26 Outubro 2018
“Mestre, que eu veja”!’” (Mc 10,51).
A reflexão bíblica é elaborada por Adroaldo Palaoro, sacerdote jesuíta, comentando o evangelho do 30° Domingo do Tempo Comum - Ciclo B (28/10/2018) que corresponde ao texto bíblico de Marcos 10,46-52.
Continuamos fazendo caminho com Jesus, rumo a Jerusalém. Estamos na última cena, antes de entrar na “cidade santa”, onde acontecerão os mistérios centrais da nossa fé: Paixão, Morte e Ressurreição de Jesus.
Detenhamo-nos em alguns detalhes que o evangelista Marcos deixa transparecer no evangelho deste domingo, para uma maior assimilação do modo de ser e agir de Jesus.
O cego Bartimeu é o símbolo da marginalização: está fora do caminho, jogado na sarjeta, sem poder se locomover, percebendo como os outros vão passando por ele, dependendo deles, de suas esmolas e de seus cuidados, porque não podia fazer outra coisa.
Trata-se de um homem na beira do caminho, que vive às custas da bondade ou da maldade dos outros e, na maioria das vezes, à mercê da indiferença de todos; um homem sem ofício nem benefício e sem serviços sociais que o sustentassem ou o acompanhassem; um ser humano de quem ninguém queria se aproximar porque era tido também como impuro; um cego sem companhia, sem possibilidade de ser amado, habitando na solidão física e psíquica, com o agravante de sentir-se julgado e culpado, sem possibilidade de defesa, porque a sentença já era pública.
A situação de Bartimeu já estava determinada, ou seja, a exclusão; ele aparece aqui como alguém consciente de sua situação desesperada, de seus limites e de que sozinho não poderia superá-los. Mas não fica resignado com sua situação; este é o ponto de partida. Daí o grito por compaixão, quando percebe que Jesus passa por perto.
Como cego, não tem outro meio de chamar a atenção de Jesus senão gritando. Muitas pessoas próximas se irritam e o mandam calar a boca, mas ele o chama mais alto ainda. Ele investe toda sua força nessa oportunidade única e vai até Jesus, expressando assim sua alegria em encontrá-lo e em receber a sua ajuda.
Jesus é aquele que ouve, para e chama justamente aquele cego cujo grito perturbava e incomodava a “tranquilidade” da multidão que o seguia. Ele interrompe bruscamente a sua caminhada apressada para Jerusalém. Os dois ainda não se conheciam, mas era forte, em ambos, o desejo de se encontrar.
O cego levanta-se de um pulo, deixa de lado seu manto, sem hesitar: sua proteção, sua segurança, seu teto..., e entra na luz do olhar de Jesus. Sai de seu fechamento (o manto era considerado um prolonga-mento da pessoa); desfaz-se do que lhe trazia segurança e recupera sua dignidade: “pôs-se de pé”.
Ao lhe perguntar - “o que queres que eu te faça?” -, Jesus está ativando o protagonismo no outro, estabelecendo um diálogo de tu a tu, sem intermediários, oferecendo-lhe a possibilidade de afirmar-se diante de alguém, de ter uma palavra que é escutada (não só um grito que se instala como música de fundo para os transeuntes indiferentes), de expressar os desejos de seu coração, de “empalavrar” suas aspirações e esperanças. O espaço de diálogo experimentado devolve ao cego a confiança, conecta com suas forças resilientes, lhe confere autonomia e o mobiliza a entrar no caminho de Jesus.
A capa que antes acompanhava o cego e o protegia, agora é abandonada. Fica lá, na beira da estrada, marcando o lugar da mudança. A imagem que ela representa é coisa do passado. A capa continua lá no mesmo lugar, mas Bartimeu, agora tomado pelo olhar de Jesus, é homem do caminho, discípulo, seguidor. Ao chamado de Jesus, reage dando um salto. Salta para um novo olhar, salta ainda mais para um novo ser. Salta da vida sem graça, limitada a pedinte da margem do caminho, para a graça da vida de caminheiro solidário rumo à transformação.
