Por: André | 14 Fevereiro 2014
Basicamente, cumprir a Lei não é submeter-se a ela de maneira ingênua, como se a Lei fosse primigênia; a Lei está a serviço dos seres humanos, para proteger sua dignidade, sua integridade e sua liberdade.
A reflexão é de Raymond Gravel, padre da Diocese de Joliette, Canadá, e publicada no sítio Réflexions de Raymond Gravel, comentando as leituras do 6º Domingo do Tempo Comum – Ciclo A do Ano Litúrgico. A tradução é de André Langer.
Referências bíblicas:
Primeira leitura: Eclo 15,15-20
Segunda leitura: 1 Cor 2,6-10
Evangelho: Mt 5,17-37
Eis o texto.
Estamos no coração do Sermão da Montanha do Evangelho de Mateus. À primeira vista podemos pensar que a interpretação ou a aplicação da Lei de Moisés proposta pelo evangelista Mateus é impossível, de tão exigente que é o que Jesus nos pede nesse discurso; por outro lado, quando nos detemos um pouco mais, nos damos conta rapidamente de que se trata de um convite à ultrapassagem: ultrapassar a Lei, as regras, os mandamentos, os preceitos, as proibições, para alcançar a pessoa humana, todos os humanos, no respeito da sua dignidade de mulheres, homens, filhos e filhas de Deus, de irmãs e irmãos em Cristo. Basicamente, cumprir a Lei não é submeter-se a ela de maneira ingênua, como se a Lei fosse primigênia; a Lei está a serviço dos seres humanos, para proteger sua dignidade, sua integridade e sua liberdade. O exegeta francês Jean Debruynne escreve: “Os mandamentos são os mandamentos de Deus, eles são apenas preceitos, ao passo que o homem e a mulher são mais que a lei, eles são os próprios filhos de Deus. Jesus não é um mandamento de Deus, ele é o Filho de Deus. Quando se trata de noras e cunhadas, genros ou netos, sobrinhos, amigos ou vizinhos, o respeito pelas pessoas é sempre maior do que o respeito à lei. Aos olhos da fé, cada rosto é mais que um mandamento, é a própria imagem de Jesus”.
Por isso, Jesus não veio para abolir a Lei; ele veio para cumpri-la, isto é, para passar da lei ao espírito: “Não pensem que eu vim abolir a Lei e os Profetas. Não vim abolir, mas dar-lhes pleno cumprimento” (Mt 5,17). É uma questão de justiça: “Com efeito, eu lhes garanto: se a justiça de vocês não superar a dos doutores da Lei e dos fariseus, vocês não entrarão no Reino do Céu” (Mt 5,20). Ao mesmo tempo, Jesus se dirige à nossa inteligência, apela à nossa responsabilidade no respeito da nossa liberdade. Na primeira leitura de hoje, dois séculos antes de Jesus, o sábio Ben Sirac reconheceu ao homem sua responsabilidade diante da Lei de Moisés e sua inteira liberdade diante desta escolha: “Se você quiser, observará os mandamentos, e sua fidelidade vai depender da boa vontade que você mesmo tiver. Ele pôs você diante do fogo e da água, e você poderá estender a mão para aquilo que quiser. A vida e a morte estão diante dos homens, e a cada um será dado o que cada um escolher” (Eclo 5,15-17). Portanto, a única liberdade que o homem não tem é a de não escolher. Mas essas escolhas têm repercussões sobre os outros, porque nós não estamos sozinhos no mundo; nós fazemos parte de uma coletividade, de uma comunidade. E Deus não é indiferente à nossa escolha: “Seus olhos estão sobre aqueles que o temem, e ele conhece cada ação que o homem realiza” (Eclo 15,19).
No trecho do Sermão da Montanha de hoje, Mateus retoma quatro regras da Lei de Moisés que os escribas e os fariseus respeitavam escrupulosamente, prendendo-se à letra, mas sem o espírito e longe do coração. Mateus, que é um judeu convertido ao cristianismo, usa um gênero literário, a hipérbole, que é um aumento, um exagero, uma amplificação, destinada a produzir uma forte impressão, para que os cristãos da sua comunidade compreendam que eles não devem impor os preceitos judaicos à maneira dos escribas e fariseus na sua vida de fé cristã, na Igreja. Mateus interpreta a Lei, colocando o acento sobre o ser humano, a serviço de quem ela deve estar...
