23 Setembro 2016
“Um pobre, chamado Lázaro, cheio de feridas, ficava sentado no chão junto à porta do rico”(Lc 16,20). Nesta parábola Jesus desmascara e denuncia, com olhar penetrante, a realidade cruel da Galileia e também a de nosso mundo atual.
A reflexão bíblica é elaborada por Adroaldo Palaoro, padre jesuíta, comentando o evangelho do 26º Domingo do Tempo Comum (25/09/2016) que corresponde ao texto de Lc 16,19-31.
Lucas, mais uma vez, nos introduz no tema de ricos e pobres, que, com esta parábola, alcança sua altura suprema. Trata-se de uma parábola forte, clara e inquietante, que corta a respiração e nos situa, a partir de Deus, na dinâmica das relações humanas. Deixar que a parábola se explique, que nos fale, que nos questione e que ilumine nossa vida, essa é a melhor atitude diante dela.
Este é o tema: um rico petrificado e fechado em sua riqueza, se apodrece com ela, ou seja, perde sua humanidade e se condena, não porque tenha feito coisas más, senão porque estava cego e não viu o pobre à sua porta. É, sem dúvida, uma parábola de nossa sociedade. Aqui é claro: há um “Mundo Epulón” que esbanja os bens reais da vida, enquanto à porta da casa se amontoam pobres e mais pobres.
Nesta parábola Jesus desmascara e denuncia, com olhar penetrante, a realidade cruel da Galileia e também a de nosso mundo atual.
A primeira parte da narração fala de um “rico” poderoso. Suas “vestes finas e elegantes”, indica luxo e ostentação. Só pensa em banquetes suntuosos todos os dias.
O rico não tem nome, pois não tem identidade humana. Não é ninguém. “Era tão pobre que só tinha riqueza”. Sua vida, vazia de amor solidário, é um fracasso.
Muito perto, junto à porta de sua mansão, está estendido um “mendigo”. Não está coberto de linho e púrpura, mas de feridas repugnantes. Não sabe o que é um festim; não lhe dão nem do que cai da mesa do rico para saciar sua fome. Só alguns cachorros de rua se aproximam para lamber suas feridas. Não tem ninguém. Não possui nada. Só um nome cheio de promessas: “Lázaro”, que significa “Deus é ajuda”.
O pobre está fora da porta, rodeado pelos cachorros da rua, mas só a uns passos da mesa do rico, que desperdiça comida em sua casa. O rico está dentro de casa, poucos metros os separam, mas há um abismo entre eles; não há palavras, não acontece nenhuma forma de comunicação entre eles. Estão muito próximos, só os separa uma frágil porta, mas o rico não “vê” o pobre, não lhe interessa sua pobreza, não o olha, não o escuta...
A cena é insuportável. O rico tem tudo, sente-se seguro, não parece necessitar de ninguém. Vive fechado em si mesmo. Não vê o pobre que morre de fome junto à sua porta.
Lázaro, por sua parte, vive em extrema necessidade, faminto, enfermo, excluído, ignorado por aqueles que lhe podiam ajudar. Sua única esperança é Deus.
Jesus não pronuncia diretamente nenhuma palavra de condenação. Seu olhar penetrante está desmascarando a cruel injustiça daquela sociedade. As classes mais poderosas e os estratos mais oprimidos parecem pertencer à mesma sociedade, mas estão separados por uma barreira invisível: essa porta que o rico não atravessa nunca para aproximar-se de Lázaro. Deus, que é Pai de todos, não pode aceitar essa cruel separação entre seus filhos.
A segunda parte da narração nos situa diante de uma grande mudança de perspectiva. A reviravolta é total. Ambos morrem, a morte os iguala, de maneira que o tema das riquezas passa a um segundo plano. Só permanecem eles, suas vidas..., perduráveis, de formas diferentes.
O pobre se salva porque foi simplesmente pobre. Salva-se pela misericórdia de Deus, ou seja, por graça (porque Deus é Deus). Por isso, a salvação é dom, pura graça.
