Por: André | 07 Fevereiro 2014
A Palavra de Deus deve traduzir-se em compromisso para sermos também nós sal da terra e luz do mundo. E a única maneira de sê-lo verdadeiramente não é, em primeiro lugar, indo à igreja no domingo, mas estando na rua, todos os dias, ali onde vivem as pessoas, ali onde a dignidade humana é ameaçada, ali onde reina a injustiça, ali onde mulheres e homens são rejeitados, ridicularizados e excluídos por causa da sua situação de vida, da sua orientação sexual, da sua nacionalidade, da sua origem, da sua cultura, etc. por aquelas e aqueles que acreditam ser os detentores da verdade sobre Deus e o mundo. Celebrar a eucaristia decorre disso.
A reflexão é de Raymond Gravel, padre da Diocese de Joliette, Canadá, e publicada no sítio Réflexions de Raymond Gravel, comentando as leituras do 5º Domingo do Tempo Comum – Ciclo A do Ano Litúrgico. A tradução é de André Langer.
Referências bíblicas:
Primeira leitura: Is 58,7-10
Evangelho: Mt 5,13-16
Eis o texto.
O evangelho de hoje vem imediatamente depois do relato das Bem-aventuranças. Isto quer dizer que aquelas e aqueles que fazem das Bem-aventuranças o programa da sua vida, são chamados a uma responsabilidade real e atual, ou seja, eles não vão se tornar sal da terra e luz do mundo, no futuro, mas devem sê-los aqui e agora para aqueles que não têm este programa...
1. Uma responsabilidade plena
O evangelho não diz que Cristo é a luz do mundo e que temos que refletir esta luz. O evangelho diz: “Vocês são a luz do mundo” (Mt 5,14). Ou seja, nós temos a mesma responsabilidade e a mesma dignidade que o Cristo ressuscitado. E o mesmo vale para o sal: “Vocês são o sal da terra” (Mt 5,13). Nós temos, portanto, toda a responsabilidade de dar o sabor de Deus e de Cristo aos outros.
2. Uma responsabilidade individual e coletiva
A responsabilidade não é somente individual; ela é também coletiva: ela se endereça aos primeiros cristãos, à Igreja do primeiro século e, através dela, à Igreja de hoje. Devemos precisar que esse discurso de Jesus que chamamos de Sermão da Montanha, reúne diversos ensinamentos de Jesus que são relidos à luz da Páscoa.
3. O sal e a luz
Os dois símbolos utilizados – sal e luz – são ainda hoje muito significativos. O sal é, ao mesmo tempo, condimento e meio para conservar os alimentos (especialmente os peixes na Palestina). O sal é, portanto, o símbolo do que é precioso e também do que permanece. Da palavra sal vem a palavra salário, isto é, o sal que era dado aos soldados como forma de pagamento. Havia também uma expressão antiga: “comer sal com alguém” – o que significava fazer um pacto de amizade com essa pessoa. O pacto de sal era indissolúvel, de sorte que nem o próprio Deus podia desfazê-lo.
No Templo de Jerusalém utilizava-se muito o sal; havia ali inclusive um armazém de sal. Os animais sacrificados eram salgados e o incenso perfumado continha sal. Os recém-nascidos eram esfregados com sal para significar a sabedoria e a pureza moral que se desejava à criança. Antigamente, nos batizados católicos, colocava-se sal na língua das crianças para significar a sua pureza e sua pertença ao Deus da Aliança. Esta prática foi abandonada pela Igreja por motivos de higiene.
Utilizado por Mateus, o sal, que são os discípulos, dá o gosto ao Reino que eles anunciam, no Espírito das Bem-aventuranças, de sorte que se eles perderem de vista sua missão de anunciar o Reino, o sal perde seu sabor; ele não serve para mais nada e as pessoas o pisoteiam (Mt 5,13).
O símbolo da luz é ainda mais rico do que o do sal: a luz ilumina, aquece, guia, agrega, tranquiliza, reconforta. Utilizado por Mateus, o símbolo da luz do mundo nos remete à vocação de Jerusalém, a cidade luz, lugar situado sobre a montanha para atrair todos os povos para Deus e para a vocação de Israel luz das nações. Portanto, a imagem se aplica não ao indivíduo cristão, mas à comunidade cristã definida pelas Bem-aventuranças.
