Publicamos aqui o comentário do monge italiano Enzo Bianchi, fundador da Comunidade de Bose e da Casa della Madia, sobre o Evangelho deste domingo, 02-07-2023, solenidade de São Pedro e São Paulo Apóstolos (Mt 16,13-19).
A tradução é de Moisés Sbardelotto.
A solenidade dos santos apóstolos Pedro e Paulo reúne em uma única celebração Pedro – o primeiro discípulo chamado nas narrativas dos sinóticos, o primeiro dos 12 apóstolos – e Paulo, que não foi discípulo de Jesus nem fez parte do grupo dos Doze, mas a quem a Igreja chama de “o Apóstolo”, o enviado por excelência, embora esse título, que ele mesmo reivindica para si, nunca lhe seja reconhecido nos Atos dos Apóstolos.
É uma festa já atestada no calendário litúrgico mais antigo que chegou até nós, a Depositio marthyrum do século III, que reúne dois apóstolos de Jesus mortos em Roma em tempos diferentes, mas ambos mártires, vítimas das perseguições contra os cristãos: duas vidas oferecidas em libação por causa de Jesus e do Evangelho.
Os dois apóstolos são, assim, unidos na celebração litúrgica, depois de suas histórias terrenas os terem visto até se oporem: uma comunhão vivida na parrésia evangélica e, justamente por isso, nem sempre fácil, pelo contrário, muitas vezes fatigante.
O baixo-relevo em calcário conservado em Aquileia [imagem acima], assim como a iconografia tradicional que narra o abraço entre os dois, quer exprimir precisamente essa custosa comunhão que garantiu a obra de cada um dos dois como fundamento da Igreja de Roma, o lugar onde terminou a corrida deles, o lugar que viu ambos serem mártires no tempo de Nero, condenados à morte pela mesma motivação.
Pedro está entre os primeiros chamados por Jesus: um pescador de Betsaida no lago Tiberíades, um homem que certamente não deu muito espaço a uma formação intelectual e que vivia a própria fé sobretudo graças ao culto da sinagoga aos sábados e depois, após o chamado de Jesus, por meio do ensinamento daquele mestre que falava como nenhum outro antes dele. Homem generoso e impulsivo, Pedro seguiu Jesus respondendo impulsivamente ao chamado, permanecendo como um homem inconstante, presa fácil do medo, capaz até de covardia, a ponto de desconhecer aquele que ele seguia como discípulo.
Sempre próximo de Jesus, às vezes ele aparece como porta-voz dos outros discípulos, no meio dos quais ocupava uma posição de destaque: não se poderia falar dos acontecimentos de Jesus sem mencionar Pedro, que foi o primeiro que ousou confessar audazmente a fé em Jesus como Messias. Os discípulos, como muitos na multidão, perguntavam-se se Jesus era um profeta ou até “o” profeta dos últimos tempos, se ele era o Messias, o Ungido do Senhor: foi Pedro quem, instado por Jesus, fez uma confissão de fé com palavras que soam diferentes nos quatro Evangelhos, mas que atestam, todas, sua prioridade no reconhecimento da verdadeira identidade de Jesus.
Pedro fez essa confissão não como “porta-voz” dos Doze, mas movido por uma força interior, por uma revelação que só podia vir de Deus. Crer que Jesus é o Messias, o Filho de Deus, não era possível apenas analisando e interpretando o eventual cumprimento das Escrituras: foi o próprio Deus, o Pai que está nos céus, quem revelou a Pedro a identidade de Jesus (cf. Mt 16,17). Jesus, assim, reconheceu no discípulo Simão uma “rocha”, Kefa, uma pedra em cuja fé a comunidade, a Igreja podia encontrar um fundamento.
