22 Setembro 2018
Kamila Shamsie, escritora de origem paquistanesa e cidadã inglesa, fez uma releitura do mito grego de trazer à luz que o medo do outro não nos permite mais viver em paz e justiça. "Meu irmão, que se alistou no ISIS, gerou em mim uma reflexão sobre a ética no mundo interétnico".
A entrevista é de Daniela Pizzagalli, publicada em Avvenire, 20-09-2018. A tradução é de Luisa Rabolini.
Na tragédia clássica, o mito se faz arte, se faz espetáculo, para entrar com força e para sempre no imaginário coletivo. Para sempre: portanto, cada época, cada cultura o incorpora e o faz reviver à luz de suas próprias experiências. E a cada oportunidade nasce algo original, como ocorre no romance Io sono il nemico (Eu sou o inimigo, Ponte alle Grazie, 284 páginas, € 18) de Kamila Shamsie, uma imprevisível releitura da Antígona de Sófocles ambientada na Londres multiétnica de hoje.
Há muito de autobiográfico na ambientação do romance, porque a escritora de quarenta e cinco anos, também conhecida por nós graças aos romances Sale e zafferano (Sal e açafrão) e Sombras marcadas, nasceu em Karachi, Paquistão, estudou nos EUA e vive em Londres, como as irmãs protagonistas do romance que, cidadãs britânicas perfeitamente integradas numa sociedade cujo desenvolvimento está intimamente ligada ao encontro entre diferentes culturas, se encontram de repente do lado "do inimigo" quando seu irmão é recrutado pelo ISIS e parte para a Síria.
O romance Io sono il nemico é o vencedor do Women’s Prize for Fiction 2018, no Festival da Mente de Sarzana.
É surpreendente esta versão contemporânea de Antígona na pele de uma jovem muçulmana: o que representa para você, herdeira de uma cultura oriental, a tragédia grega que pertence ao núcleo originário da cultura ocidental?
Eu nunca me considerei distante a cultura helenística porque há laços antigos com meu país. Alexandre, o Grande, expandiu seu império para o território do atual Paquistão, de modo que nós também somos permeados por uma cultura indo-grega. Além disso, conheço desde criança os mitos gregos, através das histórias contadas por meu avô, que tinha estudado em Oxford e, portanto, embora muçulmano, teve uma formação ocidental, como a minha, de qualquer maneira. Acredito que nenhuma cultura seja separada das demais, sempre há influências e interações subterrâneas.
Como nasceu a ideia de fazer renascer a paixão de Antígona em Aneeka, disposta a tudo para salvar seu irmão?
Para dizer a verdade, foi um acaso. Um diretor de teatro de Londres me pediu para escrever um drama e quando eu lhe respondi que eu não me sentia capaz sugeriu-me adaptar uma tragédia clássica, acenando a Antígona, mas eu não tinha mais relido a tragédia após a faculdade, e não a recordava muito bem. Quando cheguei em casa, tive a curiosidade de relê-la e fiquei impressionada com sua extraordinária atualidade. Era o outono de 2014, e na TV e nos jornais falava-se muito de foreign fighters, e havia um projeto para retirar a cidadania britânica aos jovens que se alistassem no Isis. Imaginei uma jovem Antígona que se opusesse à prevaricação das autoridades em nome de valores morais superiores.
No romance, a autoridade é representada pelo ministro do Interior inglês, de origem paquistanesa e, por isso, ainda mais preocupado em tomar as distâncias dos compatriotas acusados de terrorismo. O próprio prefeito de Londres é de origem paquistanesa e é muçulmano: ele precisa enfrentar problemas semelhantes?
Antes de qualquer coisa, devo dizer que dei provas de intuições proféticas! De fato, quando escrevi o livro, ainda não havia sido eleito o prefeito muçulmano de Londres. E mais ainda: há algumas semanas também o ministro do Interior inglês é de origem paquistanesa, eu estive à frente do tempo! O conflito mais importante foi enfrentado pelo prefeito, porque é um muçulmano praticante e seus inimigos políticos durante a campanha eleitoral o acusaram de conivências com os fundamentalistas. O ministro do Interior, em vez disso, não só se declara agnóstico, mas se casou com uma cristã e diz que a única religião praticada em sua casa é o cristianismo. No entanto, em Londres, esses problemas não são muito sentidos, existe o hábito da convivência interétnica. Todos as pesquisas mostram que a desconfiança é mais presente nos locais onde vivem menos imigrantes.
Se na Inglaterra o medo do "diferente" se centra nos imigrantes, sobre quem se reverte no Paquistão, onde você transcorre algum tempo todos os anos porque lá vive a sua família?
Paradoxalmente, no Paquistão a desconfiança não é direcionada aos diferentes, mas aos semelhantes, ou seja, os Indianos com quem compartilhamos a pátria. Após a divisão de 1947, tornou-se muito difícil passar de um país para outro, já não nos conhecemos mais e isso aumenta o medo recíproco.
A rebelião de Antígona era ainda mais explosiva, porque era uma mulher que não acreditava nos valores de uma sociedade patriarcal que hoje poderíamos comparar com o mundo muçulmano.
Sim, um exemplo de Antígona contemporânea poderia ser Malala Yousafzai, que lutou pelo direito à educação das mulheres. Mas, também no mundo ocidental, as mulheres sabem se opor à autoridade para defender os valores em que acreditam, estou me referindo, por exemplo, à recente manifestação nos EUA contra a disseminação das armas.
O romance retrata os mesmos personagens da tragédia de Sófocles: Aneeka é Antígona, o namorado Eamonn é Hémon, Karamat é Creonte, e também não falta a irmã mais velha Isma, que é Ismênia. Mas você desenvolveu principalmente esta figura, não a tornando apenas obediente e submissa.
É verdade, talvez porque eu também tenha uma irmã mais velha e a identifiquei um pouco com ela. Eu comecei por uma frase de Ismênia encontrada na tradução de Sófocles feita por Anne Carlson, que diz: "Eu me sentirei só." Na minha opinião Ismênia é a mais consciente de ter perdido tudo, é ela que valoriza mais as consequências da destruição da família.
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Antígona contra o medo do ‘diferente’ - Instituto Humanitas Unisinos - IHU