A reflexão bíblica é elaborada por Adroaldo Palaoro, padre jesuíta, comentando o evangelho do Terça-Feira Santa, ciclo A do Ano Litúrgico, que corresponde ao texto bíblico de João 13,21-33.36-38.
“É aquele a quem eu der o pedaço de pão passado no molho.” (Jo 13,26)
O nosso hábito de fazer refeição também revela traços de nossa personalidade e de nossos comportamentos cotidianos. O nosso modo de estar à mesa revela nossas habituais atitudes no relacionamento com os outros. A mesa é também lugar de denúncia de nossos fechamentos, de nossas pressas, de nossas resistências ao diálogo, de nossos medos, de nossa dificuldade em acolher o diferente...
Infelizmente, outras “mesas” desalojaram a mesa da refeição e ocuparam o lugar sagrado da partilha, da comunhão. Por isso, em muitos lugares, a mesa esvaziou-se de sentido e passou a atender apenas a interesses mesquinhos, fazendo as pessoas conviverem tranquilamente com a perversa dinâmica da exclusão.
A mesa pode ser corrompida e tornar-se o lugar de rupturas e de frieza. A mesa que funciona como estrutura hierárquica, como posição social, se torna pobre, dissimulada, falsa e até artificial.
Há mesas para tudo; mesas solitárias, mesas da corrupção, do poder, da exploração, da traição..., tudo o que envolve interesses, seduções, vaidades...
A frieza acaba tomando conta das relações em torno à mesa; a ausência do verdadeiro encontro aumenta a distância entre seus participantes. Há uma verdadeira profanação da mesa quando ela é transformada em lugar de conchavos sujos, negociatas interesseiras, tramas maldosas.
Sabemos por experiência que nosso corpo a todo instante revela quem somos; certamente ele não deixaria de falar de nossa identidade também nos momentos da refeição.
Nesse lugar sagrado (junto à mesa), os corpos se expõem com muito mais naturalidade e transparência. Com sua linguagem não verbal, eles nos falam de posturas, atitudes, crenças, relações...
Vemos, também, corpos fechados para as relações com o outro: não olham, não escutam, não percebem o outro. Encurvados por sobre o prato de comida enxergam apenas a si mesmos e suas necessidades.
O “outro”, que plantou, cultivou, colheu e preparou tais alimentos, não é levado em consideração.
Seu olhar também não consegue alcançar, com gratidão, o esforço daqueles que fizeram os alimentos chegarem à sua mesa. Aquele que está ao seu lado, ou à sua frente, não lhe diz respeito, é um estranho.
A mesa testemunha, também, corpos machucados, feridos, tristes com sua dor, obesos em sua forma suicida de comer compulsivamente...; eles carregam as “marcas” da rejeição, da exploração, da violência e da competição..., vítimas daqueles que não valorizam a vida.
Aqui percebemos que o “tempero” de nossas refeições somos nós que damos.
Os nossos alimentos terão o sabor de nossos desejos e de nossas intenções, de nossa presença significativa. Por isso é que algumas refeições têm gosto de sangue vivo, de ervas amargas, que são selados com a morte de outros (recordemos a última refeição de Jesus: a traição de Judas e a arrogância de Pedro).
Banquete onde se revelam os passos de um drama mortal: traição, medo, frieza, vingança...
A liturgia deste dia nos recorda que Jesus está celebrando a última refeição com os seus discípulos. Ele que transitara por muitas mesas e propôs a grande mesa da partilha (multiplicação dos pães) agora deseja celebrar a Páscoa judaica com os seus mais íntimos.
Judas também está presente na ceia pascal de Jesus com os discípulos. Ceia que o Mestre preparou com cuidado, sem que escapasse nenhum detalhe. É uma ceia para amigos onde Ele vai revelar sua entrega, totalmente; esse é o sentido da Eucaristia: “memória” de uma entrega.
