15 Novembro 2018
Para Berardi, as pessoas renunciaram à sua capacidade de pensar e sentir e, enquanto a falta de diálogo impede a organização, novos governos repressivos controlam tudo sem necessidade de recorrer a exércitos. “Hoje, não nos relacionamos mais”, sentencia.
A entrevista é de Pablo Esteban, publicada por Página/12, 14-11-2018. A tradução é de André Langer.
O filósofo italiano Franco “Bifo” Berardi tem um sorriso fácil. É professor da Universidade de Bolonha há um bom tempo, mas antes, quando tinha apenas 18 anos, participou das revoltas juvenis de 68', fez-se amigo de Félix Guattari, frequentou Michel Foucault, ocupou universidades e foi feliz.
Atualmente, garante que essa possibilidade não existe mais: os humanos já não imaginam, não sentem, não fazem silêncio, não refletem ou ficam entediados. Os corpos não se comunicam e, portanto, conhecer o mundo passou a ser um horizonte impossível. Diante de uma realidade atravessada pelo surgimento de regimes fascistas – mascarados com balões, pipoca e dentes brilhantes –, os cidadãos protagonizam uma sociedade violenta, caracterizada pela “epidemia da descortesia”.
Berardo fundou revistas, criou rádios alternativas e TVs comunitárias, publicou livros, entre os quais se destacam: A fábrica de infelicidade (2000), Depois do futuro (2014) e Fenomenologia do fim. Sensibilidade e mutação conectiva (2017).
Nesta oportunidade propõe como sobreviver em um cenário de fascismo emergente, de vertigem e agressividade à ordem do dia.
Você, com frequência, apresenta a seguinte frase: “O capitalismo está morto, mas continuamos vivendo dentro do cadáver”. O que quer dizer com isso?
A vitalidade e a energia inovadora que o capitalismo tinha até meados do século XX acabou. Hoje ele se transformou em um sistema essencialmente abstrato; os processos de financeirização da economia dominam a cena e a produção útil foi substituída. Na medida em que não se podia pensar o valor de troca sem antes recair no valor de uso, sempre acreditávamos que o capitalismo era muito ruim, mas promovia o progresso. Hoje, pelo contrário, não produz nada de útil, apenas se acumula e acumula valor.
Por que não nos relacionamos mais?
A abstração da comunicação produziu um projeto de troca de sinais financeiros digitais que, naturalmente, não requer a presença de pessoas para poder ser feita. Os corpos estão isolados: quanto mais conectados, menos em comunicação estamos. Refiro-me a uma crítica ao progresso que já foi discutida tenazmente por Theodor Adorno e Max Horkheimer em Dialética do Iluminismo. Na introdução do livro, eles assinalam que o pensamento crítico e a democracia assinam sua sentença de morte se não conseguirem entender as consequências sombrias do iluminismo. Se não entendermos que a maioria da população reage de maneira temerosa à mudança, tudo acabará muito mal.
Em que sentido?
Nós acreditávamos que Adolf Hitler tinha perdido, mas isso não é verdade. Ele perdeu uma batalha, mas ainda ganha suas guerras. Os líderes Rodrigo Duterte (Filipinas), Jair Bolsonaro, Donald Trump, Matteo Salvini (Itália) e Víktor Orbán (Hungria) representam os sinais de um nazismo emergente e triunfante em todo o mundo.
Por que vivemos com tanta violência e agressividade?
Eu posso responder reproduzindo uma frase que li no blog de um jovem de 19 anos: “Desde o meu nascimento tenho interagido com entidades automáticas e nunca com corpos humanos. Agora que estou na minha juventude, a sociedade me diz que tenho que fazer sexo com pessoas, que são menos interessantes e muito mais brutais que as entidades virtuais”. Isso quer dizer que ao nos relacionarmos – cada vez mais – com autômatos, perdemos a nossa expertise, a capacidade de lidar com a ambiguidade dos seres humanos, e nos tornamos brutais. Com efeito, olhamos com olhos mais simpáticos para as máquinas. A violência sexual é a falta de aptidão do sexo para falar. Na verdade, vivemos falando de sexo, mas o sexo não fala. Não conseguimos compreender o prazer do desejo de cortejar, da ironia, da sedução e, nesse sentido, a única coisa que resta quando raspamos o fundo do tacho é a violência, a apropriação brutal do outro.
Se a capacidade emocional foi perdida e a de raciocinar está desaparecendo, o que nos resta como Humanidade?
Não há saída para o nacional-socialismo global. A única coisa que resta como resposta é o trauma, a partir da readaptação do cérebro coletivo. O problema fundamental não é político, mas cognitivo: a vitória de Bolsonaro não representa apenas uma desgraça para o povo brasileiro; é também uma declaração de morte para os pulmões da Humanidade. Eu digo isso como asmático: a destruição da Amazônia que está sendo preparada implica uma verdadeira catástrofe. Enquanto o fim de nossos recursos está se aproximando, a evolução do conhecimento social, algumas vezes, requer dois ou mais séculos.
Se já não conseguimos mais imaginar, será impossível construir futuros.
É claro, se não imaginamos não conseguimos agir. A imaginação depende do que sabemos, das nossas trajetórias e experiências e, sobretudo, da nossa percepção empática do entorno e do corpo dos outros.
Emocionalmente, nós não vivemos mais de maneira solidária.Os jovens de hoje estão sozinhos, muito solitários. Precisamos construir um movimento erótico para curar o cérebro coletivo. Trata-se de reunificar o corpo e o cérebro, a emoção e o entendimento. Daqui, #NiUnaMenos é a única experiência global que, na minha perspectiva, recupera estes vínculos. Devemos aprender com esse fenômeno e estendê-lo a outras áreas, recuperar direitos e voltar a viver a vida.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
"A epidemia da descortesia". "Não há saída para o nacional-socialismo global”. Entrevista com Franco Berardi - Instituto Humanitas Unisinos - IHU