03 Outubro 2018
Julgar a “natureza das relações na internet” a partir de uma noção elevada de “verdadeira comunidade” e usar a rede apenas como “metáfora” para a ideia de “comunidade solidária” pode levar a ignorar que, também no ambiente digital, o que está em jogo são “pessoas na sua inteireza”.
A opinião é do jornalista Moisés Sbardelotto, mestre e doutor em Ciências da Comunicação, autor dos livros E o Verbo se fez rede: religiosidades em reconstrução no ambiente digital (Paulinas, 2017) e E o Verbo se fez bit: a comunicação e a experiência religiosas na internet (Santuário, 2012).
No sábado, 29 de setembro, o Boletim da Sala de Imprensa da Santa Sé anunciou em nota o tema da mensagem do Papa Francisco para o próximo 53º Dia Mundial das Comunicações Sociais, que será celebrado no dia 30 de maio de 2019, festa da Ascensão do Senhor. O título-tema da mensagem será: “‘Somos membros uns dos outros’ (Ef 4,25). Das communities às comunidades”.
O texto da mensagem ainda não está disponível - ele será divulgado, como de costume, no dia 24 de janeiro, memória de São Francisco de Sales, padroeiro dos jornalistas e comunicadores -, mas a nota vaticana já permite tecer algumas considerações sobre o contexto da temática proposta.
Em sua nota, a Sala de Imprensa da Santa Sé afirma:
“O tema enfatiza a importância de devolver à comunicação uma perspectiva ampla, baseada na pessoa, e enfatiza o valor da interação entendida sempre como diálogo e como oportunidade de encontro com o outro”.
Para ampliar o sentido da comunicação hoje e situar o “valor da interação” como diálogo e encontro, como pede Francisco, é importante contextualizar tanto o tema da mensagem proposto por Francisco, quanto o versículo bíblico que o inspira.
O tema, de certo modo, é uma resposta a outros dois fenômenos muito atuais no ambiente digital, sobre os quais o papa contribuiu com duas importantes reflexões, ambas de 2018.
A primeira delas foi ao abordar o tema das fake news (notícias falsas) na mensagem para o Dia Mundial das Comunicações Sociais deste ano. A mentira e a deturpação dos fatos são frutos, também, de processos interacionais em rede. Seu valor, porém, não está marcado pelo diálogo e pelo encontro com o outro, mas, como afirmou Francisco naquela mensagem, por “atitudes simultaneamente intolerantes e hipersensíveis, cujo único resultado é o risco de se dilatar a arrogância e o ódio”. O papa deixava claro que “o drama da desinformação é o descrédito do outro, a sua representação como inimigo, chegando-se a uma demonização que pode fomentar conflitos”. Daí a necessidade, cada vez maior, de se repensar a comunicação com base na pessoa e o valor da interação social como diálogo e encontro.
Uma segunda reflexão do papa abordou as “redes de violência verbal” entre cristãos e nas próprias mídias católicas, especialmente na internet. É o que Francisco denuncia na sua recente exortação apostólica Gaudete et exsultate, sobre o chamado à santidade no mundo atual. Essa comunicação violenta evidentemente não se baseia na pessoa e destrói qualquer possibilidade de diálogo e de encontro. Segundo o papa, ao ultrapassar certos limites das interações em rede, surgem “a difamação e a calúnia”, excluindo “qualquer ética e respeito pela fama alheia”.
Nesse contexto, a Sagrada Escritura continua sendo uma grande fonte de inspiração para tentar responder, do ponto de vista cristão, a esses fenômenos comunicacionais muito atuais. No versículo paulino escolhido por Francisco para a mensagem de 2019, há pistas importantes para os desafios da comunicação hoje, mesmo que Paulo estivesse falando sobre outras modalidades de comunicação e sobre outras interações que ocorriam na comunidade de Éfeso nos anos 50 d.C.
No trecho da carta de onde o papa extrai o versículo, Paulo compara o estilo de vida dos “pagãos” e o dos primeiros cristãos, que aprenderam com Cristo a viver de outro modo, abandonando o “homem velho” da corrupção e do engano. Os cristãos são chamados a viver uma “transformação espiritual da inteligência” e a se revestir do “homem novo” da justiça, da santidade e da verdade (Ef 4, 20-24).
Nesse contexto, Paulo apresenta uma magistral reflexão sobre a importância da comunicação em uma “perspectiva ampla”, que, atualizada para o século XXI, vale tanto para o ambiente digital, marcado muitas vezes por fake news e redes de violência, quanto para o diálogo e o encontro com o “outro”:
“Abandonem a mentira: cada um diga a verdade ao seu próximo, pois somos membros uns dos outros. Vocês estão com raiva? Não pequem; o sol não se ponha sobre o ressentimento de vocês. Não deem ocasião ao diabo. (...) Que nenhuma palavra inconveniente saia da boca de vocês; ao contrário, se for necessário, digam boa palavra, que seja capaz de edificar e fazer o bem aos que ouvem. (...) Afastem de vocês qualquer aspereza, desdém, raiva, gritaria, insulto, e todo tipo de maldade. Sejam bons e compreensivos uns com os outros, perdoando-se mutuamente, assim como Deus perdoou a vocês em Cristo” (Ef 4, 25-32; trad. Bíblia Pastoral).
