24 Fevereiro 2017
Como ficou evidente antes mesmo de Donald Trump completar o primeiro mês na Casa Branca, foram infundadas as expectativas de vê-lo deixar de lado o discurso “populista” e fazer um governo conservador normal. Também parece claro não se tratar simplesmente de um governo “pragmático” em busca de crescimento econômico, emprego e popularidade.
A reportagem é de Antonio Luiz M. C. Costa, publicada por CartaCapital, 24-02-2017.
A disposição de defender a decisão de banir imigrantes muçulmanos contra a reação popular e do Judiciário revela, pelo contrário, uma agenda dogmática, em nome da qual não se hesita em desdenhar pesquisas de opinião como “fake news” e arriscar o confronto com os setores mais modernos da indústria estadunidense, cujos interesses Trump se propôs a defender.
Entretanto, Trump não é um formulador de ideias. Tem talento para animar auditórios e promover slogans, mas seu livro mais conhecido, A Arte da Negociação, é um apanhado de banalidades sobre autoajuda empresarial composto por um ghost-writer.
Para qualquer de suas entrevistas, discursos espontâneos e tuítes, a expressão “raso como um pires” soa generosa demais. Tudo além da autopromoção é terceirizado. Mas a quem?
“Trump é para nós um instrumento grosseiro. Não sei se ele realmente compreende isso ou não”, disse Steve Bannon a Ken Stern, da revista Vanity Fair, em meados de 2016. Hoje, o ex-banqueiro, cineasta e presidente-executivo do Breitbart News é o estrategista-chefe do governo e tornou-se consenso de que é muito mais que um propagandista.
Entrou no Conselho de Segurança Nacional ao mesmo tempo que os chefes do Estado-Maior e da Inteligência foram rebaixados a meros convidados. Juntamente com o assessor-chefe Stephen Miller, foi o responsável pela formulação e redação do famigerado decreto de banimento de imigrantes e revogou pessoalmente a decisão da Secretaria de Segurança Nacional de excluir os detentores de Green Card. Agora o Guardian o chama “um Richelieu de calças cargo”.
Entender seus verdadeiros planos e ideias tornou-se uma prioridade dos analistas políticos. O New York Times chamou atenção para sua palestra de 2014, em uma conferência no Vaticano do Dignitatis Humanae Institute, ONG ligada ao cardeal conservador Raymond Burke fundada por Benjamin Harnwell, amigo do cardeal e colaborador do Breitbart News.
Bannon, ao lado de Harnwell, advogou na ocasião uma “Igreja militante” contra o jihadismo. De passagem, criticou Vladimir Putin como “representante de uma cleptocracia”, mas admira seu lado nacionalista e conservador e o supõe inspirado por Aleksandr Dugin. “Ele tem um conselheiro que remete a Julius Evola e outros autores do início do século XX do chamado movimento tradicionalista, que eventualmente metastatizou no fascismo italiano.”
A afirmação de Bannon é incorreta. O tradicionalismo não teve nenhum papel na ascensão do fascismo em 1922, então pretensamente popular e futurista. Evola foi introduzido ao tradicionalismo pelo francês René Guénon em 1927 e, nos anos seguintes, quando começou a palpitar sobre política, o regime o ignorou.
Benito Mussolini chamou-o para conversar só em setembro de 1941, após o fracasso militar na Grécia reduzir a Itália a protetorado do III Reich e obrigá-la a curvar-se às obsessões de Adolf Hitler, antes desdenhadas pelo Duce como “delírio racial”. Do complexo esoterismo de Evola, interessava-lhe adotar o “racismo do espírito” como um pensamento italiano original e não uma ordem do Führer.
Evola criticara o materialismo do racismo nazista, focado em traços fisiológicos e anatômicos, como as famosas medições cranianas. Afirmava ser a superioridade racial de natureza espiritual, forjada por “disciplina estrita e tensão de altos ideais”. A longo prazo, a “raça espiritual” moldaria a alma (concebida como intermediária) e o corpo à sua imagem e semelhança.
Evola colaborou com Mussolini, mas, após a guerra, desdenhou a acusação de ter feito propaganda fascista dizendo estar acima disso e ser um “superfascista”. Foi mais simpático ao nazismo e em especial à SS de Heinrich Himmler, com o qual compartilhava o interesse por ocultismo, paganismo e as imaginárias origens hiperbóreas da “raça ariana”.
A admiração não era recíproca. Os nazistas, cuja propaganda se baseava na fraternidade entre os alemães “arianos” enquanto raça superior aos demais europeus, desconfiavam do elitismo supranacional de Evola, cujo sonho era uma “Civilização Solar” europeia organizada em castas.
Quase irrelevante na Segunda Guerra Mundial, a influência de Evola é muito maior nos neofascismos do Pós-Guerra, mais explicitamente no nacional-bolchevismo “eurasiano” de Dugin, no “hitlerismo esotérico” do chileno Miguel Serrano, nos partidos Jobbik (húngaro) e Aurora Dourada (grego) e no ucraniano Batalhão Azov. E na “Alt-Right” dos EUA? Com certeza.