O rico se condena por si mesmo, porque ele escolheu, porque não foi capaz de ver/descobrir/ajudar os pobres que estavam ao seu lado. Nessa linha, a condenação é a rejeição da graça da vida: não ter descoberto o outro.
A conclusão que se deduz da parábola não é que os pobres do mundo devem manter-se como estão, já que esperam a glória futura depois da morte, mas que se abra a porta que separa o pobre do rico, de forma que possam comunicar-se.
Este relato não fala da condenação e salvação futura, mas da nova forma de vida compartilhada que deve se estabelecer neste mundo. O relato não quer que o pobre e o rico continuem vivendo simplesmente em mundos que se encontram hermeticamente selados, afastados um de outro, senão que se encontrem, que o rico abra a porta e ofereça ao pobre um lugar em sua mesa.
Durante o tempo de sua vida, o pobre mendigo e o rico fechado em seu “banquete” egoísta e em seu luxo não se relacionavam entre si, mas poderiam tê-lo feito, pois Lázaro jazia diante da porta da casa do rico: uma porta evoca a possibilidade de comunicação.
Depois da morte não tem como mudar as coisas. O tempo de mudança é este, esta vida.
Aquela barreira invisível na terra se converte agora em um abismo intransponível. O objetivo da parábola não é descrever o céu nem o inferno, mas condenar a indiferença dos ricos e poderosos.
Deus é o primeiro que deseja que vivamos bem, que sentemos à mesa e tenhamos o que comer, que nos vistamos com dignidade. Deus se alegra quando vê a mesa cheia de alimentos e todas as cadeiras ocupadas, todos com bom apetite, vivendo a partilha com o coração pleno de alegria e fraternidade.
Onde está então o problema? Está numa porta. Cresce cada vez mais o número de portas que nos impedem ver, portas que nos distanciam da fome, do sofrimento, da pobreza, da desnudez que há do outro lado. A grande tragédia está no fato de levantar muros, cercas de proteção, portões eletrônicos, que nos impedem ver os rostos dos outros, que nos isolam dos outros, que nos fecham sobre nós mesmos como se ninguém mais existisse.
Diz o ditado que “comer demasiado mel nos faz perder o sabor”; o demasiado bem-estar nos impede ver o mal-estar dos outros; o fato de não carecer de nada, nos faz insensíveis diante daqueles que carecem de tudo; a abundância pode ser um obstáculo para sensibilizar-nos frente à carência dos demais.
Ao ler o Evangelho, nos damos conta de que Jesus, que não tinha nada, era muito sensível àqueles que careciam de tudo; em sua vida não havia nada que lhe impedisse ver a pobreza e o sofrimento dos outros. Isso despertava n’Ele a compaixão, o “sentir-com” os outros. O que os olhos não veem não chega aos nossos sentimentos. O que os olhos não veem não chega ao nosso coração.
Claro que não basta ver. É preciso que o coração seja impactado. É preciso que a realidade nos doa no coração. É preciso que a realidade nos comova.
Não basta saber que existem os pobres; não bastam as estatísticas sobre a pobreza no mundo. É preciso dar um rosto ao enfermo, ao desnudo, ao faminto. A dor sem rosto não nos diz nada. A nudez sem rosto não nos afeta; a fome sem rosto não nos impacta.
É preciso escancarar as portas dos nossos preconceitos, da nossa insensibilidade, dos nossos pré-juizos..., portas que nos fazem acostumar a ver famintos, necessitados, explorados...
Tudo isso pode nos tornar insensíveis. O que Jesus lamenta é nossa insensibilidade e nossa indiferença frente àqueles que passam penúria. Esta é sua condenação radical: uma barreira de indiferença, cegueira e crueldade separa o mundo dos ricos do mundo dos famintos. A riqueza pode ser um grande estorvo no coração; a púrpura e o linho podem ser um escândalo em um mundo de pobreza; os grandes banquetes podem ser um insulto em um mundo onde impera a fome.
- Que impactos tem no seu coração o mundo da exclusão e da violência?
- Quê atitudes você assume para diminuir a insultante riqueza de uns poucos e a escandalosa miséria de muitos?
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Uma porta e um grande abismo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU