23 Fevereiro 2017
Uma panela pode ser uma arma poderosa.
É uma que Shanna Castillo tem usado com precisão desde que começou um grupo de bairro no Facebook --Love Trumps Hate Sunset Park Brooklyn [O Amor Vence o Ódio Sunset Park Brooklyn]--, uma semana depois da eleição de Donald Trump para presidente.
A reportagem é de Ronda Kaysen, publicada por The New York Times e reproduzida por portal Uol, 23-02-2017.
Todo mês, os membros do grupo convidam imigrantes sem documentos do bairro para jantar em suas casas. Com comida, vinho e atenção às crianças, as salas se transformam em abrigos onde os imigrantes podem falar livremente com advogados e defensores sobre seus direitos e riscos.
As sessões de planejamento do grupo, que tem cerca de 300 membros, ocorrem na casa de um membro e no porão de uma cooperativa no bairro. Os participantes levam as panelas, as sobremesas e seus filhos.
"Você realmente forma laços em torno da comida, realmente ajuda a formar a comunidade", disse Castillo, 37, cujo marido, Victor Pacheco, 38, é um imigrante chileno. Os membros levam aos encontros pratos colombianos, mexicanos e vegetarianos.
"Todo mundo está experimentando os alimentos culturais dos outros. E acho que isso é intencional."
Nos meses que passaram desde a eleição, milhões de americanos foram às ruas protestar contra a agenda de Trump, mais notadamente na Marcha das Mulheres em 21 de janeiro e nos aeroportos depois que o presidente assinou o decreto que restringe a imigração. As manifestações públicas chamaram a atenção, mas um movimento mais silencioso está acontecendo nas salas e mesas de jantar da cidade e de todo o país.
As pessoas abriram suas casas a vizinhos e desconhecidos de maneira que nunca fizeram. Algumas que nunca foram politicamente ativas e que podem não ter recebido muitas visitas em casa descobriram que uma sala de estar pode ser um bem valioso quando se procura um lugar para organizar e expandir sua comunidade. E num momento em que muitas pessoas, especialmente imigrantes, se sentem vulneráveis, uma residência pode ser um refúgio.
No norte de Nova Jersey, duas mulheres organizam o Syria Supper Club [Clube de Jantar da Síria], jantares semanais em que refugiados sírios dividem a comida com pessoas da área que se inscrevem online. Em todo o país, um grupo feminista chamado Solidarity Sundays [Domingos de Solidariedade] incentiva as pessoas a convidarem vizinhos para suas casas para tomar aperitivos e contatar autoridades eleitas. Desde a eleição, 11 capítulos do Solidarity Sundays abriram na cidade de Nova York.
Outras reuniões aconteceram de modo mais espontâneo, como quando Patrisse Khan-Cullors e outros ativistas do Vidas Negras Importam se encontraram certa noite em uma casa em Santa Monica, na Califórnia, para uma discussão de emergência sobre as ramificações da ordem executiva sobre imigração.
Em um recente jantar do Love Trumps Hate Sunset Park, cerca de uma dúzia de imigrantes e seus filhos se reuniram em um apartamento de dois quartos com representantes do Immigrant Justice Corps [Corpo de Justiça para Imigrantes], o vereador municipal Carlos Menchaca e dois moradores que trabalham na instituição beneficente Center for Family Life [Centro para a Vida Familiar].
Durante um jantar de arroz com frango, presunto assado e salada de repolho, os convivas nervosos falaram sobre as batidas da imigração federal, disse Rachel Meyer, que participou do encontro e organizou uma reunião anterior. Mais de 600 pessoas foram presas durante o fim de semana nessas batidas, incluindo cerca de 40 na área de Nova York.
Os participantes queriam saber o que aconteceria se fossem deportados. Teriam acesso ao dinheiro que têm nos bancos?
Deveriam fazer uma procuração para seus filhos? Eles também tinham perguntas sobre como lidar com o assédio no metrô e nas escolas. "O clima estava um pouco tenso no início", disse Meyer, 32. "É meio estranho ir à casa de um desconhecido. Mas com o passar do tempo as pessoas relaxaram." Na saída, alguns participantes se abraçaram.
