15 Fevereiro 2018
“Estamos em um tempo em que o acesso ao complexo de Édipo é obstruído pela presença de uma maternagem perversa, incrementada por uma ‘sociedade maternalizante’, que vincula a vida do filho à do objeto incestuoso, suprimindo a dimensão terceira encarnada pela palavra do pai. Nesse corpo a corpo do filho com a mãe, não circula oxigênio, ar, não há nenhuma possibilidade de diferenciação, de separação, de subjetivação.”
A opinião é do psicanalista italiano Massimo Recalcati, professor das universidades de Pavia e de Verona, em artigo publicado por La Repubblica, 12-02-2018. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
No livro intitulado Oreste, la faccia nascosta di Edipo? Attualità del matricidio [Orestes, a face oculta de Édipo? Atualidade do matricídio], Jean-Pierre Lebrun, psicanalista belga de escola lacaniana, encontra-se envolvido em um interessante diálogo com a colega Michèle Gastambide, que começa a partir de uma releitura comum da Oresteia, de Ésquilo.
No centro, está o gesto matricida de Orestes. Por que voltar a uma figura esquecida da psicanálise como a do matricida que vinga o pai, Agamenon, assassinado em seu retorno de Troia pela esposa, Clitemnestra, sua mãe, decidindo, por sua vez, suprimir sua progenitora? Qual é o segredo guardado por esse filho que não poupa quem o colocou no mundo?
Ao privilegiar a figura de Orestes à de Édipo, está em jogo a leitura do desconforto contemporâneo da civilização. Michèle Gastambide declara isso abertamente na conclusão do livro: “Se Édipo é a tragédia do destino (...)a partir do qual Freud extraiu a interdição do incesto, Orestes é a tragédia do impossível gozo incestuoso para quem quer ser humano”.
No tempo do nascimento da psicanálise, o complexo que organizava a vida individual e coletiva tinha sido isolado por Freud na figura de Édipo, o filho maldito manchado pelos dois crimes mais hediondos da humanidade: parricídio e incesto. A transgressão da barreira do incesto ocorre por causa da ultrapassagem da Lei do pai que, portanto, ainda existem como tal no inconsciente do sujeito, conseguindo escavar, no próprio filho, aquele sentimento de culpa que humaniza sua vida, separando-a da vida animal.
Em suma, a dialética do desejo que o Édipo de Sófocles, relido por Freud, nos entrega é uma dialética simbólica, triangular, em que o filho se defronta com um objeto (impossível), sobre o qual cai a interdição paterna que o obriga a pagar o preço de sua transgressão e – se se quiser evitar o fim trágico de Édipo – a deslocar a meta do seu desejo a outros objetos, não afetados pela interdição paterna.
Orestes precede Édipo, assim como Ésquilo precede Sófocles. Trata-se de uma precedência não só histórica, mas também psíquica: para poder acessar a triangulação simbólica que governa o complexo edípico, é preciso passar pela fratura da díade mãe-filho ou, melhor, pela morte, igualmente simbólica, da mãe.
Nesse sentido, o gesto de Orestes antecipa necessariamente o de Édipo. No seu centro, não é a morte do pai rival, mas sim a da mãe onipotente que sujeita o filho matando o pai. O tendencial “desaparecimento do Édipo freudiano” que caracteriza o nosso tempo acaba por abandonar o filho à baila de uma maternalização amplamente incestuosa.
O conflito não se trianguliza simbolicamente, mas permanece não expressado, desencadeando-se apenas como violência errática, que nada mais será – é uma tese forte e discutível do livro – do que uma passagem ao ato de tipo matricida: a falta do corte simbólico entre o filho e a mãe confia ao filho essa responsabilidade que, em Orestes, assume a forma completa do ato matricida. Nesse sentido, ele se torna “o ator da própria separação”.
Aqui se coloca o interesse psicanalítico e antropológico que investe o gesto de Orestes: como extrair o sujeito do vínculo incestuoso que o sujeita ao capricho materno em um tempo em que a função paterna está em declínio? Orestes tem acesso à separação através do ato horrendo do matricídio. Será essa, no nosso tempo, a única forma que pode assumir um ato de separação?
Porque, como afirmam os protagonistas desse apaixonante diálogo, “o problema não é tanto separar a mãe da criança, ou vice-versa, mas sim que ambos se separem daquilo que os mantém juntos, de tal modo que nenhuma fratura possa se intrometer, nenhuma perda possa ser contemplada”.
Estamos em um tempo em que o acesso ao complexo de Édipo é obstruído pela presença de uma maternagem perversa – por uma mèrversion, para usar uma eficaz expressão de Lebrun –, incrementada por uma “sociedade maternalizante”, como também teoriza Michel Schneider em Big Mother, que vincula a vida do filho à do objeto incestuoso, suprimindo a dimensão terceira encarnada pela palavra do pai.
Nesse corpo a corpo do filho com a mãe – que pode ser assumido como paradigma clínico das chamadas dependências patológicas hoje disseminadas epidemicamente – não circula oxigênio, ar, não há nenhuma possibilidade de diferenciação, de separação, de subjetivação.
Na violência que parece caracterizar a psicopatologia contemporânea tanto individual (a passagem ao ato violento cada vez mais difundido; pense-se, por exemplo, no feminicídio) quanto de massa (pense-se no terrorismo fundamentalista), os autores desse livro veem em ação aquilo que poderíamos definir, seguindo seu raciocínio, como um verdadeiro complexo de Orestes.
Em uma sociedade que não conhece mais o senso do limite e em que o gozo que se espalha parece ser incestuoso, o matricídio seria a tentativa desesperada de criar um espaço, uma fratura, uma separação, uma descontinuidade com esse gozo fatalmente mortífero que impede o surgimento da diferença, como acontece com um paciente toxicômano de Michèle Gastambide, que declarava, sem meios termos: “Eu deveria matar a minha mãe... mas não posso, estou tecido nela”.
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Mais do que de Édipo, existe hoje um ''complexo de Orestes''. Artigo de Massimo Recalcati - Instituto Humanitas Unisinos - IHU