A reflexão bíblica é elaborada por Adroaldo Palaoro, padre jesuíta, comentando o evangelho do 25º Domingo do Tempo Comum, ciclo B do Ano Litúrgico, que corresponde ao texto bíblico de Marcos 9,30-37.
“Eles ficaram calados, pois pelo caminho tinham discutido quem era o maior” (Mc 9,34)
Continuamos o percurso contemplativo, deixando-nos ensinar pelo Mestre Jesus. No evangelho deste domingo, Ele atravessa a Galileia, a caminho de Jerusalém; e faz isso de maneira reservada, sem dar publicidade. Ele deseja se dedicar inteiramente à instrução dos seus discípulos. É muito importante o que Ele quer gravar em seus corações: seu caminho não é um caminho de glória, de êxito, de poder. Pelo contrário: é o caminho da fidelidade à causa da vida, do compromisso em aliviar o sofrimento humano, da entrega radical em favor dos últimos.
Jesus frustra os planos e as expectativas de seus discípulos e lhes propõe como critério de grandeza o serviço aos outros; estabelece como critério de honra o cuidado dos pequenos. Esta é a lógica do Reino: esvaziamento de toda pretensão de poder e vaidade, que envenenam as relações entre as pessoas, para poder construir a fraternidade sobre outros fundamentos: serviço solidário, atenção compassiva, cuidado amoroso.
Ao chegarem em casa, Jesus sentou-se; quer ensinar aos discípulos algo que eles nunca deverão esquecer. Desmascara a competição entre eles para saber quem era o “maior”. Chama os “Doze”, aqueles que estão mais intimamente associados à sua missão e os convida a que se aproximem, pois os vê muito distanciados d’Ele. Para seguir seus passos e identificar-se com Ele, é preciso aprender duas atitudes fundamentais.
Primeira atitude: “se alguém quiser ser o primeiro, que seja o último de todos e aquele que serve a todos!”. O discípulo de Jesus deve renunciar toda pretensão de ambição, de ser importante, de honras e vaidades. Em sua comunidade ninguém deve pretender estar acima dos outros. Pelo contrário, deve ocupar o último lugar, descer ao nível daqueles que não tem poder e nem ostentam título algum. E, a partir daí, ser como o próprio Jesus: “servidor de todos”.
A segunda atitude é tão importante que Jesus ilustra com um gesto simbólico provocativo: coloca uma criança no meio dos Doze, no centro do grupo, para que, aqueles homens ambiciosos deixassem de se preocupar com honras e grandezas, e centrassem seus olhos nos pequenos, nos frágeis, nos mais necessitados de defesa e cuidado.
Deste modo, Jesus denuncia nossas tendências egóicas que estabelecem hierarquias de mando, divisão entre “superiores e inferiores”, vaidade religiosa. Para Ele, a atitude de serviço não é questão meramente ascética, mas uma proposta profética que quebra qualquer pretensão de divinizar estruturas, de justificar privilégios, de compactuar com os poderosos deste mundo.
Jesus tem plena consciência de que nenhum poder é mediação de salvação; e o pior poder é o “religioso”, pois alimenta medo e culpa, cria dependência doentia e trava toda autonomia pessoal. A cultura do poder suga o “espírito” da vida de uma comunidade, minando sua criatividade e fragilizando seus laços de convivência. O poder não constrói comunidade, pois quem tem poder se cerca de subservientes que cumprem suas ordens, dizem amém às suas ideias ou calam-se coniventes. Por seu caráter impositivo, o poder deteriora relacionamentos, resvalando-se para o terreno pantanoso da competição, da suspeita, da intriga. Quem tem “poder” o centro está em si mesmo; por isso é que toda expressão de poder é violenta, exclui, impõe-se ao outro, domina...
O poder “mata a criança” que todos carregam em sua essência, impedindo-a de se expandir.
A verdadeira grandeza consiste em servir. Para Jesus, o primeiro não é aquele que ocupa um cargo de importância, mas quem vive servindo e ajudando os outros. Os primeiros na Igreja não são os hierarcas, mas as pessoas mais simples que vivem ajudando àqueles que encontram em seu caminho.
O poder é uma das forças mais sedutoras e que sempre exerceu grande fascínio nas pessoas. Não há ser humano que não tenha sido “tentado” pelo canto desta sereia.
