A reflexão bíblica é elaborada por Adroaldo Palaoro, padre jesuíta, comentando o evangelho da Festa de São Pedro e São Paulo, ciclo A do Ano Litúrgico, que corresponde ao texto bíblico de Mateus 16,13-20.
“E vós, quem dizeis que eu sou?” (Mt 16,15)
Neste domingo, a liturgia nos convida a “fazer memória” de São Pedro e São Paulo, dois personagens instigantes, inspiradores e motivadores para todos nós cristãos, seguidores(as) d’Aquele que continuamente nos desafia com sua pergunta: “E vós, quem dizeis eu sou?”
Não se trata de dar uma resposta teológica, mas de reforçar nossa adesão e identificação à pessoa de Jesus Cristo. Por isso, cada um responde de maneira diferente, porque não há um seguimento igual para todos.
Foi assim que, Pedro e Paulo, com suas personalidades tão distintas, deixaram-se impactar pela pergunta de Jesus e souberam responder com a vida; por isso, eles são referências para nós.
Há perguntas inofensivas, fáceis de responder e que não nos comprometem. O problema está quando nos fazem perguntas nas quais nos sentimos implicados.
Há perguntas que parecem ser de pesquisas; e há perguntas que nos des-velam por dentro. Há perguntas secundárias sobre as quais podemos dizer qualquer coisa. E há perguntas essenciais que nos movem a falar de nós mesmos. E essas perguntas doem porque são perguntas que desnudam o fundo de nosso coração. São perguntas que nos implicam naquilo que somos realmente.
O perguntar é ousado, instigante; perguntar contém desafio, provocação; leva dose de irreverência.
“Perguntar é mergulhar no abismo” (Exupéry). As perguntas têm uma força que não encontramos nas respostas. Enquanto perguntamos por alguém, palpita em nós um impulso, um interesse que não se apaga enquanto não sacia nossa curiosidade.
A pergunta é movimento; é a pergunta que faz emergir a novidade, pois ela ativa a busca por uma resposta criativa. Mais ainda, perguntar põe em crise certas convicções, ideias fechadas, modos arcaicos de viver...e nos mantém em busca permanente.
É neste nível que surge a pergunta de Jesus aos discípulos, na região de Cesareia de Filipe.
Ele não pergunta aos seus discípulos sobre o que pensam a respeito do Sermão da Montanha ou sobre sua atuação curativa juntos aos doentes da Galileia. Para seguir Jesus, o decisivo é a adesão à sua Pessoa. Por isso quer saber o que eles pensam e sentem, depois de um tempo de convivência com Ele.
Jesus propõe a pergunta fundamental, “e vós, quem dizeis que eu sou?”; uma pergunta exigindo que eles se examinem a sério, que tomem consciência do que pretendem, que explicitem as reais motivações que os levam a segui-lo. Responder à pergunta “Quem sou eu para vocês?” é fazê-los comprometer com um novo estilo de vida, é assumir o novo caminho com Ele, é arriscar-se numa aventura.
A pergunta é desafiadora, e não simples curiosidade e inquietação, e se dirige a todos. Cada um tem de dar sua resposta. Ela exige uma tomada de posição, um ato de fé.
Pedro e Paulo responderam com suas vidas a pergunta feita por Jesus; por isso, eles não são somente duas colunas que sustentam a grande comunidade cristã; eles representam as duas dimensões essenciais para o dinamismo da Igreja. A liturgia intuiu que é preciso integrar as identidades destes dois personagens. Não se pode privilegiar um em detrimento do outro.
Nos Evangelhos, Pedro é o pescador que, impactado pela presença e pelo convite de Jesus, vai entrando, aos poucos, em sintonia com Ele. Um encontro que vai crescendo em adesão à proposta do Reino; um caminho de seguimento que tem seus momentos de obscuridade e de crise, sobretudo ao ver o fracasso do Mestre condenado pelas autoridades religiosas e políticas.
Pedro é o protótipo do cristão que vai se convertendo, abrindo-se à presença desconcertante de Deus na conduta histórica de Jesus. Em Pentecostes, Pedro fala em nome dos primeiros discípulos, cuja fé vem a ser normativa para todas as gerações que se sucedem na história da igreja. Ele confessa o artigo central e original da fé cristã: “Jesus Cristo é o Filho de Deus vivo”. E se a Igreja se mantém firme nessa confissão, nada nem ninguém a destruirá.
