28 Setembro 2018
“A China está a caminho de superar os Estados Unidos como primeira economia mundial antes de 2030, um acontecimento que marcará um ponto de inflexão psicológico. Não obstante, no momento, mantém níveis elevados de dívida e ainda pode ocorrer um crash ao estilo chinês. Poderá a China limitar, ou ao menos resistir, as pressões de uma guerra comercial com os Estados Unidos? De fato, as perspectivas para a economia estadunidense também não são boas. A recuperação da economia produzida pelo corte de impostos de Trump pode ser efêmera e o presidente do slogan “América primeiro” pode se ver obrigado a aprender que os Estados Unidos e a China se necessitam mutuamente”, escreve Jenny Clegg, especializada em temas da China e o Pacífico asiático e autora do livro China’s Global Strategy: Towards a multipolar world (Pluto Press, 2009)”, em artigo publicado em sua versão espanhol por Rebelión, 26-09-2018. A tradução é do Cepat.
Neste mês de setembro, completam-se dez anos que a bancarrota do Lehman Brothers situou o capitalismo global à beira do colapso. Embora, finalmente, a queda não produziu um afundamento total, desencadeou uma crise similar a dos anos 1930 e, para a maior parte das economias, os últimos dez anos foram caracterizados por um crescimento lento, baixo investimento e baixa produtividade, marcados pela dívida e o déficit, e não supuseram apenas melhora nos ingressos reais para 90% da população. O mais destacável deste período foi a contínua ascensão da China. Inicialmente, sua economia também foi gravemente golpeada pela crise, mas a China conseguiu se recuperar rapidamente para emergir na atualidade como uma grande potência econômica, avançando sem pausa até adquirir uma posição central na ordem mundial.
A partir de 2009, a economia chinesa quase triplicou seu volume, de 460 bilhões de dólares para mais de 1,2 trilhões, e em 2011 já superou o Japão como segunda economia mundial. Até esse ano, a economia cresceu entre 9 e 10% ao ano, para se estabilizar nos últimos seis anos em uma “nova normalidade” de 7% ao ano, ainda muito superior aos 3,9% do crescimento médio mundial.
A renda per capita chinesa aumentou de 3.500 dólares para 8.800 em 2017, a um ritmo de crescimento anual entre 10 e 15%, o que, caso siga assim, situará o país entre as fileiras dos países de renda elevada em uns 8 anos. A população urbana aumentou uns 15 milhões por ano, com a criação de 8-10 milhões de empregos também ao ano. Em 2017, foram criados 11 milhões de novos empregos, frente ao milhão que se criou na Índia.
Como é bem sabido, desde 1978 a China conseguiu tirar da pobreza 800 milhões de pessoas. Nos últimos cinco anos, a pobreza extrema continuou diminuindo, de 100 milhões para 30 milhões, o que coloca o país a caminho de sua total eliminação nos próximos 3 anos.
O plano quinquenal (2011-2015) estabelecia aumentos de salário mínimo de 13% ao ano. Esta média, junto com a diminuição nos números da pobreza, está contribuindo para melhorar a distribuição da renda e reduzir a desigualdade.
Seguindo os passos da recuperação, a China começou a mudar seus modelos de crescimento, que está deixando de se basear na manufatura de produtos baratos para a exportação e o investimento, e está dirigindo a economia para o consumo interno e a alta tecnologia. Esta audaz transição que transfere a própria base da economia aos novos pilares de crescimento já está bastante avançada. O comércio passou de 37% do PIB, em 2008, para 20% na atualidade, ao passo que a cota de consumo do PIB continua aumentando constantemente desde 2012. Agora, os 400 milhões de consumidores de renda média chineses são uma das principais forças motoras da economia mundial.
Entre 2011 e 2017, a cota dos setores econômicos tradicionais – carvão, aço, ferro e cimento – na economia reduziu de 75 para 50%, sendo os novos motores de crescimento os setores da energia, tecnologia, saúde e entretenimento. Segundo a base de dados da Organização Internacional do Trabalho (OIT), a produtividade do trabalho aumentou 9,6% anual, a partir de 2003. O investimento do governo está gerando uma expansão das infraestruturas públicas, o comércio eletrônico e os sistemas eletrônicos de algo valor agregado. O emprego no setor serviços cresceu de 33 para 45%.
Na atualidade, a China conta com 109 empresas na lista Fortune Global 500, uma formidável ascensão se consideramos que em 2001 só faziam parte desta lista 10 empresas e em 2008, 30.
O trem de alta velocidade chinês conta com mais de 22.000 km de vias e se tornou a mais extensa do mundo, somando dois terços das vias de alta velocidade de uso comercial de todo o mundo. Isso reduziu significativamente os tempos de viagem no país de dias para horas. A geração elétrica continua aumentando anualmente 10%, desde 2008.