Sabemos que o poder nos infla como balões, com desejos de subir, e estar no mais alto, longe de tudo o que é humano, onde as fragilidades e sofrimentos das pessoas não nos afetam, onde possamos vencer, distinguir-nos dos outros...
A palavra “poder” indica sempre uma relação de dependência, manifesta uma desigualdade. Aquele que exerce o poder está acima daquele que se submete a esse poder. Jamais, nem se insinua nos evangelhos, que Jesus se relacionasse com o ser humano a partir da superioridade de quem manda sobre o inferior que obedece. A relação de Jesus com os discípulos e com as pessoas se expressa sempre, nos evangelhos, mediante a experiência do “seguimento”, que nasce da “exemplaridade”, nunca da “submissão”, que é a resposta do fraco ao forte, do pequeno ao grande.
Jesus nunca teve “poder” e nunca transmitiu “poder” aos seus discípulos. Ele deu-lhes “autoridade”, o que é bem diferente. E o evangelho destaca que se trata de uma autoridade “para expulsar demônios e curar enfermos”. Não é um poder doutrinal e, menos ainda, judicial. É uma autoridade terapêutica, para aliviar sofrimentos e fazer felizes as pessoas em suas relações com os demais e sua relação com Deus.
Quem tem poder, o centro está em si mesmo; quem tem “autoridade” o centro está fora, no outro. Significa despertar a autonomia, a autoria do outro; não alimenta dependência, mas ativa o melhor que há no outro.
Jesus, que foi tão tolerante com os discípulos em outras coisas, neste ponto foi taxativo: “Se alguém quiser ser o primeiro, que seja o último de todos e o servidor de todos!”
Ao abraçar carinhosamente uma criança, diante de todos, Jesus indica que o centro de sua comunidade não deve estar ocupado pelos grandes e poderosos que se impõem aos demais, a partir de cima. Em sua comunidade precisa-se de homens e mulheres que “desçam” para acolher, servir, abraçar e bendizer os mais fracos e necessitados.
O Reino de Deus não se expande a partir da imposição dos grandes, mas a partir da acolhida e defesa dos pequenos. Onde estes se convertem no centro de atenção e cuidado, aí está chegando o Reino de Deus, a nova sociedade humana que o Pai quer.
Entrar no Reino significa acolher e compartilhar o Projeto de Jesus; isso torna-se impossível para quem fundamenta sua vida por critérios de poder, prestígio, ambição...
Nesse contexto, o fato de Jesus propor as crianças como paradigma das relações da comunidade do reino, supõe uma mudança radical, eliminando hierarquias. Isso implica identificar-se com os mais desfavorecidos, de considerar dignos aqueles que não são contados, a “massa sobrante”; é preciso uma mudança de mentalidade e compreender que, para os seguidores e seguidoras do Mestre, os primeiros e mais importantes lugares são para os últimos; e não é só por um gesto de compaixão, mas porque essa é a chave para abrir o sentido da conduta no seguimento de Jesus e para compreender o coração do próprio Deus.
O caminho para Deus passa pela descida em direção aos outros, pelo compromisso com os pequenos e últimos, pela compaixão para com os mais carentes...
O Deus que Jesus nos revela é o Deus que se faz presente no pequeno, no simples, naqueles que não tem voz e nem vez neste mundo. Não é o Deus do poder absoluto, nem o Deus que exige obediência e submissão àqueles que se apresentam como seus representantes.
A estrutura da “nova comunidade” não é piramidal ou hierárquica, mas circular. O centro já está ocupado por uma “criança” nos braços de Jesus. Ao redor deles estamos todos, com serviços e ministérios diferentes.
Aqui não há lugar para alimentar “egos inflados”, prepotentes, autoritários...
A casa cristã é o lugar de benção, onde todos são acolhidos, começando pelas crianças, por serem as mais frágeis e necessitadas. Jesus funda a “comunidade da ternura”.
A palavra-chave do evangelho deste domingo é “acolhida”: ela expressa uma atitude de descentramento e sensibilidade diante dos mais vulneráveis; ela quebra toda tendência de imposição sobre os outros e revela que é anti-evangélico alimentar competição para saber quem é mais importante ou mais poderoso.
- Seu espaço familiar, sua comunidade, seu ambiente de trabalho... se revela como lugar de acolhida e de bênção ou ambiente que alimenta competição e ativa o apetite de poder e de vaidade?