Bartimeu viveu a experiência de uma profunda “travessia”: antes, cego e sentado à beira da estrada pedindo esmola; agora, com a visão recuperada, pode fazer a sua escolha: “...e seguia Jesus pelo caminho”. Esta frase expressa mobilidade e proximidade. Depois da experiência do encontro com Jesus, Bartimeu passou da imobilidade ao movimento, da exclusão à inclusão, do afastamento à proximidade...
Para ele, a obscuridade se tornou luz; a marginalidade se tornou estrada; o estranho se tornou familiar; a liberdade se tornou gratidão; a exclusão se tornou seguimento...
Ao “fixar seu olhar” em cada um(a) de nós, chamando-nos pelo nome, seremos movidos(as) a fazer eleições mais radicais e integrais pelo Reino, segundo o modo de ser, de viver e de fazer do próprio Jesus.
“Chamado-resposta” implica, pois, uma troca comprometedora de olhares. O olhar transparente e livre de Jesus ressuscita o nosso olhar tímido e estreito e nos capacita a olhar amplos horizontes: seu povo, seu mundo dividido e excluído... Seu olhar nos predispõe a encontrar motivações saudáveis e maduras que nos permitam olhar e viver no contexto atual plural com amor, com entusiasmo e criatividade.
Precisamos suplicar como o cego do relato de Marcos: “Mestre, que eu veja!”, para poder reconhecer e agradecer, descobrir portas onde antes víamos muros. Hoje somos afetados por muitas cegueiras: não vemos aqueles que economicamente não são contados, e há milhões de pessoas consideradas invisíveis.
Estamos ameaçados pela cegueira da segurança, da intolerância, do preconceito..., e aqueles que são diferentes nos parecem estranhos. As telas frias dos aparelhos eletrônicos tiram o brilho e o calor de nosso olhar e petrificam o nosso coração. Vivemos cegos pela pressa e pelo auto-centramento; e as rupturas humanas, as divisões e o ódio, embotam nossos sentidos e nos cegam a respeito de nossa unidade essencial.
É preciso deixar que o Evangelho e os outros vão nos tirando as vendas, vão nos curando a visão, vão nos despertando para que possamos chegar a ser homens e mulheres de olhos grandes, que contemplam a vida em sua profundidade e em sua vulnerabilidade, e também em suas infinitas possibilidades.
Sabemos que toda a realidade nos entra pelas janelas de nossos olhos. Cultivar a espiritualidade em nossa vida cotidiana tem a ver com aprender a olhar de outra maneira, e aprender a observar sem qualificar, sem medir, sem emitir juízo, simplesmente, recebendo o que existe, deixando-o ser, dando-lhe espaço.
Uma visão sadia, é aquela que sabe ver o outro no melhor de si mesmo, em seu mistério único, em sua originalidade, em todo seu potencial latente ainda por acontecer; e que sabe também aceitar suas arestas, sua parte de sombra, sem rejeitar nada. Um olhar que descobre uma sensibilidade por debaixo da aparente aspereza, que reconhece a benção que se oculta por detrás da ferida. Um olhar amável e incondicional que oferece o espaço para que os nós existenciais comecem a se desatar e a vida possa fluir.
Que possamos olhar através dos outros e ativar dentro de nós aquela bem-aventurança: “Ditosos vossos olhos porque vêem” (Mt 13,16).
A oração é o ambiente natural para mobilizar-nos, expandir nosso olhar e preparar-nos para o grande salto da vida: um novo projeto, um novo compromisso, uma nova missão....
Chegaremos algum dia a aprender, como Jesus, a olhar através dos olhos dos simples e pequenos deste mundo?
Quando nos abrimos a outros olhares, quando chegamos a poder olhar pelos olhos daqueles que estão em um lado da vida diferente do nosso, expande-se em nós a capacidade de perceber e agradecer a realidade.
Nosso modo de olhar depende do lugar onde pisamos: olhar burguês, olhar preconceituoso, olhar intolerante...
- Faça um pequeno exercício de “olhar a si mesmo” com o olhar do pobre, do excluído, daquele que pensa e sente diferente... Como você se sente?
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Tecendo olhares - Instituto Humanitas Unisinos - IHU