Entre os discípulos de Jesus, Pedro foi sem dúvida o mais atirado, o mais impulsivo, com o perigo que isso implica. Era o líder do grupo, o primeiro a falar em qualquer circunstância, sem medo de repreender Jesus quando este anuncia sua paixão, sem medo de levar uma reprimenda quando Jesus quer lavar os pés ou quando anuncia que todos o trairão. O fato de ser tão lançado o situa também no lugar mais perigoso, o da negação de Jesus. Mas, ele mesmo termina confessando depois da ressurreição: “Tu sabes tudo, tu sabes que te amo”. Não é novidade que Jesus o visse como o líder natural do grupo depois de sua morte e ressurreição.
Paulo, por sua vez, é o homem universal. Alcançado e convertido pela presença do Ressuscitado, ele abriu a Igreja ao mundo grego e romano, superando os moldes da religião judaica. Com sua itinerância, rompeu as fronteiras geográficas, culturais e religiosas, pois, para ele, o Evangelho de Jesus é anúncio de salvação para todos os povos. O que muitos não conhecem é a revelação que Deus lhe fez e que ele tanto insiste em suas cartas: que a boa notícia de Jesus não era só para os judeus, mas também para toda a humanidade.
A expansão da Igreja primitiva é humanamente inconcebível sem a figura de Paulo. Percorreu milhares de quilômetros e se expôs a todo tipo de perigos para levar o anúncio de Jesus “até os confins da terra”.
Em chave de interioridade podemos afirmar que Pedro e Paulo são também dimensões de nosso ser. “Pedro” representa a solidez interior, a certeza, a convicção, os valores... Viver a “dimensão Pedro” é cuidar dos fundamentos de nossa vida, a rocha sobre a qual construímos a maneira de viver o seguimento de Jesus.
Nossa própria interioridade é a rocha consistente e firme, bem talhada e preciosa que temos, para encontrar segurança e caminhar no seguimento superando as dificuldades e os inevitáveis golpes na luta pela vida. É no “eu mais profundo” que as forças vitais se acham disponíveis para nos ajudar a crescer dia-a-dia, tornando-nos aquilo para o qual fomos chamados a ser. Trata-se da dimensão mais verdadeira de nós mesmos, a sede das decisões vitais, o lugar das riquezas pessoais, do melhor que há em nós, onde se encontram os dinamismos do nosso crescimento, de onde partem as nossas aspirações e desejos fundamentais, onde percebemos as dimensões do Absoluto e do Infinito da sua vida.
“Paulo”, por sua vez, nos fala da força expansiva, da saída de nós mesmos, de abertura às realidades diferentes. Das raízes profundas brotam as respostas mais criativas e duradouras; a interioridade desvelada ativa a solidariedade e o compromisso como acesso à realidade para transformá-la, desencadeando um movimento de profundas mudanças.
Fundamentados sobre a rocha interior, nossa vida se expande, nos tornamos mais abertos e sensíveis, capazes de escutar os acontecimentos, alimentar uma atenção contemplativa frente à realidade que nos cerca, respondendo a seus apelos e tomando decisões maduras e evangélicas.
Viver a “dimensão Paulo” é abrir-nos à desafiante realidade, entrando no fluxo da “Encarnação do Verbo no mundo” e sendo presenças portadoras da Boa-Notícia do Evangelho.
Como harmonizar “Pedro e Paulo” em nossa vida, para que nosso seguimento de Jesus tenha a marca da criatividade?
Inspirados por eles, nossa vida cristã se centra na identificação com Jesus; afinal, não somos seguidores de uma religião, doutrina, rito..., mas de uma pessoa. E essa identificação se expressa como resposta que damos à pergunta feita na região de Cesareia de Felipe: “e vós, quem dizeis que eu sou?”
Busque, na oração, cavar mais profundamente, até atingir a rocha de seu ser, o fundamento original e consistente de sua personalidade.
- Quais são os valores perenes, as visões ousadas, as experiências fundantes, as opções duradouras... que constituem a rocha inabalável, sobre a qual construir sua vida? Como ser “presença paulina” no seu contexto social, religioso, cultural...?