Pedro, chamado de “bem-aventurado” por Jesus, declarado rocha sólida capaz de confirmar seus irmãos na fé, não estará isento de erros, quedas, infidelidades a seu Senhor. Logo após a confissão de fé que mencionamos, ele manifestaria seu pensamento mundano demais sobre o caminho da paixão de Jesus, a ponto de este o chamar de “Satanás”, e, no fim da história terrena de Jesus, Pedro declarará nada menos do que três vezes que nunca o havia conhecido: medo e vontade de salvar a si mesmo o levarão a declarar com força que “não conhecia” aquele Jesus cujo conhecimento havia recebido até mesmo de Deus!
Jesus, que tinha lhe assegurado sua oração para que sua fé não desfalecesse, depois da ressurreição o reconfirmará em seu lugar, pedindo-lhe, porém, três vezes, que ateste seu amor por ele: “Simão, filho de João, tu me amas?” (Jo 21,15.16.17). Impactado com essa pergunta de Jesus, Pedro se tornará o apóstolo de Jesus, o pastor de suas ovelhas primeiro em Jerusalém, depois junto às comunidades judaicas da Palestina, depois em Antioquia e finalmente em Roma, onde, por sua vez, deporá sua vida a exemplo de seu Senhor e Mestre.
E, em Roma, Pedro encontrará também Paulo: não sabemos se no cotidiano do testemunho cristão, mas certamente no grande sinal do martírio.
Paulo, “o outro”, o apóstolo diferente, posto ao lado de Pedro em sua alteridade, como que para garantir desde os primeiros passos que a Igreja cristã seja sempre plural e se alimente de diversidade. Judeu da diáspora, natural de Tarso, capital da Cilícia, subiu a Jerusalém para se tornar escriba e rabi no seguimento de Gamaliel, um dos mais famosos mestres da tradição rabínica.
Paulo era fariseu, especialista e zeloso da lei de Moisés, que não conheceu nem Jesus nem seus primeiros discípulos, mas que se distinguiu na oposição e na perseguição do nascente movimento cristão. Paulo define-se como um “aborto” (cf. 1Cor 15,8) em relação aos outros apóstolos que viram o Senhor Jesus ressuscitado, mas pedia para ser considerado um enviado, servo, apóstolo de Jesus Cristo como eles, porque tinha posto sua vida a serviço do Evangelho, fizera-se imitador de Cristo também nos sofrimentos, havia dado o seu máximo em viagens apostólicas por todo o Mediterrâneo oriental, era habitado por uma solicitude por todas as Igrejas de Deus.
Sua paixão, sua inteligência, seu empenho em anunciar o Senhor Jesus transparecem em todas as suas cartas, e também os Atos dos Apóstolos dão um sincero testemunho disso. Por sua própria definição, ele é “o apóstolo dos gentios”, assim como Pedro é “o apóstolo dos circuncisos” (Gl 2,8).
Pedro e Paulo, ambos discípulos e apóstolos de Cristo, mas tão diferentes: Pedro, um pobre pescador, Paulo, um rigoroso intelectual; Pedro, um judeu palestino de um vilarejo obscuro, Paulo, um judeu da diáspora e cidadão romano; Pedro, lento para entender e para agir em consequência, Paulo, consumido pela urgência escatológica...
Foram apóstolos com dois estilos diferentes, serviram ao Senhor com modalidades muito diferentes, viveram a Igreja de forma às vezes dialética, senão até contraposta, mas ambos buscaram seguir o Senhor e sua vontade, e juntos, precisamente graças à sua diversidade, souberam dar um rosto à missão cristã e um fundamento à Igreja de Roma que preside na caridade.
Juntos, então, é justo celebrar sua memória, que é memória de unidade na diversidade, de vida entregue por amor do Senhor, de caridade vivida na expectativa da volta de Cristo.
A iconografia os representa unidos em um abraço ou enquanto sustentam a única Igreja que juntos ajudaram a edificar: uma sinfonia que é memória e profecia da única comunhão eclesial na qual Pedro deve abraçar Paulo, e Paulo deve abraçar Pedro.