10 Junho 2017
Depois de ler a mais recente empreitada de Marco Vannini, Contro Lutero e il falso evangelo (Contra Lutero e o falso evangelho, em tradução livre, Lorenzo de Médici Press, p. 174, 12 €) chega-se à conclusão que o profundo e documentado conhecedor da mística e dos místicos não parece estar atacando Lutero e a reforma protestante, tornando-se uma voz solitária dissonante neste momento em que celebramos os quinhentos anos do seu advento, mas o próprio cristianismo e sua fé, bem como as suas raízes judaicas.
O comentário é de Giuseppe Lorizio, professor de Teologia Fundamental na Pontifícia Universidade Lateranense, Roma, em artigo publicado por Avvenire, 27-05-2017. A tradução é de Luisa Rabolini.
Se esta leitura está correta, então é provável que nenhum cristão possa compartilhar os pressupostos do autor, e muito menos um católico, por isso vai ser impossível submeter a hermenêutica que Vannini oferece de Lutero e de sua em jornada a eventuais posições críticas, que não podem faltar entre os crentes em Cristo Jesus que não concordam com sua mensagem. Em primeiro lugar (não só nas páginas dedicadas especificamente ao assunto, mas ao longo de todo o ensaio) percebe-se um radical posicionamento distanciado da dimensão de alteridade entre Deus e o homem, a transcendência e a imanência, o Eterno e o tempo.
O autor abomina a alteridade e a nega, adotando uma perspectiva profundamente holística, chegando a considerar a ideia de um Deus criador "uma forma ingênua de cosmologia", mas, sobretudo, "uma fantasia devida ao sofrimento de nossa psique", de forma que o relato bíblico é definido (em suas duas versões) como uma "bagunça".
Se for possível certamente acreditar que Lutero radicalize a alteridade, interpretando-a em termos de oposição, no entanto, também não podemos esquecer que é um dos pilares da revelação bíblica (judaico-cristã), da qual o crente não pode prescindir.
Avançando na leitura, vai se descobrindo que o autor assume a polêmica anticristã de Plotino e Porfírio, contrapondo a razão às verdades da fé acerca da encarnação e, principalmente, a ressurreição, interpretada ‘plotinianamente’ como "despertar da alma... não junto ao corpo, mas do corpo".
Vannini acredita que a batalha desses grandes filósofos antigos seja conduzida "em nome da luz da verdade (...) que é o objeto da boa nova, aliás, propriamente a boa nova". Em especial, o kerygma da ressurreição teria origens paulinas, como o cristianismo em geral, esquecendo que no texto mais antigo em que tal anúncio é apresentado, Paulo afirma claramente que está transmitindo o que recebeu (tradição). O autor não esconde a própria simpatia pelas conhecidas teses nietzschianas, que faz questão de reproduzir.
A aspiração do autor, então, seria a de um cristianismo sem redenção historicamente implementada e uma metempsicose (transmigração) da alma, que precisa libertar-se do corpo, a fim de se fundir com o Todo. Não parece marginal a acusação, dirigida a Lutero, de manipular as Escrituras, considerando-as palavra de Deus, enquanto é simples palavra humana, chegando a afirmar que a Bíblia seria o "papa de papel" do protestantismo.
Em última análise, assistimos aqui à recusa de qualquer religião positiva ou revelada, e não parece ser desprezível o fato de que, reportando-se a Bornkamm, "o sentido histórico de Lutero nunca tenha sido um sentido histórico, mas conjuntamente teológico e histórico". Não pode ser diversamente, na verdade, para ninguém, enquanto nunca vai haver um sentido histórico em estado puro, mas o entrelaçamento entre história/fé é constitutivo de toda hermenêutica aplicada aos livros em que a revelação é atestada. Vannini não perdoa ao reformador ter abandonado a atenção para a mística, em especial da Teologia alemã, livreto que Lutero atribuía injustamente a Tauler, mas no qual é expressa a perspectiva do misticismo renano.
Sobre esse argumento está se desenvolvendo um amplo debate. Aqui interessa notar como a opção básica, que anima não só esse texto, mas toda a produção de Vannini (a quem só podemos ser gratos pela quantidade de trabalho executado na recuperação e na interpretação de textos místicos), seja aquela orientada a um misticismo especulativo, que o conduz a valorizar, é claro, nem sempre de forma errônea, o pensamento grego e humanístico, do qual não podemos prescindir nem mesmo enquanto crentes. As recorrentes referências a Hegel impedem ao autor focalizar a problemática de quanto luteranismo existisse em seu pensamento, que hoje justamente pode ser interpretada como uma imensa estaurologia (filosofia da Cruz), bem como a contraposição entre Kierkegaard e Lutero, determinada pela degradação da Igreja dinamarquesa, em que se viveria um cristianismo já mundanizado, esquecendo o elemento ou o fio condutor comum entre o iniciador da reforma e o sombrio teólogo, "pessimista e humorista" de Copenhague, ou seja, a "lógica do paradoxo”.
Finalmente, o dardo lançado por Nietzsche no Anticristo contra o monge alemão, que teria restaurado a Igreja, atacando-a e assim sendo responsável pela sobrevivência da fé cristã no Ocidente, resultará no final em um reconhecimento, que eu como católico sinto obrigação de apoiar por considerar-me em sintonia com o que declarava Joseph Ratzinger, segundo o qual nem mesmo a Igreja Católica seria a mesma sem Lutero, que - como teve oportunidade de dizer em Erfurt - teve a coragem de colocar no centro das discussões a questão de Deus e da misericórdia (justificação), em tempos que tendiam a esquecê-la.
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Se o Lutero de Vannini torna-se um pretexto para criticar o Cristianismo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU