10 Junho 2017
“A recusa da fonte grega, ou seja, a universalidade da filosofia, da razão, com a qual todas as Igrejas hoje parecem concordar, é a recusa do Logos (esta, afinal, a único verdadeira, grande "repreensão" lançada em meu livro para Lutero), mas a recusa do Logos significa o fim do cristianismo, pelo menos enquanto religião do Logos que é Deus”, escreve Marco Vannini, um dos maiores estudiosos italianos de mística especulativa. Além de ter editado Mestre Eckhart e muitos outros místicos, é autor, em português, de Introdução à mística (Edições Loyola, 2005), em artigo publicado por Confronti, edição de junho de 2017. A tradução é de Luisa Rabolini.
A resenha que Fulvio Ferrario dedicou ao meu livro Contra Lutero e o falso evangelho, publicada na edição de maio de Confronti, julga o livro "francamente pouco apresentável, sob todos os pontos de vista". Uma sentença que condena sem apelo, certamente lícita, mas que, no entanto, não descreve o conteúdo do livro, definido simplesmente como "uma antologia de clichês, acumulados ao longo de quinhentos anos, temperados por um ódio visceral nos confrontos do personagem". Portanto, consintam-me um breve esclarecimento.
Partimos da constatação que o livro fala de Lutero em apenas dois capítulos, os centrais, dos seis que constituem a obra.
Os dois primeiros questionam, de fato, o que realmente é "evangelho", e "fé". É o evangelho a "boa nova" da presença de Deus, a luz eterna que, como o sol, sempre e sobre todos resplendece, gregos e bárbaros, pagãos e cristãos, comunicando-se com todos aqueles que, evangelicamente, renunciam a si mesmos, odeiam a própria alma, e abrem em si próprios aquele vazio no qual a luz eterna pode entrar?
Ou, ao contrário, é o anúncio que Cristo morreu para nos redimir do pecado de Adão e que se salvarão apenas aqueles que nele crêem? Intimamente relacionada a esta, a segunda questão, igualmente crucial: o que é a fé? É uma crença em realidades ultramundanas, onde a imaginação reina suprema, e talvez em verdades expressas pelas Escrituras, definidas - fora de qualquer racionalidade - "sagradas", e cuja interpretação permite deduzir tudo e o contrário de tudo? Ou é o caminho da inteligência, aliás, de todo o ser, em direção ao Absoluto, que justamente por isso remove todo relativo, todo pretenso saber, faz um vazio em nossa alma e conduz ao nada, àquela "noite" a partir da qual só pode surgir a aurora, ou seja, brilhar a luz eterna? Estas duas questões pertencem - eu acredito - a toda consciência pensante, desde sempre, mas especialmente em nosso tempo, ou seja, depois do Iluminismo, depois da filologia contemporânea, que nos torna extremamente problemática aquela fé como crença e aquela adesão à Escritura que era, talvez, possível, para um homem da Idade Média. Devemos fingir que acreditamos na existência de personagens e de eventos bíblicos sobre os quais já foi demonstrado terem a mesma realidade histórica dos heróis homéricos e da Guerra de Tróia? A suprema blasfêmia é chamar de divino o que é da mão humana, escrevia o humanista alemão Cornelius Agrippa, um contemporâneo de Lutero. Inclusive no mundo cristão do passado, havia quem pensasse que Deus não é um soberano que governa ad arbitrio e que a sua luz também se mostrava sobre os "mestres pagãos" que "conheceram a verdade antes da fé cristã". Que a fé em seu sentido mais forte não seja crença, mas desprendimento, já tinha explicitamente afirmado por Mestre Eckhart, João da Cruz, Hegel (católicos e protestantes, portanto, pois a honestidade e a inteligência não dependem do pertencimento confessional). Precisamente neste sentido, o comentarista mostra em seu artigo um grande desconcerto.