Então, o que é esta luz que são os discípulos? “As boas obras que vocês fazem” (Mt 5,16), isto é, as boas ações, as boas obras que se traduzem no compromisso com os pobres, os excluídos, os abandonados, a fim de que a justiça seja restaurada. Isso me remete ao profeta Isaías, na primeira leitura de hoje (Is 58,7-10): estamos no tempo do retorno do Exílio, no século VI a.C., e constatamos os estragos da deportação; o templo está destruído, e era lá que eram feitas as liturgias para comemorar a deportação, onde se jejuava, fazia penitência, rezava a Deus, oferecia sacrifícios e mortificações... Mas Deus não escuta; parece surdo aos apelos. A coisa vai de mal a pior...
É então que o profeta que chamamos de Terceiro Isaías intervém para dizer aos crentes que a única maneira de restabelecer a justiça não é pela oração passiva, nem pelo jejum ou pelas mortificações, mas pelo compromisso com os mais fracos, os mais pobres e com a dura das feridas: “Repartir a comida com quem passa fome, hospedar em sua casa os pobres sem abrigo, vestir aquele que se encontra nu, e não se fechar à sua própria gente” (Is 58,7). É então, diz o profeta, que “a sua luz brilhará como a aurora, suas feridas vão sarar rapidamente, a justiça que você pratica irá à sua frente e a glória de Javé virá acompanhando você” (Is 58,8). No fundo, o que o profeta Isaías diz é o seguinte: o verdadeiro culto que Deus ouve e que muda qualquer coisa na dura realidade da existência não é a celebração no templo; é o compromisso social...
4. Atualização
O texto do profeta Isaías e o evangelho de Mateus devem ser atualizados, caso queiramos que se tornem Palavra de Deus. Devem traduzir-se em compromisso para sermos também nós sal da terra e luz do mundo. E a única maneira de sê-lo verdadeiramente não é indo à igreja no domingo, mas estando na rua, todos os dias, ali onde vivem as pessoas, ali onde a dignidade humana é ameaçada, ali onde reina a injustiça, ali onde mulheres e homens são rejeitados, ridicularizados e excluídos por causa da sua situação de vida, da sua orientação sexual, da sua nacionalidade, da sua origem, da sua cultura, etc. por aquelas e aqueles que acreditam ser os detentores da verdade sobre Deus e o mundo. Eles desvirtuam o sal que devem ser tirando o sabor de Deus para as pessoas que eles encontram e escondem a luz debaixo do alqueire das suas certezas e da sua negação da liberdade dos outros.
O célebre teólogo protestante Karl Barth escreveu: “O cristão é um homem feliz”. E por que esta alegria inebriante? Simplesmente, porque nós nos dirigimos para a terra de Deus, independentemente das peripécias do caminho... E acrescenta: “Mesmo se a estrada é difícil e cruel, mesmo se o sofrimento já lhe não permite mais rir ou sorrir, resta-lhe a lembrança do que vai ser e a pequena filha Esperança se põe a brincar”. É porque ser sal da terra é testemunhar alegremente a nossa esperança no Reino em construção e em devir. Ser luz do mundo é engajar-se no restabelecimento da justiça, no Espírito das Bem-aventuranças e na prática cotidiana do grande mandamento do AMOR que liberta e salva. Depois disso podemos ir à igreja no domingo para celebrar com os outros o nosso compromisso.
O sal que perde seu gosto é a recusa de testemunhar, e a lâmpada debaixo do alqueire é a recusa de se comprometer com o caminho da liberdade; é a recusa de dar os pés e as mãos ao grande mandamento do Amor... E isso não tem nada a ver com a prática religiosa na igreja... Esta é importante, certamente, mas secundária em relação ao testemunho e ao engajamento.
Terminando, gostaria simplesmente de citar o Papa Francisco que convida os cristãos para o compromisso: “Vejo com clareza que aquilo de que a Igreja mais precisa hoje é a capacidade de curar as feridas e de aquecer o coração dos fiéis, a proximidade. Vejo a Igreja como um hospital de campanha depois de uma batalha. É inútil perguntar a um ferido grave se tem o colesterol ou o açúcar altos. Devem curar-se as suas feridas. Depois podemos falar de todo o resto. Curar as feridas , curar as feridas... E é necessário começar de baixo”.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Nós, cristãos, somos sal e luz - Instituto Humanitas Unisinos - IHU