Nas redes, o “homem novo digital”, portanto, interage abandonando e afastando a mentira, a raiva, o ressentimento, a palavra inconveniente, a aspereza, o desdém, a gritaria, o insulto e todo tipo de maldade. Não dá ocasião ao “diabólico” - aquilo que divide - e busca sempre o encontro “simbólico” com o outro naquilo que é comum, naquilo que une e congrega, com bondade, compreensão e perdão. Reconhece que, por trás das telas dos computadores, tablets e celulares, por trás dos seus números e dígitos, está uma pessoa humana, alguém que o complementa, um irmão e uma irmã. Está o “próximo”. Em rede, o “homem novo digital” age, reage e interage a partir da caridade. E, assim, pode construir comunidade, em rede e fora dela.
A nota do Vaticano continua:
“Solicita-se uma reflexão sobre o estado atual e sobre a natureza das relações na internet, para partir novamente da ideia de comunidade como rede entre as pessoas na sua inteireza. De fato, algumas das tendências predominantes nas chamadas ‘social web’ nos colocam diante de uma pergunta fundamental: até que ponto se pode falar de verdadeira comunidade diante das lógicas que caracterizam algumas ‘communities’ nas ‘social networks’? A metáfora da rede como comunidade solidária implica a construção de um ‘nós’, fundado na escuta do outro, no diálogo e, consequentemente, no uso responsável da linguagem.
Certamente, não há como negar que muitas interações em rede não estão marcadas pela escuta, pelo diálogo e pelo uso responsável da linguagem. Em vez de ajudar na “construção de um ‘nós’”, o ambiente digital torna-se, muitas vezes, mero espelho para a reafirmação do “eu” ou mera arena para a aniquilação simbólica do “tu” e do “eles”. Assim, impossibilita-se qualquer vislumbre de “comunidade solidária”, seja nas “communities”, entendidas pela nota como as interações digitais, seja nas “comunidades”, entendidas pela nota como as interações fora da internet.
Contudo, a esse respeito, é preciso aqui esclarecer dois pontos. Uma diferenciação apressada entre “communities” e “comunidades” pode pressupor que a “verdadeira comunidade” estaria fora das redes e que, em rede, só é possível construir aproximações e simulacros de comunidade, sem a “inteireza” da pessoa. Aliás, a tradução em inglês do subtítulo da mensagem evidencia esse risco: “From network community to human communities”. De acordo com essa concepção, as comunidades em rede podem não ser humanas.
Por outro lado, uma diferenciação apressada entre communities e comunidades também pode correr o risco de partir de aprioris sociológicos ou teológicos. Assim, explica-se o ambiente digital e as relações em rede dedutivamente, a partir de um conceito de comunidade já pronto, elaborado em outros contextos e a partir de outros fenômenos, o que pode levar a pressupor que a internet e as redes estariam “deturpando” ou “desviando” a “verdadeira” noção de comunidade.
Tudo isso, porém, pode restringir o olhar e a reflexão, ao operar uma dicotomia entre o ambiente digital e a “vida real”, privilegiando esta última, o que já não faz mais sentido em um momento em que estamos quase sempre conectados e não precisamos mais “entrar na internet”, pois quase nunca saímos dela. As comunidades, hoje, se constituem, se mantêm e também se desfazem na circulação entre várias redes comunicacionais, que atravessam e são atravessadas por redes digitais. Aquela dicotomia pode, ainda, favorecer uma busca de semelhanças e diferenças entre aquilo que acontece na internet e as comunidades já socialmente “instituídas” e teoricamente “definidas”, impedindo que se percebam fenômenos novos, que vão muito além da mera proximidade geográfico-territorial ou étnico-cultural.
Mais do que perceber mudanças na noção de comunidade entre um “antes” e um “depois”, ou rupturas entre o ambiente online (“communities”) e o ambiente offline (“comunidades”), seria mais produtivo reconhecer não tanto a “ideia de comunidade como rede entre as pessoas na sua inteireza”, mas sim a “ideia de rede como comunidade entre as pessoas na sua inteireza”. Ou seja, buscar compreender em que as relações em rede possibilitam experiências comunitárias. E, a partir disso, perceber que o objeto instituído (a comunidade) só se institui e se mantém constituído mediante um constante processo instituinte (a conexão em rede) das relações entre as pessoas na internet e fora dela, processo este que é principalmente comunicacional. Nesse sentido, o conceito de “comunidade” só é enquanto está sendo, e só permanece porque muda, parafraseando Paulo Freire. E essa tensão entre uma “estabilidade dinâmica” e uma “dinâmica estável” de uma comunidade, sendo principalmente comunicacional, demanda um olhar específico com tal sensibilidade.
