Preconceito e escândalo: atitudes que matam. Comentário de Adroaldo Palaoro

Foto: Canva

27 Setembro 2024

A reflexão bíblica é elaborada por Adroaldo Palaoro, padre jesuíta, comentando o evangelho do 26º Domingo do Tempo Comum, ciclo B do Ano Litúrgico, que corresponde ao texto bíblico de Marcos 9,38-48.

Eis o texto.

“Se alguém escandalizar um destes pequeninos que creem...” (Mc 9,42)

O relato do evangelho de Marcos, indicado para este domingo, nos situa diante de duas grandes tentações que envenenam as relações na comunidade cristã: o preconceito e o escândalo.

Jesus é consciente de nossas fragilidades e incoerências; portanto, tem consciência também de que haverá escândalos e preconceitos entre seus seguidores. Por isso, nos alerta sobre a gravidade deles.

De fato, vivemos mergulhados em um mundo diversificado, fragmentado, complexo e frágil, cheio de agudas necessidades. Ferem a nossa sensibilidade a tremenda violência nas relações interpessoais, a cultura do ódio e da intolerância, o desprezo pelas diferenças étnicas e religiosas, a exclusão avassaladora...

Impulsionados pelo mesmo Espírito de Jesus, guiados pelos critérios do Evangelho, marcados pelos valores universais de respeito, dignidade, solidariedade e acolhida, somos mobilizados a viver atitudes mais humanizadoras, inspirando-nos no modo de ser e viver do Mestre da Galileia.

Na primeira parte do relato, João, o discípulo amado, ingenuamente revela, diante do Mestre, sua atitude preconceituosa ao proibir um homem de “expulsar demônios” em Seu nome. De acordo com esta visão míope, o critério já não é o bem que a pessoa faz, mas “porque não nos segue”. Não se preocupa com a saúde e a vida das pessoas, mas com o prestígio de grupo. Pretende monopolizar a ação salvadora de Jesus.

Todos sabemos que há um monstro que habita as profundezas de nosso ser, devorando-nos continuamente e expelindo seu veneno mortal: trata-se do preconceito. Ele constitui o risco permanente em nossa vida, pois limita a realidade, estreita o coração, inibe o olhar e nos faz incapazes de acolher o bem e a verdade presentes no outro. O mal que o preconceituoso faz a si mesmo e aos outros é enorme.

Marcado pela impaciência e desprovido do espírito de leveza, o preconceituoso é incapaz de relativizar os problemas, atrofia seu desenvolvimento criativo, aniquila seus sonhos e esfria seus relacionamentos. Vive o tempo todo petrificado em suas velhas e deformadas opiniões sobre tudo e sobre todos. Seu autoritarismo o leva a julgar os outros o tempo todo, vendo inimigos e concorrentes por todos os lados e acaba numa extrema solidão

Marcado pela impaciência e desprovido do espírito de leveza, o preconceituoso é incapaz de relativizar os problemas, atrofia seu desenvolvimento criativo, aniquila seus sonhos e esfria seus relacionamentos. Vive o tempo todo petrificado em suas velhas e deformadas opiniões sobre tudo e sobre todos. Seu autoritarismo o leva a julgar os outros o tempo todo, vendo inimigos e concorrentes por todos os lados e acaba numa extrema solidão.

Geralmente, os preconceituosos são dogmáticos e fervorosos, muitos deles tornam-se fundamentalistas, moralistas, legalistas, carregados de hostilidade e intolerância religiosa.

Ao tornarem absoluta uma verdade, os preconceituosos se condenam à intolerância e passam a não reconhecer e a respeitar a verdade e o bem presentes no outro. Não suportam a coexistência das diferenças, a pluralidade de opiniões e posições, crenças e ideias. Daí surgem o conservadorismo radical, o medo à mudança, a violência diante da crítica, a suspeita, a vigilância, o controle autoritário...

A inflexibilidade da alma preconceituosa está ligada ao orgulho; ela tem aquela postura de que tudo sabe e tudo controla, carecendo da humildade de “saber que não sabe”. Não tem senso de igualdade e semelhança, e muito menos de compaixão. Aliada à ignorância, não admite que possa mudar de opinião, pois aferra-se a seus caprichos como um náufrago à tábua que o mantém à tona.

Vive enraizada nas tradições e nas leis, quase sempre antiquadas e ultrapassadas. Enfim, o preconceito impede a pessoa de viver, de se abrir ao mundo, de ser espontâneo e de viver mais intensamente.

Outro monstro que destrói os vínculos na comunidade cristã é o do “escândalo”. A denúncia de Jesus fala de escandalizar a “um destes pequenos que creem em mim”, ou seja, de colocar tropeços no caminho dos mais fracos para fazê-los cair. Marcos fala dos “pequenos”, que são os necessitados de todo tipo, homens e mulheres que não têm posição de destaque ou prestígio para serem reconhecidos, em um contexto social mais amplo, e em especial na Igreja.