De fato, não consegue enquadrar o livro em uma das categorias que ele conhece e procura apoio por toda parte: no catálogo da editora, no passado de pesquisa do autor, na resenha publicada no Osservatore Romano - negativa como a sua própria, mas que aufere algum mérito ao livro – de forma que para ele parece-lhe como um "meteorito", resultado, talvez, de "debate intracatólico" como uma suposição duvidosa o leva a supor. A solução é muito mais simples: o livro nasce apenas da livre reflexão, e é o fruto do trabalho de meio século dedicado à mística cristã. Ao analisar Lutero, o núcleo essencial da crítica ao Reformador, que o resenhista apenas menciona, é o seguinte. Por sua formação monástica, de Staupitz e através dele Tauler e, principalmente, a Teologia alemã (ou seja, o ‘Livreto da vida perfeita’, que coloca no topo do cristianismo e que fez imprimir duas vezes), ele aprendeu e compreendeu o sentido de "eu" e "meu", tanto nas realidades terrenas como nas esperanças celestiais; portanto, completo desprendimento e abertura para a luz eterna, que assim penetra na profundeza da alma, com toda a bem-aventurança que se segue.
Porém, como aliás é fácil acontecer (conforme o testemunha a história da mística: precisamente contra este perigo tinha sido escrito a Teologia alemã), esta experiência extraordinária converte-se em Lutero em um renovado fortalecimento da egoidade, que confiante de sua superioridade, ergue-se, elevada à enésima potência, acima de tudo. E assim, para usar a linguagem própria da Teologia alemã, a "verdadeira luz" transforma-se em "falsa luz", o ego infla de seu saber interior e condena aqueles que não o compreendem e não o reconhecem como guia. De fato, Lutero ao se tornar líder religioso, inverteu completamente o seu julgamento, condenando sem apelo também a Teologia alemão e toda a mística.
No entanto, é ali que deve ser procurada a chave da experiência religiosa do Reformador e, em comparação a isso, o resto é realmente marginal. Isso foi percebido de imediato alguns dos seus contemporâneos, a partir de seu professor, o venerado Dr. Staupitz, que permaneceu católico, mas também outras grandes figuras, que também haviam aderido à Reforma, como Sebastian Franck e Valentin Weigel, até chegar a Kierkegaard, para quem "a Reforma tentou subtrair com fraude o Evangelho a Deus, invertendo toda a realidade". Podemos dispensar esses personagens e suas críticas como "antologia de clichês", fruto de um "ódio visceral"? E o mesmo se aplica às críticas da Reforma e do Reformador por parte de homens como Erasmo, Bruno, Nietzsche, católicos, protestantes ou o que quer que fossem.
Mas o problema vai muito além de uma polêmica que pode até parecer "ultrapassada". Ele é expresso nos dois últimos capítulos e na conclusão do livro em questão, que deixa Lutero de lado para tratar do mundo clássico, da filosofia antiga, cuja mística é, como alegado por Pierre Hadot, a verdadeira continuação. Quatro, na verdade, e não três, são os elementos que têm valor no relacionamento com Deus: fé, esperança e caridade, mas também e principalmente, verdade, escreve Porfírio na Carta a Marcela. Pois a fé não é uma àlogos pìstis, uma crença irracional, mas distanciamento, e tem como fundamento a virtude, sem a qual "Deus é apenas um nome".
A recusa da fonte grega, ou seja, a universalidade da filosofia, da razão, com a qual todas as Igrejas hoje parecem concordar, é a recusa do Logos (esta, afinal, a único verdadeira, grande "repreensão" lançada em meu livro para Lutero), mas a recusa do Logos significa o fim do cristianismo, pelo menos enquanto religião do Logos que é Deus.
Réplica de Fulvio Ferrario
Agradeço ao prof. Vannini pela cortês réplica à minha pequena resenha de seu panfleto contra Lutero. Não tenho nada a acrescentar ao que eu escrevi, nem comentar o que ele escreve. Trata-se, simplesmente, de dois entendimentos distintos e incompatíveis sobre a fé cristã e de suas referências fundamentais, a partir do Novo Testamento.
Como observei na resenha, o Prof. Vannini também assume um posicionamento bem distanciado do "catolicismo tradicionalista" nostalgicamente contrarreformista. Exceto em um ponto. Místicos ou dogmáticos, plotinianos ou papalinos, o denominador comum é: jogue tudo em Lutero. Assim, para além de qualquer discórdia, também fica satisfeito o “Osservatore Romano”.
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Uma reflexão livre sobre a mística cristã. Artigo de Marco Vannini - Instituto Humanitas Unisinos - IHU