22 Fevereiro 2017
Demora-se menos de dois minutos para se dar conta de que o doutor espanhol Miguel Ángel Martínez-González ensina pelo exemplo. Ele sobe a pé as escadas da faculdade até o segundo andar, onde dá aula de bioestatística a futuros médicos, toma o café sem açúcar e, em um cardápio de restaurante que oferece como opções lentilhas, massa e carne, escolhe sem hesitar os grãos. Está há mais de duas décadas em busca de evidências científicas para respaldar as benesses atribuídas pela tradição à dieta mediterrânea.
A reportagem é de Cristina Galindo, publicada por El País, 21-02-2017.
O catedrático de Saúde Pública da Universidade de Navarra, e desde junho também professor visitante de Harvard, é um dos cérebros do relatório Predimed, o mais amplo realizado até agora sobre os efeitos da dieta mediterrânea, originária do sul da Europa: o acompanhamento de um coorte formado por 7.500 participantes recrutados em toda a Espanha durante uma década demonstrou que esta reduz em 66% os problemas circulatórios, em 30% os infartos e derrames e em 68% o risco de câncer de mama.
No corredor ao lado de sua sala no campus de Pamplona, onde é realizada esta entrevista, estão pregados em uma cortiça os trabalhos que seu departamento publicou recentemente em revistas científicas. “É o muro da autoestima”, brinca. O médico malaguenho, de 59 anos, colabora desde os anos noventa com diversas pesquisas da Escola de Saúde Pública de Harvard, referência mundial em nutrição. Dali tirou a inspiração e os conhecimentos para contribuir para criar não só o projeto Predimed —suas descobertas já estão incluídas nos guias nutricionais oficiais dos Estados Unidos— como também o SUN, um programa no qual mais de 22.000 pessoas, 50% delas profissionais de saúde, colocaram à disposição dos pesquisadores —de forma continuada desde 1999— dados sobre sua saúde e estilo de vida que serviram para dezenas de trabalhos de pesquisa. Também começou recentemente outro projeto, Predimed Plus, que tenta demonstrar por meio do acompanhamento de quase 7.000 pacientes obesos durante quatro anos que com a dieta mediterrânea melhorarão sua dieta, aumentarão sua atividade física e perderão peso.
Eis a entrevista.
Já é um fato científico: a dieta mediterrânea é saudável. Então, por que há tanto sobrepeso nesses países?
Muita gente diz que conhece e segue a dieta mediterrânea. Mas a realidade é que as gerações jovens incorporaram a dieta norte-americana. Come-se carne vermelha e processada demais. Não quero dizer que temos de nos tornar vegetarianos. Mas a evidência científica indica que, à medida que aumenta a porcentagem de proteínas vegetais sobre as animais, cai brutalmente a mortalidade cardiovascular e por câncer. A dieta mediterrânea, sobretudo o consumo de azeite de oliva extra-virgem, frutas secas, frutas, verduras e legumes, é a melhor opção. Depois, melhor comer peixe do que carne e, esta, preferencialmente de aves ou coelho. Também convém reduzir o consumo de açúcar e sal, e levar uma vida menos sedentária. Usar mais as escadas e menos o elevador.
Por que é tão difícil emagrecer?
Primeiro, porque é preciso ter muita força de vontade para perder quilos e não recuperá-los. Mas é que, além disso, certa indústria alimentícia exerce grande pressão para colocar muitos alimentos a nossa disposição a toda hora, a um custo muito baixo e em grandes quantidades. O que está mais acessível nas prateleiras dos supermercados? Alimentos ultraprocessados, com grande densidade energética, porque têm muita gordura, açúcar e sal, às vezes contra a natureza do produto, como acontece com o ketchup. O que ele tem a ver com molho de tomate? E é vendido e consumido em quantidades industriais. Além disso, as porções grandes e baratas incham as pessoas. Vivemos em uma cultura de sobrealimentação. As opções mais saudáveis deveriam estar mais disponíveis.
Por mais que a indústria queira tentar as pessoas, elas sabem que tudo isso não é muito saudável. Ninguém as obriga a comer.
A maior parte das escolhas que fazemos não são muito racionais. O economista Richard H. Thaler, referência na teoria das finanças comportamentais, e Cass R. Sunstein, outro especialista em economia comportamental, explicam isso muito bem em um de meus livros favoritos, O empurrão para a escolha certa (Ed. Campus). As pessoas costumam optar pela decisão mais fácil, e há um certo tipo de indústria que lhes dá esse empurrãozinho. Por isso, acredito que é preciso tornar o saudável mais acessível, dar pistas de que se deve escolher para comer bem. São estratégias de saúde pública para construir uma sociedade mais saudável. De tal maneira que, como padrão, lhe ofereçam pão integral. O suco, sem açúcar. Thaler e Sustein chamam isso de paternalismo libertário. As pessoas devem ser livres para escolher, mas acredito que é preciso informar e proteger contra escolhas impensadas e prejudiciais. Sem forçar. Isso é o que ensino em medicina preventiva.