Os jantares também ajudam a forjar laços mais estreitos entre vizinhos, como o que surgiu entre Meyer e sua vizinha de porta, Reba Frankel, 37, depois que as duas organizaram um jantar em dezembro com seus maridos na cooperativa no Sunset Park.
"Nós trocamos receitas de pão e eles cuidaram do gato para nós quando viajamos", disse Meyer. "Agora vamos protestar juntos e nos organizamos e trocamos e-mails todos os dias."
Até os participantes mais jovens notaram uma mudança. "Nossos filhos estão fazendo amizade", disse Castillo, que tem duas filhas pequenas. "Minha filha me disse: 'A única coisa boa da vitória de Trump é que você formou o grupo e eu fiz todos esses novos amigos'."
No final de janeiro, Khan-Cullors, uma fundadora do Vidas Negras Importam, e cerca de outros dez ativistas realizaram uma reunião de emergência em uma casa de dois quartos em Santa Monica, depois de protestar contra a ordem executiva de imigração no aeroporto internacional de Los Angeles o dia todo. Em uma reunião que durou até 0h e atraiu 40 pessoas, um assessor jurídico explicou as implicações da ordem aos convidados. "Eu precisava estar com as pessoas já", disse Khan-Cullors, 33, em uma entrevista por telefone. "Eu precisava saber que temos o apoio dos outros. Não vamos só viver online no mundo das redes sociais."
Para uma geração mais jovem que amadureceu na era das telecomunicações, uma sala de estar parece um local mais natural do que uma sala de conferências em um escritório ou um porão de igreja. Nos primeiros dias do Vidas Negras Importam, Khan-Cullors organizou muitas reuniões em sua casa em St. Elmo Village, uma comunidade de artistas em Los Angeles, onde ela morou até 2015. "Muitos de nós desta geração não estamos interessados em ter nossos pensamentos, nossa propriedade intelectual ou nossa organização dentro de espaços construídos tradicionais", disse ela. A casa é "onde estamos gerando muitas ideias".
"É onde produzimos a próxima etapa para onde o movimento irá", disse ela.
Há também uma longa história de organização política na casa. Grupos iniciantes muitas vezes não têm os recursos para alugar escritórios, então as salas de estar se tornam alternativas viáveis. Nos grupos de formação de consciência no final dos anos 1960, por exemplo, as mulheres se reuniram nas casas de outras em Nova York e em todo o país para discutir o feminismo.
"Na medida em que as mulheres têm poder, tende a ser na casa", disse em entrevista por telefone Gloria Steinem, fundadora da revista "Ms.". "A deusa da terra é uma mulher, pelo amor de Deus."
Certamente, as mulheres apareceram com proeminência nos meses desde que Hillary Clinton perdeu a que teria sido uma eleição histórica da primeira mulher presidente. As marchas de mulheres que ocorreram em todo o país no dia seguinte à posse atraíram até 5 milhões de manifestantes, segundo algumas estimativas, o que as torna as maiores marchas na história dos EUA.
"Acho que estamos vendo a resistência ser liderada pelas mulheres", disse Rebecca Traister, autora de "All the Single Ladies" (Todas as solteiras - ed. Simon and Schuster, 2016).
Veja o Solidarity Sundays. Três mães de Alameda, na Califórnia, começaram o grupo no Facebook um ano atrás, comovidas pelos tumultos em Ferguson, Missouri, e os tiroteios em San Bernardino, Califórnia. Durante um ano, o grupo, com cerca de 800 membros, reuniu-se mensalmente na casa de duas organizadoras para comer, beber e contatar autoridades eleitas sobre preocupações políticas específicas, como a violência policial. Babás cuidavam das crianças. A maioria dos membros são mulheres ou se identificam como mulheres.
Então houve a eleição. Três dias depois, o grupo realizou uma reunião de emergência na casa de Kate Schatz, uma das fundadoras. O encontro, com cem participantes amontoadas na sala, foi "superintensa", disse Schatz, 38, autora de "Rad American Women A-Z" (Mulheres americanas radicais de A a Z - ed. City Lights, 2015). "Passamos o tempo todo propondo ideias." Hoje o grupo tem 12 mil membros, com cerca de cem capítulos que se reúnem em 27 Estados. Manhattan tem quatro capítulos, Queens um e o Brooklyn, seis.