Mas Judas só participa do ritual, está ausente; permanece aí só por uns instantes, pois tem coisas a fazer, e desaparece sem ter presenciado o que ali aconteceu. Outros assuntos exigem sua atenção.
Sentimos pena de Judas, porque é um homem decepcionado com o chamado de Jesus e sua própria vocação. Está “amargo” e triste porque Jesus não correspondia às suas expectativas como Messias.
Judas não compreende o gratuito, ou seja, o que recebeu de Jesus, as possibilidades de ser apóstolo e sair de si mesmo, entregando-se, doando-se... e tudo quer justificar a partir de seu próprio ponto de vista.
Judas não sabe participar e desfrutar de uma agradável refeição em companhia dos outros, nem se preocupa em agradecer a Jesus pela admirável ceia. Judas caminha para a decepção, a solidão e a morte. Abandona o grupo, sai à noite para alimentar seu “ego inflado”, sofre a decepção frente seus “falsos” amigos, vê que sua vida já não tem saída nem sentido.
Será que Judas entendeu, de fato, o projeto de Jesus? Teria sido capaz de abrir mão de seus esquemas messiânicos para aceitar Jesus tal qual se apresentava? Estaria disposto a seguir um Messias pobre, manso, amigo dos excluídos e marginalizados, anunciador de um Reino incompatível com a violência e a injustiça? Judas esperava tirar partido do Reino a ser instaurado por Jesus. Decepcionado e vendo frustrado o seu intento, não teve escrúpulo em traí-lo.
A verdade é que Judas está “vendido” a outros poderes; tem amigos fora da comunidade, mas não dentro; recebe promessas de fora, mas não se sente a gosto dentro; deixa-se levar por falsar informações, é manipulado, oportunista, egocentrado... Por isso age nas trevas da noite; é que as traições são levadas no coração. As traições não têm rosto, são levadas por dentro. Por isso mesmo, os traidores são tão difíceis de serem reconhecidos, de serem identificados: caminham como todos, comem como todos, bebem como todos. Os “judas” não têm rostos especiais, porque qualquer rosto lhes serve; têm cara de amigos, mas por dentro carregam um coração vendedor de vidas, de dignidades. É que o coração do traidor tem cara de inocente; o coração do traidor é especialista em conservar as aparências.
Com a traição, Judas passou da amizade para a decepção, para a desilusão, para a perda de vinculação até a entrega. Processo lento que foi minando o seu coração, até que ele se corrompeu, a ponto de renegar a amizade e trair.
Com a traição, o fim de Judas é a frustração, o autoaniquilamento, o desespero e a morte na solidão.
Na contemplação da refeição deste dia, o convite é entrar nos sentimentos de Jesus.
Por uma parte, sente a presença daquele que lhe “vai entregar”. Sente o cinismo de quem compartilha a mesma refeição, quando seu coração já traiu o Mestre.
E Jesus conserva um respeitoso silêncio. Sente que seu coração está como que espremido, mas guarda silêncio. Sente que seu coração está dolorido pela frieza do traidor. Mas não o denuncia; até expressa um último gesto de amizade oferecendo-lhe um pedaço de pão passado no molho do seu próprio prato. Inclusive lhe facilita a saída sem que os demais percebam. Jesus o quer fazer sentir seu amor até o final, para lhe dar oportunidade de reagir. Mas, Judas, não foi capaz de acolher o último gesto de Jesus.
O coração do traidor é misterioso. Mas o coração de Jesus é igualmente misterioso: sabe e cala; sabe e protege o traidor até o final.
Contemple e se faça presente na última Ceia. Sinta um clima pesado. Jesus se comove profundamente. E não era para menos.
Escute Jesus que diz em voz alta o que todos estão sentindo: “Filhinhos, por pouco tempo ainda estou convosco”. Fala com ternura. Quer que suas últimas palavras e gestos fiquem gravados nos corações de todos nós.