As indústrias chinesas não só estão se aproximando da tecnologia de vanguarda em setores convencionais como a eletrônica, a maquinaria, a automação, o trem de alta velocidade e a aviação, com também estão liderando inovações tecnológicas. Entre os setores de novas tecnologias que estão decolando estão o da inteligência artificial, a Internet das coisas, os veículos autônomos, a nanotecnologia, a biotecnologia, a ciência de materiais, o armazenamento avançado de energia e a informática quântica. Atualmente, a China já está desafiando o monopólio dos países desenvolvidos em robótica e impressão 3D. O governo está investindo em campos como os chips eletrônicos avançados e os motores de aviação avançados. De fato, a China logo superará os Estados Unidos em investimento em I&D.
Além disso, a China está contribuindo para liderar o caminho para uma nova era de energia limpa. Mobiliza mais de 100 bilhões de dólares por ano em investimentos em tecnologias de energias renováveis e a rede elétrica inteligente de âmbito nacional está sob constante expansão. Em 2017, a China tinha mais de um terço da capacidade de geração de energia eólica do mundo, um quarto de sua potência solar, um sexto dos maiores fabricantes de painéis solares e quatro dos dez maiores fabricantes de turbinas eólicas. No ano passado, vendeu mais baterias de automóveis que o restante do mundo em seu conjunto.
O gasto público social subiu de 9% do PIB, em 2012, para os 6% em 2007. Desde 2009, a China gastou 480 trilhões de dólares em saúde e 95% de sua população goza de um seguro básico de saúde, que está sendo ampliado atualmente até cobrir as doenças importantes. A expectativa de vida aumentou de menos de 75 anos, em 2010, para 76,7 anos, em 2017. Tem em marcha uma renda mínima para todos os residentes e um número cada vez maior de empresas está inscrevendo seus trabalhadores em programas governamentais que garantam prestações em caso de doença trabalhista, baixa por maternidade e seguro-desemprego. A cobertura das aposentadorias deu um salto importante: desde 2009, 89 milhões de pessoas começaram a se beneficiar de um novo sistema de aposentadorias rurais. A proporção de pensionistas quase duplicou entre 2009 e 2012, e agora cerca de 60% dos maiores de 60 anos recebem uma aposentadoria mensal.
Quanto à cultura e os meios de comunicação, apesar dos controles governamentais dos conteúdos, foram se diversificando, há mais variedade de imprensa, rádio e televisão, que contam com programas de debate sobre temas da atualidade e o jornalismo de investigação está desenvolvendo certo sentido crítico. A indústria do cinema, que há 10 anos quase desapareceu por causa dos DVDs falsificados, está experimentando um renascimento, e os ingressos por bilheteria está perto de superar os Estados Unidos.
No âmbito internacional, desde o início da crise financeira, o crescimento chinês é responsável por entre 30 e 50% do crescimento mundial, superando amplamente a contribuição dos Estados Unidos, ao menos em 20%, e exerceu um papel fundamental, pouco reconhecido no Ocidente, em mitigar a tendência recessiva. A China se tornou o principal sócio comercial de mais de 120 países e compete com os Estados Unidos pela liderança do comércio mundial. É uma importante impulsionadora do crescimento nos países em vias de desenvolvimento. Em 2011, seus bancos de desenvolvimento emprestavam mais dinheiro a tais países que o Banco Mundial.
A China também começou a deixar sua pegada na arquitetura financeira mundial, avançando passo a passo com a fundação do Banco de Cooperação de Xangai em 2010, o Banco de Desenvolvimento do BRICS e o anúncio da iniciativa da nova Rota da Seda (Belt and Road), em 2013, e o Banco Asiático de Investimento em Infraestrutura, em 2015. Nesse mesmo ano, o FMI reconheceu o renminbi (moeda de curso legal chinesa, cuja unidade básica é o yuan) como a quinta reserva mundial de moeda.
E a lista poderia continuar.
Não pretendo com esta enumeração de conquistas econômicas negar as múltiplas carências e os custos do desenvolvimento chinês: a poluição, a degradação ambiental, as graves desigualdades, o aumento da dívida produto do elevado gasto e os fortes investimentos, os excessivos casos de pobre regulamentação e baixos padrões, determinadas violações aos direitos humanos e outros. Mas, em qualquer caso, é evidente que a China avançou muito, em pouco tempo. Continua sendo, em termos gerais, um país em vias de desenvolvimento e tem pela frente importantes desafios. Agora, olhando para o futuro, o foco está posto em melhorar a qualidade do crescimento e não só o volume do mesmo.