1. “Vocês ouviram o que foi dito aos antigos: ‘Não mate! Quem matar será condenado pelo tribunal’” (Mt 5,21). À condenação da morte, o Jesus de Mateus opõe a condenação da cólera, do insulto e do desrespeito do outro, do irmão, do semelhante. Basicamente, não matar não é tudo, mas também ter relações harmoniosas com os outros, porque somos todos irmãos e irmãs. É até mais importante a reconciliação com o outro do que a oferenda sobre o altar ou a missa do domingo: “Portanto, se você for até o altar para levar a sua oferta, e aí se lembrar de que o seu irmão tem alguma coisa contra você, deixe a oferta aí diante do altar, e vá primeiro fazer as pazes com seu irmão; depois volte para apresentar a oferta” (Mt 5,23-24).
2. “Vocês ouviram o que foi dito: ‘Não cometa adultério’” (Mt 5,27). É no olhar do proprietário (a avareza) posto sobre o outro que se joga o adultério, e não no momento do ato sexual propriamente dito. Na época de Mateus, qualificava-se de adúltera a mulher seduzida e não o homem sedutor. Ao aplicar ao desejo do homem o adultério, Mateus inverte a culpabilidade que era atribuída somente à mulher: “Eu, porém, lhes digo: todo aquele que olha para uma mulher e deseja possuí-la, já cometeu adultério com ela no coração” (Mt 5,28). Esta interpretação chocou os homens que tinham todos os direitos sobre as mulheres. Ao mesmo tempo, é uma maneira de fazer justiça às mulheres do século primeiro.
3. “Também foi dito: ‘Quem se divorciar de sua mulher, lhe dê uma certidão de divórcio’” (Mt 5,31). Mais uma vez, o Cristo de Mateus quer devolver às mulheres sua dignidade reconhecendo sua igualdade. Com efeito, o problema do divórcio, na sociedade do tempo do domínio masculino, dependia da iniciativa do marido. O futuro de uma mulher repudiada anunciava-se sombrio... E é por isso que Mateus defende aqui os direitos das mulheres mais do que a proibição da separação: “Eu, porém, lhes digo: todo aquele que se divorcia de sua mulher, a não ser por causa de fornicação, faz com que ela se torne adúltera; e que se casa com a mulher divorciada, comete adultério” (Mt 5,32).
Parece-me que há muita sabedoria nessas palavras de Mateus; acreditamos ouvir São Paulo, na sua primeira Carta aos Coríntios (segunda leitura de hoje), onde o apóstolo nos fala da sabedoria: “Mas, como diz a Escritura: ‘o que os olhos não viram, os ouvidos não ouviram e o coração do homem não percebeu, foi isso que Deus preparou para aqueles que o amam’. Deus, porém, o revelou a nós pelo Espírito. Pois o Espírito sonda todas as coisas, até mesmo as profundidades de Deus” (1 Cor 2,9-10).
4. “Vocês ouviram também o que foi dito aos antigos: ‘Não jure falso’, mas ‘cumpra os seus juramentos para com o Senhor’” (Mt 5,33). A questão que Mateus coloca é a seguinte: Por que há a necessidade de fazer juramentos? Será porque não somos confiáveis? Faltamos com a sinceridade? Não podemos confiar nas irmãs e irmãos? Entre humanos? Este é o problema do juramento e do falso juramento. Ao exagerar a aplicação desta lei, o evangelista Mateus nos recorda simplesmente a nossa responsabilidade em relação aos nossos compromissos e em relação às nossas relações com os outros: “Diga apenas ‘sim’, quando é ‘sim’; e ‘não’, quando é ‘não’. O que você disser além disso, vem do Maligno” (Mt 5,37).
Para terminar, se Mateus, nessa passagem do evangelho de hoje, levanta a tripla questão da morte, do adultério e dos juramentos, não é uma escolha aleatória; são três referências aos mandamentos da Lei de Moisés que nós também chamamos de mandamentos de Deus. O exegeta Jean Debruynne escreve: “No tempo de Jesus, a situação chegou a tal ponto que os crentes preferiam respeitar os mandamentos mais que as pessoas. O amor à lei valia mais que o amor aos outros. Se as pessoas renunciavam a matar não era pelo respeito à vida do seu próximo, mas por medo da lei. As pessoas condenavam o adultério não por respeito à mulher e ao homem, mas porque era proibido pela lei. Quanto aos juramentos, as pessoas os faziam ao longo do dia porque eles preferiam confiam mais nos juramentos que nos outros. Em um grande gesto, Jesus varre tudo isso: foi dito... eu, porém, vos digo... O que Jesus afirma é que o respeito do homem é anterior ao respeito à regra”. E eu acrescentaria: e assim deve ser ainda hoje... É preciso passar da letra ao espírito. Infelizmente, estamos longe disso!
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