Hoje, as relações humanas se constituem e se mantêm em um ambiente muito mais complexo, múltiplo e diferenciado daqueles em que tais relações habitualmente ocorriam. Os emergentes decisivos na especificidade das interações digitais são o seu alcance e a sua velocidade (Eliseo Verón). Trata-se de redes comunicacionais que não se esgotam na “social web” e nas “social networks”. Nesse sentido, não é possível meramente “aplicar” um conceito já dado de comunidade para entender as modalidades de relação e de interação humanas em rede, mas é preciso tensionar os próprios conceitos a partir daquilo que efetivamente caracteriza tais relações hoje, captando a riqueza dos fenômenos contemporâneos.
Julgar a “natureza das relações na internet” a partir de uma noção elevada de “verdadeira comunidade” e usar a rede apenas como “metáfora” para a ideia de “comunidade solidária” pode levar a ignorar que, também no ambiente digital, o que está em jogo são “pessoas na sua inteireza”. De certo modo, a própria nota vaticana reconhece isso, ao retomar o pensamento de Francisco a esse respeito:
“Ainda na sua primeira Mensagem para o Dia das Comunicações Sociais, em 2014, o Santo Padre havia feito um apelo para que a internet seja ‘um lugar rico de humanidade, não uma rede de fios, mas de pessoas humanas’.”
Se há “lógicas” deturpantes na rede que não levam à construção de um nós, devido à falta de escuta e de diálogo, estas também se fazem presentes em quaisquer relações humanas em geral, para além de uma dada mediação tecnológica. O que não se pode é crer que uma “verdadeira comunidade” estaria isenta de lapsos, desvios, excessos e irresponsabilidades nos “usos da linguagem”, pois estes fazem parte de qualquer processo comunicacional.
Portanto, as “lógicas que caracterizam algumas ‘communities’ nas ‘social networks’” devem ser buscadas nas suas especificidades. Ou seja, que práticas sociais no ambiente digital implicam ou não na construção de um “nós”? Como as plataformas sociodigitais contribuem ou prejudicam a escuta do outro e o diálogo no uso responsável da linguagem? Como se manifesta uma “comunidade solidária” em rede e para além dela?
O ambiente digital, em muitos casos, está possibilitando justamente a resistência a certas formas tradicionais de comunidade e a construção de novas modalidades de interação comunitária, interconectando múltiplos contextos sociais e gerando complexas redes de relação socioindividuais, em um mundo que se torna cada vez mais global. Inclusive no âmbito eclesial, muitas vezes, surgem formações em rede que apontam para uma busca de “relações outras” em “ambientes outros”, a partir de uma necessidade de atualizar as comunidades tradicionais, ou de traduzi-las às linguagens e às modalidades de comunicação contemporâneas, ou ainda de criar e inventar experiências inovadoras de vivência e comunicação da fé, dado o esgotamento de certas vivências locais. Tudo isso aponta para um “novo-ainda-não-experimentado” dentre as variações históricas das formas comunitárias da própria Igreja.
Como afirma a nota vaticana,
“A escolha do tema da Mensagem de 2019 confirma a atenção do Papa Francisco para os novos ambientes comunicativos e, em particular, para as Redes Sociais, onde o Pontífice está presente em primeira pessoa com a conta @Pontifex no Twitter e o perfil @Franciscus no Instagram.”
Tais presenças revelam novas formas de proximidade e de interação das “pessoas comuns” em relação ao Sumo Pontífice. Ou seja, agora, não se trata mais apenas de um meio de comunicação vaticano que fala em nome do papa (porta-voz, jornal, rádio, TV, site etc.), mas sim da presença da própria instância máxima do catolicismo em tais plataformas. É o papa indo ao encontro das pessoas onde quer que elas estejam, embora construa comunidade com seus seguidores de um modo unidirecional: no Twitter, o papa, embora sendo seguido por milhões de pessoas, só segue a si mesmo em suas várias versões linguísticas, e, em ambas as plataformas, apenas envia mensagens e fotos, mas quase nunca interage publicamente com seus seguidores, mesmo que mencione algumas hashtags e outros usuários, constituindo, de algum modo, redes de relações e comunidades de interesse em torno de determinadas temáticas, às quais os demais interagentes podem se somar, realimentando novas interações e relações. Assim, o pontífice mobiliza os contatos, as atenções, os afetos, gerando vínculos sociais em rede.
Do ponto de vista eclesial, trata-se de compreender as diversas e complexas mediações que organizam hoje a “unidade comunicativa dos fiéis”, que, ontem como hoje, caracteriza a Igreja como “‘comunidade de comunicação’ intra-histórica” (Medard Kehl). Assim, a própria noção de comunidade pode ser mais bem entendida em termos de redes de relações comunicacionais, em suas luzes e sombras, que, em rede, envolvem uma maior maleabilidade, heterogeneidade e interconectividade dos vínculos sociais.
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Relações na internet e comunidades em rede: as preocupações comunicacionais de Francisco - Instituto Humanitas Unisinos - IHU