos de fazer uma reflexão sobre essa invocação do "Pai Nosso", aprofundando um tema que desde sempre vem envolvendo a teologia e a espiritualidade, aquele da interseção, por vezes problemática, entre a graça divina e a liberdade humana. Começamos pela liberdade-vontade humana exaltada em duas passagens bíblicas. Por um lado, a cena de abertura das Escrituras: o homem e a mulher são colocados nos capítulos 2-3 do Gênesis na sombra "da árvore do conhecimento do bem e do mal", um evidente símbolo da moral com relação à qual a criatura encontra-se livre para aceitar o seu valor ou, ao arrancar o fruto, decidir por conta própria o que é bem e mal. Por outro lado, podemos citar uma passagem emblemática da sabedoria de Israel: "No princípio Deus criou o homem, e o entregou ao seu próprio juízo; deu-lhe ainda os mandamentos e os preceitos. Se quiseres guardar os mandamentos, e praticar sempre fielmente o que é agradável (a Deus), eles te guardarão. Ele pôs diante de ti a água e o fogo: estende a mão para aquilo que desejares" (Eclesiástico 15,14-17).
Ora, o tema do encontro entre a vontade humana e vontade divina é complexo porque supõe um nexo entre antropologia e teologia, ou seja, entre a imanência e a transcendência, entre a criaturalidade e a divindade, entre o homem/mulher e Deus. Um encontro em que nenhum dos dois protagonistas deve prevaricar sobre o outro. De fato, a criatura humana, dotada de liberdade, não pode ignorar o Criador e a sua palavra e, portanto, deve fazer uma escolha livre ouvindo ou recusando essa palavra. Deus, por outro lado, escolheu ter à sua frente um interlocutor livre e não uma estrela regulada por mecânicas celestes obrigatórias e, portanto, respeita a decisão humana, mesmo quando é negativa, apesar de não ficar indiferente, e aqui entra em cena o tema do juízo moral sobre o bem e o mal.
A graça divina, apesar de sua eficácia, desce, portanto, não para dentro de um objeto inerte, mas sim em um ser livre: ele pode acolher ou recusar essa dádiva, pode abrir ou deixar fechada a porta de sua alma à qual bate o Senhor que passa, para usar a célebre metáfora do Apocalipse (3:20). Padre David M. Turoldo expressa com muito acerto esse aspecto delicado e fundamental – sobre o qual se debruçaram por séculos os teólogos ao tentar definir o equilíbrio – quando escreve: "Tenho certeza que Deus me descobriu, mas eu não tenho certeza se eu descobri a Deus. A fé é um dom, mas ao mesmo tempo é uma conquista".
[...] Ser livre não é uma pura e simples reação instintiva, nem apenas um isentar-se de uma opressão ou imposição, mas é uma escolha voluntária, coerente e consciente entre diferentes opções para uma meta a ser alcançada. É por isso que o dramaturgo alemão Georg Büchner na Morte de Danton (1834) afirmava que "a estátua da liberdade está sempre em fusão e é fácil queimar-se os dedos". Viver na liberdade autêntica, como muitas vezes lembra também São Paulo, é um ato comprometedor porque envolve uma escolha rigorosamente voluntária e consciente. Do grande romancista russo Fiódor Dostoevsky inferimos uma sugestiva reflexão sobre a relação entre fé e liberdade, justamente partindo da figura de Cristo. Ele escrevia: "Tu não desceste da cruz quando gritavam-te: ‘Desce da cruz e acreditaremos que és tu! Não o fizeste, porque de novo não quiseste te sujeitar ao homem (...) Desejavas um amor livre e não de entusiasmos servis, tinhas sede de uma fé livre, não fundamentada no prodígio". O escritor evoca a cena do Gólgota com o Cristo moribundo sofrendo a zombaria dos transeuntes: "Ó tu que destróis o santuário, e em três dias o reedificas, salva-te a ti mesmo! Se és Filho de Deus, desce da cruz! Ele salvou aos outros, a si mesmo não se pode salvar! É Rei de Israel, desça agora da cruz, e acreditaremos nele" (Mateus 27,39-42). Assim como durante a sua existência terrena tinha evitado gestos taumatúrgicos espetaculares, preocupando-se apenas em curar o sofrimento humano, muitas vezes à parte da multidão e impondo o silêncio sobre os que recebiam os milagres, assim também, nesse momento extremo, Jesus confia a sua revelação não ao prodígio, mas ao escândalo da cruz. Ele não procura adesões interessadas e forçadas, mas convida para uma fé voluntária e guiada pelo amor, que é por excelência um ato de liberdade.
Sem essa dimensão, a fé torna-se paródia, como se intui pela reconstrução que a escritora francesa Simone de Beauvoir fez sobre a sua crise na juventude que a levou a abandonar a fé. Em suas “Memórias de uma filha obediente” (1958) lembra, de fato, o momento em que no colégio, ouvindo um sermão do padre capelão Martin sobre a obediência, abriu-se nela a necessidade de se libertar do pesadelo da religião, precisamente porque esta – segundo aquela visão que, na realidade, era uma deformação da autêntica fé – envolvia a anulação da liberdade. Ela conta: "Enquanto o abade falava, uma mão boba havia se abatido sobre a minha nuca, me fazia inclinar a cabeça, me enfiava o rosto no chão, por toda a vida me forçaria a andar de quatro, cegada pela lama e pelas trevas; era preciso dizer adeus para sempre à verdade, à liberdade, a qualquer alegria". Por isso, é importante um anúncio correto da fé que, sem fazer concessão a uma acomodação fácil demais, a um compromisso genérico e cômodo, não deforme, porém, a verdadeira alma da fé, introduzindo um rosto desfigurado de um Deus imperial e tirânico, aquele que Lutero chamava de simia Dei, ou seja, a "macaquização de Deus". O crer genuíno não é escravidão, mas sim liberdade, não é imposição, mas sim busca, não é obrigação, mas sim adesão, não é cegueira, mas sim luz, não é tristeza, mas sim serenidade, não é negação, mas sim escolha positiva, não é pesadelo ameaçador, mas sim paz. Como afirmava em um dos seus ensaios, ‘Viver como se Deus existisse’, o teólogo alemão Heinz Zahrnt, "Deus habita somente onde se deixa entrar".
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Livres para cumprir a sua vontade - Instituto Humanitas Unisinos - IHU