O Governo espanhol acaba de anunciar a criação de um imposto que penaliza o consumo de refrigerantes. O que o sr. acha?
Sou partidário de que se subvencione o azeite de oliva extra-virgem, as frutas e as verduras e que se sobretaxe o consumo de carne vermelha e processada, as trash foods e as bebidas açucaradas. Assim se lança uma mensagem clara do que é sadio ou não.
O sr. falava antes do pão. Faz parte da dieta mediterrânea?
Debatemos muito sobre esse tema. A conclusão a que chegamos é que o pão branco é um dos problemas mais graves que temos na Espanha. A grande maioria o consome e assim engorda. É preciso saber que é fundamentalmente um amido, e nosso corpo é super eficiente em transformar amido em açúcar. É como tomar glicose. Basta colocar um pouco de miolo na boca e na hora se sente um gosto doce. E por que a indústria se incomoda de tirar o grão integral? Porque as farinhas refinadas aguentam melhor. São muito úteis comercialmente, mas tira-se delas a parte mais nutritiva e que permite que os açúcares sejam absorvidos mais lentamente. Estamos dando às pessoas, com o pão branco, um combustível de rápida absorção. E isso, especialmente quando já se tem sobrepeso, certa resistência a insulina, é uma bomba. Seria preciso consumir menos e, preferencialmente, integral.
Proliferam agora os livros sobre as diversas teorias de que alimentos engordam mais ou menos. Que as gorduras não são tão ruins como se pensava e o açúcar é a razão da epidemia de obesidade e diabetes. O que é pior, o açúcar ou as gorduras?
O açúcar é um grande problema. É acrescentado em grandes quantidades aos refrigerantes, sucos e produtos engarrafados. As crianças se acostumam a esses sabores super doces e, claro, depois não querem comer uma pera. Mas, ao mesmo tempo, está demonstrado que a gordura saturada tem um efeito negativo sobre a doença cardiovascular. Tanto as gorduras como o açúcar podem ser problemáticos.
A indústria diz que não se pode demonizar alimentos, que é preciso comer de tudo.
Não se demonstrou cientificamente que comer uma ampla variedade de alimentos seja melhor do que restringir alguns. Mas o que interessa dizer para o produtor de carne bovina? Que não há que demonizar nenhum alimento. A indústria tem muito mais recursos do que as autoridades de saúde pública para lançar essas mensagens. Já aconteceu antes. Algumas empresas de alimentação usaram táticas similares às usadas pela indústria de tabaco. Como pagar cientistas para dizer que o tabaco não prejudicava a saúde tanto quanto se acreditava. Chegou-se a dizer que o câncer de pulmão inicial era resultado do desejo de fumar para acalmar a dor. Também se usou dinheiro para desprestigiar os epidemiologistas que trabalham em nutrição.
Comparar a indústria alimentícia à de cigarro não é um pouco exagerado?
Há dois anos publicou-se um relatório na PLoS Medicine com os documentos internos da indústria do açúcar nos anos cinquenta e sessenta. Ali se constata que se sabia perfeitamente que era a causa das cáries dentárias. Naqueles documentos internos se detalha como pagaram a cientistas para que semeassem a dúvida, sobretudo o que pudesse prejudicá-los. Os especialistas em marketing que aconselhavam as empresas açucareiras foram contratados depois pelas de tabaco, que imitaram essas estratégias. Em contrapartida, é preciso destacar que nos últimos anos houve movimentos responsáveis dentro da própria indústria alimentícia para retirar as gorduras trans [as mais prejudiciais] de seus produtos, usar adoçantes não calóricos e reduzir a quantidade de sal.
O sr. aceitou dinheiro da indústria?
Duas vezes. A primeira, em um momento em que nos negaram todos os fundos e a coorte SUN dedicada ao estudo dos hábitos alimentares correu risco de desaparecer. Aceitamos uma oferta da Danone para analisar os efeitos metabólicos do iogurte sobre a obesidade. Foram cerca de 40.000 euros em 2013 (cerca de 130 mil reais hoje). Concluímos que o consumo de iogurte reduzia o risco de obesidade, mas também dissemos que o consumo de frutas reduzia ainda mais. Depois de publicar o estudo, encerramos nossa colaboração com eles e lhes pedi que não me ligassem mais.
Foi publicado o que se quis, por que recusá-los?
É uma pressão muito sutil. Convidaram-me para um simpósio em Boston para falar de nossas descobertas sobre o iogurte. Não gosto de aparecer em um congresso de mãos dadas com uma indústria real. Considero que é melhor para todos os pesquisadores que sejam independentes.