No segundo domingo de cada mês, as convidadas que se inscreveram pelo Facebook chegam à casa da vizinha. No último domingo, Rachel Thieme recebeu para seu terceiro evento em Greenpoint, no Brooklyn. Ela realizou os dois primeiros em seu apartamento; o terceiro ela organizou juntamente com Artineh Havan, também em Greenpoint.
Muitas das participantes nunca haviam sido politicamente ativas, disse ela. Para Thieme, 36, essas reuniões mensais serviram como um despertar político, uma oportunidade de flexionar um músculo político há muito adormecido. Enquanto suas vizinhas faziam telefonemas, ela enchia os copos de aperitivos. "Eu nem sei o que vai acontecer no mundo", disse ela. "Mas o que sei com certeza é que haverá uma tonelada de mulheres radicais em minha casa que querem partir para a ação."
Os capítulos também abriram em partes mais conservadoras do país, como a casa de Kathryn Mahaney em Bay Saint Louis, no litoral do Mississípi. No domingo passado, ela abrigou seu primeiro evento, com mais de dez convivas que beberam bourbon e comeram bolo-rei, prato tradicional do Carnaval. Enquanto outros capítulos se concentraram em ações políticas, Mahaney, 33, viu o dela como um modo de vizinhos politicamente progressistas encontrarem aliados em uma comunidade profundamente conservadora.
Ao abrir sua casa, Mahaney espera fazer que os liberais se sintam menos isolados. "Muitos deles acham que têm de se esconder", disse ela. "Eles têm medo de mostrar suas crenças políticas por medo da reação de amigos e parentes, assim como de desconhecidos."
Em Maplewood, Nova Jersey, cerca de 20 pessoas se reuniram na residência imponente de Kate McCaffrey em uma tarde de domingo recente. Mohammed, 35, e sua mulher, Hamida, 30, refugiados de Homs, na Síria, que pediram que seu sobrenome não fosse citado, passaram dois dias preparando mais de dez pratos em sua nova casa em Elizabeth. Os convivas, na maioria de Nova Jersey e Nova York, pagaram US$ 50 por pessoa para provar as iguarias sírias: quibe, tabule, homus, charutinhos de folha de parreira. O dinheiro coletado é doado às famílias dos cozinheiros que prepararam os pratos. Os convidados tinham de 20 a 60 anos.
Com uma lareira acesa na sala, os convivas se reuniram ao redor de duas grandes mesas para o jantar. Mohammed e Hamida se sentaram ao lado de seus amigos, Rawda, 30, e Haian, 40, refugiados de Homs que também não quiseram citar seu sobrenome. Rawda mostrou em seu celular fotos dos três filhos brincando na neve na frente de sua casa em Elizabeth. Sem um intérprete presente, os convidados se esforçaram para se comunicar usando apps de tradução em seus smartphones. "Você conhece a Ikea?", perguntou uma mulher.
Mohammed pareceu desconcertado até que ela lhe mostrou uma foto da loja de móveis em seu telefone. "Sim! Ik-ea", disse ele, pronunciando o nome de modo diferente do inglês. "Temos isso na Jordânia."
Embora algumas pessoas tenham citado a política, a conversa foi em geral leve. Sentar-se para jantar "é normalizador no melhor sentido da palavra", disse Melina Macall, 53, uma fundadora do clube. "Não é uma conversa sobre uma coisa terrível.
Eles já tiveram coisas ruins demais. Isto dá uma pausa a todo mundo."
McCaffrey e Macall iniciaram o Clube de Jantar da Síria em 11 de setembro de 2016, como uma maneira de "reinventar o dia", disse McCaffrey, 50. Inicialmente, as mulheres organizaram dois eventos por mês. Desde a eleição, a procura inchou.
Em janeiro, elas organizaram 51 eventos em várias casas nos subúrbios da área. "Nem todo mundo quer ir a uma manifestação", disse McCaffrey. Jantar juntos "é uma maneira concreta de apoiar os refugiados demonstrando hospitalidade.
É muito tranquilizador compartilhar uma refeição. Você sente que está vivendo de acordo com seus valores."
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Grupo anti-Trump protesta em casa com comida e recepção a imigrantes - Instituto Humanitas Unisinos - IHU