Um artigo de março de 2016, publicado com destaque no Breitbart News de Bannon e intitulado “Um guia à Alt-Right para os conservadores do establishment”, é explícito. “As origens da direita alternativa podem ser encontradas em pensadores tão diversos quanto Oswald Spengler, H. (L.) Mencken, Julius Evola, Sam (T.) Francis, nas campanhas presidenciais de Pat Buchanan e na nova direita francesa.”
É assinado por Allum Bokhari e Milo Yiannopoulos, esse último o provocador racista e antifeminista impedido por manifestações estudantis de palestrar em Berkeley e apoiado por Trump, que ameaçou pelo Twitter negar verbas à Universidade da Califórnia se não o deixarem falar.
Os quatro autores citados não são tão diversos assim. Só Evola é organicamente ligado ao nazifascismo, mas todos revelaram interesse e admiração por Friedrich Nietzsche, o desprezo pelos ideais de igualdade e democracia e a crença em hierarquias naturais e na superioridade da força, da masculinidade, da raça branca e da civilização europeia. Todos foram fascinados por ciclos históricos e grandes narrativas de decadência e renovação.
Todos também tiveram pouco ou nenhum apreço pelo cristianismo. O próprio Bannon é três vezes divorciado, embora se diga católico, defenda a “Igreja militante” em uma organização católica tradicionalista e se alie ao cardeal Burke, cuja oposição ao papa Francisco tem como cavalo de batalha o combate à comunhão dos divorciados.
Típico. Mussolini e Hitler diziam-se católicos e foram cortejados pela Igreja, embora a desprezassem. O terrorista norueguês neonazista Anders Breivik considera-se um “cruzado cristão” sem pisar numa igreja desde a puberdade. Dizer-se “cristão” tem nesses casos um sentido apenas instrumental.
Recordem-se as origens do ocultismo reacionário do qual Guénon e Evola foram expoentes e que Louis Pauwels e Jacques Bergier diluíram e popularizaram com O Despertar dos Mágicos. As igrejas cristãs, apesar de hierárquicas na prática, originam-se de uma mensagem de humildade, igualdade e fraternidade, como insistiram em recordar os anarquistas e socialistas do século XIX.
A bem da coerência, pensadores do elitismo reimaginaram mitos pagãos, zoroastristas e hindus para substituir ou “corrigir” o cristianismo e justificar hierarquias sociais e raciais eternas. Nietzsche deu a essa mensagem sua forma mais respeitável. Arthur de Gobineau, Alexandre Saint-Yves d’Alveydre, Guénon e Papus foram mais característicos.
Outros, como Francis Galton, Ernst Haeckel, Houston Stewart Chamberlain e Madison Grant, optaram por racionalizar suas ideologias e preconceitos “cientificamente”, com darwinismo social e eugenia. O nazismo bebeu das duas fontes, mas, apesar de o partido nascer da esotérica Sociedade de Thule, a segunda predominou fora do círculo de Himmler. Mesmo se idealizava um biótipo “nórdico” no qual muitos judeus se enquadram melhor que a maioria dos alemães e dos hierarcas nazistas, a começar pelo Führer.
Entretanto, os avanços da genética no Pós-Guerra tornaram precários os pretextos biológicos para o racismo. Poucos cientistas insistem no conceito de “raça” além do biólogo Razib Khan, outro herói do Breitbart News. A busca de justificativas respeitáveis para o racismo, a homofobia e o machismo funda-se agora em noções de “cultura” e “identidade” concebidas como entidades orgânicas e essenciais destinadas a enfrentar-se na “guerra das civilizações”.
As releituras de Evola vêm a calhar para a construção dessa narrativa, bem como as de pensadores de ciclos históricos eternos e inevitáveis. Bannon baseou seu documentário de 2009, Geração Zero, nos livros Geração e A Quarta Virada, dos escritores e pseudo-historiadores William Strauss e Neil Howe, segundo os quais os EUA passam a cada 80 a 100 anos por uma “grande virada”, na qual a velha ordem é catastroficamente destruída e nasce uma nova.
A primeira virada foi a Guerra da Independência, a segunda, a Guerra Civil, a terceira, a Segunda Guerra Mundial, e a quarta teria começado com a crise de 2008. “Ele esperava uma guerra ainda maior da crise atual sem parecer perturbado pela perspectiva”, escreveu na Time o historiador (propriamente dito) David Kaiser, entrevistado para o documentário.
Dugin sonha de seu lado com uma “Grande Guerra dos Continentes” entre a “Atlântida” (a Otan e, especialmente, os EUA, o Canadá e o Reino Unido) e a Eurásia, com a vitória final de uma “Ordem Polar” conservadora e o início da “Idade de Ouro”.
É uma fantasia perigosamente complementar, embora seja improvável que o neofascista russo tenha sobre Putin a influência que Bannon lhe atribui. Não estão no mesmo partido e, ao contrário de Trump, o líder russo parece perfeitamente capaz de pensar por si mesmo. É sugestivo, porém, que seja tão fácil ao estrategista-chefe de Trump imaginar Putin como peão de Dugin ou Mussolini de Evola.
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Steve Bannon, o aprendiz de feiticeiro - Instituto Humanitas Unisinos - IHU