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O risco maior de um grupo humano, como o da comunidade cristã, é o escândalo (mal exemplo ou atitude que destrói os outros) e o desprezo, entendido como atitude de superioridade e de rejeição dos outros. Atualmente vivemos numa sociedade muito individualista, pois cada um tende a pensar que deve ocupar-se só de si mesmo, sem cuidar dos outros, como se cada um fosse autossuficiente.

Tal atitude egoica acaba tendo repercussão também na comunidade cristã, onde cada um só se preocupa com seus ritualismos vazios, devoções estéreis, penitências autocentradas..., sem nenhum compromisso com os mais necessitados. Tal vivência religiosa egoica acaba alimentando atitudes de intolerância, preconceito, julgamentos, suspeita com relação àqueles que são os prediletos de Deus. Somente um retorno à fonte do Evangelho e às atitudes oblativas de Jesus em favor dos últimos tornará possível a reconstrução de uma comunidade que deixa transparecer a verdadeira identidade cristã.

Esta é a eterna tentação das comunidades cristãs quando perdem a referência à pessoa de Jesus e caem num formalismo religioso, centrado no “endeusamento” de algumas pessoas que, com sua ostentação e com seu “poder de consciência”, manipulam, desprezam, alimentam medo e culpa, criam divisões..., desembocando nas comunidadesguetos”, reacionárias, petrificadas diante do novo e completamente alienadas do compromisso evangélico com os mais necessitados.

O pior dos escândalos é daqueles que, deturpando suas funções religiosas, abusam sexualmente dos menores e incapacitados, revelam-se autoritários e manipuladores de consciência, impõem pesados fardos legalistas e moralistas sobre os mais humildes e simples... Diante de tal gravidade, uma solução também radical, indicada por Jesus: “ser jogado ao mar com uma pedra de moinho amarrada ao pescoço”.

Escandalizamos quando, com nossa vida, colocamos à prova a fé dos mais humildes; escandalizamos quando nossa atitude e conduta pode ser um perigo para a fé dos mais simples; escandalizamos quando nossa vida é causa de que muitos abandonem o caminho da Igreja; escandalizamos quando matamos a alegria da fé e de Jesus no coração dos simples; escandalizamos quando manipulamos a religião para alimentar culpa e medo de Deus, quando impomos sobre os ombros do mais vulneráveis pesados fardos do legalismo e do moralismo. O escândalo pode causar a morte.

O que a Igreja deve cortar para não ser escândalo? Jesus fala de mão, pé, olho..., em sentido radical, ou seja, para ser verdadeira seguidora do Mestre, ela precisa cortar na raiz e estar disposta a “arrancar” muitas coisas que parecem valiosas: o clericalismo, o poder opressor das consciências, o abuso sexual de menores, a suntuosidade, o rigorismo, a cultura da aparência e da ostentação, a riqueza escandalosa, a falta de humanidade, ritualismos extravagantes, a insensibilidade diante da miséria e violência...

A Igreja de Jesus deve ser boa mão, bom pé e bom olho, para ajudar os outros a viver, a caminhar e a ver. Mas ali onde a mão, olho e pé da Igreja se convertem em “motivo de escândalo” (de destruição dos pequenos) ela deve estar disposta a cortá-los, se não quer cair na “geena”, que é o fogo que destrói.

Esta “poda eclesial” nos situa no centro do Evangelho de Marcos, que é evangelho que anima e estimula, mas também que adverte e corrige profeticamente os seguidores e o conjunto da Igreja, que deve inspirar-se em Jesus no uso de suas mãos, pés e olhos.

Falamos da Igreja que se “automutila”, se esvazia e se torna “pequena” para acompanhar e ajudar os pequenos, fazendo-se evangelho vivo, abrindo um caminho de comunhão e ajuda mútua com os menores e pobres.

Para meditar na oração:

Num mundo plurirreligioso e pluricultural as novas fronteiras estão em todas as partes (não mais geográficas); somos chamados a construir pontes entre os que vivem de um lado e outro da fronteira. Mais ainda, que cheguemos a ser pontes em um mundo fragmentado, cheio de brechas... que isolam as pessoas e os grupos sociais e religiosos; estabelecer pontes de diálogo e reconciliação que permitam criar uma nova forma de convivência respeitosa, justa, harmônica e construtiva.

- Você está aberto(a) à verdade, venha de onde vier, ou se deixa levar por pré-juízos, preconceitos e intolerâncias?

- O que é preciso ser “cortado e arrancado” de sua vida para abrir-se a uma atitude de acolhida e de serviço dos mais humildes e pequenos?

 

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