Não recebeu dinheiro dos produtos de azeite de oliva?
Não. A segunda vez foi o Conselho Internacional de Frutas Secas quem nos pagou. Participamos de uma chamada pública competitiva para financiar o Predimed Plus porque distribuíamos frutas secas entre os participantes. Obtivemos um projeto de 50.000 euros (cerca de 164 mil reais) para dois anos, menos de 3% do dinheiro que recebemos nessa época. Agora, o total de nosso financiamento é público: fundos norte-americanos, espanhóis e europeus.
Há pesquisadores que aceitam dinheiro da indústria.
É um assunto delicado. Em 2013, nosso trabalho publicado no PLoS Medicine concluía que era cinco vezes mais provável que os estudos realizados com financiamento de certa indústria concluíssem em favor dessas empresas. Também é interessante contrastar com qualquer estudo que tenha recebido dinheiro de empresas de alimentos com outros independentes e compará-los. Não se pode confiar apenas em pesquisas financiadas pelos interessados. Não se pode ser juiz e parte envolvida. Outra possibilidade seria a indústria aportar esse capital a um fundo anônimo e que não tivesse capacidade para decidir que projetos serão financiados. Ao mesmo tempo, as agências públicas teriam de incrementar seus investimentos em epidemiologia nutricional. A alimentação interessa a toda a população.
A obesidade já é uma epidemia de alcance global.
É a grande pandemia do século XXI, e vai provocar o fato insólito de que nas sociedades desenvolvidas retrocedamos em expectativa de vida. Nos Estados Unidos acabamos de saber que já aconteceu. Um macroestudo recente realizado em Israel mostra que até as pessoas cujo peso está dentro da normalidade, mas na parte superior, resvalando no sobrepeso, sem ser ainda obesos, têm um risco maior de mortalidade cardiovascular. A OMS associa a obesidade a 15 tipos de câncer. Isso tem um impacto na qualidade de vida. Por isso estamos fazendo o estudo Predimed Plus, para ver se com a dieta mediterrânea não ficamos apenas mais sadios, mas também mais magros.
A obesidade é genética?
É hereditária, porque os costumes podem passar de pais para filhos, mas o componente genético não explica a pandemia atual. Em Harvard foi feito um estudo muito interessante em 2012: pegaram 32 genes relacionados à obesidade e viram o que acontecia quando se tomava bebidas açucaradas. Se essas bebidas não eram consumidos, a genética não previa nada. É muito claro. Só na presença de uma dieta não saudável a genética se relaciona com obesidade. Sem dúvida, o papel dos pais é chave, e também o da escola, dos profissionais de saúde, da mídia e da cultura de entretenimento.
Até onde pode chegar a medicina preventiva?
Comecei a me formar como cardiologista, mas logo me dei conta de que gostava de atuar antes, na epidemiologia, nos grandes números. Nos anos noventa, a medicina preventiva era insignificante na Espanha. Foi ganhando prestígio graças à medicina baseada na evidência científica. Antes o médico se fiava em sua inspiração, em seu olho clínico, em sua experiência. Agora há pesquisas que afirmam que depois de estudar 10.000 pacientes isso é o que costuma acontecer. A linguagem da medicina mudou.
Costumava-se dizer que um bom médico era alguém mais velho, com experiência.
Era uma visão subjetiva. Agora há uma base mais objetiva, quantificada, rigorosa, científica, mas nunca deve faltar o afeto humano ao paciente e a atenção personalizada.
Não podemos acabar ficando obcecados com a prevenção?
As pessoas confundem a medicina preventiva com os tratamentos precoces e os exames. Mas o principal é o estilo de vida e a dieta. A vida é simples, pelo menos na teoria: não fumar, permanecer magro, fazer atividades físicas, comer de forma saudável e controlar a pressão arterial, o colesterol e a glicose. Se essas coisas estão sob controle, a mortalidade cardiovascular se reduz em 76%.
Hoje em dia, com um simples exame de sangue ou saliva, é possível prognosticar um câncer em uma pessoa totalmente saudável.
Essa medicina preventiva tem aplicações que são favas contadas. Mas muito pouca gente que pode se beneficiar atualmente. Não há recursos. Ao mesmo tempo, comer mais lentilhas e menos carne está ao alcance de toda a população agora mesmo.
Há um empenho em fazer com que as pessoas vivam muito mais anos.
A qualidade de vida é fundamental. E muito disso se perde com as doenças neurodegenerativas. Estamos pesquisando o efeito da dieta mediterrânea em demências como Alzheimer e Parkinson e começamos a ver que também é benéfico. Calculo que em um anos serão publicados os resultados. Acredito que será uma bomba.
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“O pão branco é uma bomba que estamos dando às pessoas” - Instituto Humanitas Unisinos - IHU