As circunstâncias foram pouco propícias para o progresso da China. Em 2012, houve uma complicada transição na liderança da nação. Mas, o ambiente internacional também foi especialmente difícil. As condições quase recessivas nos Estados Unidos e a União Europeia inibiram o crescimento global durante grande parte do decênio. Além disso, os fluxos erráticos de capital especulativo (hot money) gerados pelas políticas estadunidenses de Expansão Quantitativa e manipulação do tipo de juro contribuíram para criar fases de expansão e contração no mercado de valores dos países emergentes, China incluída, que provocaram flutuações adversas nos tipos de mudança.
A China recebeu muita pressão e foi acusada em particular de ser a culpada pelos problemas econômicos do mundo por suas excessivas exportações, excessiva produção e excessiva poupança, e de ser responsável pelos desequilíbrios globais e a deflação global.
Nos primeiros anos da crise, a China recebeu pressões, especialmente por parte dos Estados Unidos, para que revalorizasse o yuan. Mas, a China optou por manter sua moeda estável e contribuir para o reajuste dos desequilíbrios da balança de pagamentos global, aumentando seus salários e nível de renda em vez de mediante movimentos monetários bruscos.
Depois de 2014, quando a Reserva Federal dos Estados Unidos se preparava para aumentar os tipos de juros, o foco se centrou em conseguir que a China relaxasse os controles de moeda e capital, ao mesmo tempo em que se fomentava o temor de uma fuga de capitais. Como a China havia escolhido deliberadamente reduzir seu crescimento para um novo “ritmo normal”, o que a exporia ao risco de debilidade financeira, os fluxos de saída de capital poderiam ter provocado uma implosão da economia, levando em conta a tremenda expansão do crédito para apoiar o investimento, desde 2009, junto aos problemas de sobrecapacidade.
A China perdeu de 600 a 800 bilhões de dólares de seus quase quatro trilhões de reservas de moeda estrangeira nesta ocasião devido à saída de capitais, e seu mercado de valores experimentou graves flutuações. No entanto, apesar das predições realizadas pela imprensa econômica ocidental, que vaticinava uma “dura aterrissagem” da economia chinesa, uma nova ronda de guerras de divisas e inclusive outra crise financeira asiática, a queda chinesa não chegou a se materializar.
O fato de a China conseguir, em termos gerais, dirigir as pressões adversas e burlar os especuladores deve ser considerado como outra de suas grandes conquistas no decênio.
Levando em conta todos estes fatores, as acusações de “fazer trapaça” por parte do lobby antichinês dos Estados Unidos resultam, tal e como parece, completamente cínicas.
Está claro que para qualquer potência dominante é difícil aceitar a necessidade de se adaptar a uma potência ascendente e evitar a “armadilha de Tucídides”, mas o mais difícil para o Ocidente – Estados Unidos e seus aliados – é reconhecer que os progressos da China, diferente de sua própria recuperação lenta, lançam à luz as diferenças entre um sistema que decide resgatar os bancos e outro que opta por resgatar a economia; entre um que faz tudo o que está ao seu alcance para impulsionar seu setor financeiro e outro que promove estímulos econômicos para impulsionar a produção; entre um que aperta os mais pobres na busca cega por lucros e outro que apoia os pobres e organiza o desenvolvimento de um modo sistemático; entre um que injeta enormes quantidades de hot money na economia mundial para arruinar os sistemas financeiros de outros países e um que oferece “capital paciente” (a longo prazo) para favorecer que outros administrem suas dificuldades financeiras e evitem a crise.
Nos últimos dez anos, enquanto as economias ocidentais injetavam incessantemente “dinheiro impresso”, uma e outra vez, no éter dos mercados financeiros repetindo os mesmos círculos viciosos, a China se tornou um país diferente e, de fato, todo o mundo está se tornando um lugar diferente. No entanto, os Estados Unidos seguem completamente decidido a bloquear a mudança para que o mundo mantenha sua dependência do dólar americano e o consumidor americano, inclusivo à custa de enormes déficits comerciais. E agora chegou a guerra comercial.
A China está a caminho de superar os Estados Unidos como primeira economia mundial antes de 2030, um acontecimento que marcará um ponto de inflexão psicológico. Não obstante, no momento, mantém níveis elevados de dívida e ainda pode ocorrer um crash ao estilo chinês. Poderá a China limitar, ou ao menos resistir, as pressões de uma guerra comercial com os Estados Unidos? De fato, as perspectivas para a economia estadunidense também não são boas. A recuperação da economia produzida pelo corte de impostos de Trump pode ser efêmera e o presidente do slogan “América primeiro” pode se ver obrigado a aprender que os Estados Unidos e a China se necessitam mutuamente.
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O decênio de ascensão da China - Instituto Humanitas Unisinos - IHU