19 Setembro 2018
“Não há dúvida de que a matriz cultural da nossa sociedade tende a negar o trabalho. É uma negação política favorecida pela excessiva aceitação da ideologia neoliberal, segundo a qual a figura central hoje seria a do cidadão-consumidor, e não mais a do cidadão-trabalhador. Isso porque o capital, que também é fruto do patrimônio histórico do trabalho humano, precisa hoje, para a sua valorização, muito mais dos consumidores do que dos trabalhadores.”
A opinião é do economista italiano Stefano Zamagni, professor da Universidade de Bolonha, na Itália, e membro da Pontifícia Academia das Ciências Sociais. Autor de inúmeros livros, publicou em português “Economia civil: eficiência, equidade e felicidade” (Ed. Cidade Nova, 2010), em coautoria com Luigino Bruni.
O artigo foi publicado por Settimana News, 17-09-2018. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
A entrevista do Papa Francisco ao jornal Il Sole 24 Ore, de 7 de setembro passado, é algo original. Em primeiro lugar, porque é a primeira vez que um pontífice concede uma entrevista tão longa a um jornal econômico-financeiro. Em segundo lugar, porque o papa não fala em geral, mas se dirige diretamente aos empresários e ao mundo da economia, sem alusões ou referências. Por fim, porque, nessa entrevista, o papa atualiza, por assim dizer, com referência específica às nossas res novae, alguns dos princípios cardeais da mais recente doutrina social da Igreja.
O alvo da intervenção papal é mostrar que o pensamento social cristão é capaz não só de fornecer chaves de leitura, ou seja, interpretações da crise deste nosso tempo, mas também sugerir linhas de ação eficazes para sair das dificuldades do momento.
São dois os temas principais abordados na entrevista. O primeiro é o do trabalho ou, melhor, da pessoa que trabalha. Não há dúvida de que a matriz cultural da nossa sociedade tende a negar o trabalho. É uma negação política favorecida pela excessiva aceitação da ideologia neoliberal, segundo a qual a figura central hoje seria a do cidadão-consumidor, e não mais a do cidadão-trabalhador. Isso porque o capital, que também é fruto do patrimônio histórico do trabalho humano, precisa hoje, para a sua valorização, muito mais dos consumidores do que dos trabalhadores.
No entanto, durante séculos, a humanidade se ateve à ideia de que, na origem da criação de toda riqueza, havia o trabalho humano – de um ou de outro tipo. Em vez disso, o processo cada vez mais impulsionado de financeirização da economia acabou creditando a ideia de que seriam as finanças especulativas o primum movens da criação da riqueza. Uma miríade de episódios e de fatos dão ampla confirmação disso.
Portanto, não há necessidade de se deter sobre eles. A consequência mais deletéria é a convicção generalizada de que não haveria a necessidade de trabalhar para enriquecer às pressas; é melhor tentar a sorte e, sobretudo, não ter muitos escrúpulos morais. A estreiteza normativa da filosofia política contemporânea, junto com a afirmação da definição liberal de justiça – segundo a qual a liberdade negativa tem prioridade sobre a liberdade positiva e sobre a vida boa – levou a uma dupla consequência.
A primeira é que os efeitos do trabalho sobre a qualidade de vida e a possibilidade de chegar a avaliações significativas inerentes ao trabalho têm apenas um valor secundário. A segunda consequência é que a única questão normativa que pode ser associada ao trabalho como tal é a da libertação do trabalho, ou seja, a da redução do limite de horas de trabalho. É por causa dos seus modelos normativos que a filosofia política não parece capaz nem de tornar explícita a importância das expectativas que os indivíduos associam ao seu trabalho, nem de conceituar o fato de que, para as pessoas, o trabalho continua sendo a questão fundamental da sua vida social.
As consequências de tal agitação cultural estão aí diante dos olhos de todos. Hoje, por exemplo, não dispomos de uma ideia compartilhada de trabalho que nos permita interpretar as transformações em curso. Sabemos que, a partir da revolução comercial do século XI, afirma-se gradualmente a ideia do trabalho artesanal que realiza a unidade entre atividade e conhecimento, entre processo produtivo e ofício [mestiere] – termo este que remete a maestria. Com o advento da Revolução Industrial, primeiro, e do fordismo-taylorismo, depois, avança a ideia da tarefa [mansione] (conjunto de atividades parcelizadas), não mais do ofício, e, com ela, a centralidade da liberdade do trabalho como emancipação do “reino da necessidade”.
E hoje, que entramos na sociedade pós-fordista, que ideia temos do trabalho? Há quem proponha a ideia da competência conjugada em termos de figura profissional, mas não se percebem as implicações perigosas que podem derivar a partir disso. Uma entre todas: a confusão de pensamento entre meritocracia e princípio de meritoriedade, como se os dois termos fossem equivalentes entre si.
A civilização ocidental se apoia sobre uma ideia forte, a ideia da “vida boa”, da qual o direito-dever de cada um de projetar a própria vida em vista de uma felicidade civil. Mas por onde começar par alcançar tal objetivo, senão a partir do trabalho entendido como lugar de uma boa existência? O florescimento humano – isto é, a eudaimonia no sentido de Aristóteles – não deve ser buscado depois do trabalho, como acontecia ontem, porque o ser humano encontra a sua humanidade enquanto trabalha.
Daí a urgência de começar a elaborar um conceito de trabalho que, por um lado, vá além da hipertrofia laboral típica dos nossos tempos (o trabalho que preenche um vazio antropológico crescente) e que, por outro, valha para conjugar a ideia de liberdade de trabalho (a liberdade de escolher aquelas atividades que são capazes de enriquecer a mente e o coração daqueles que estão envolvidos no processo laboral). O que significa passar da ideia de trabalho como atividade à do trabalho como obra.
Depois, a vigilante atenção do Papa Francisco dirige-se a um segundo tema. Ele diz respeito à distinção entre os conceitos de crescimento e de desenvolvimento. No sentido etimológico, desenvolvimento indica a ação de se libertar dos “envolvimentos”, dos laços e correntes que inibem a liberdade de agir (o “des” com o qual a palavra começa dá um sentido contrário à palavra a que está unida).
Nesse sentido, é sobretudo a Amartya Sen que se deve a insistência no nexo entre desenvolvimento e liberdade: desenvolvimento como processo de expansão das liberdades reais de que gozam os seres humanos.
Em biologia, desenvolvimento é sinônimo de crescimento de um organismo. Nas ciências sociais, por sua vez, o termo indica a passagem de uma condição a outra (por exemplo, aquele país passou da condição de sociedade agrícola a uma sociedade industrial). Nesse sentido, o conceito de desenvolvimento pode ser associado ao de progresso. Deve-se notar que este último não é um conceito meramente descritivo, pois envolve um implícito, mas indispensável, juízo de valor.
O progresso, de fato, não é mera mudança, mas sim uma mudança para melhor e, portanto, postula um incremento de valor. Daí que o juízo do progresso depende do valor que se pretende levar em consideração. De outro modo, uma avaliação do progresso e, portanto, do desenvolvimento requer a determinação do que deve prosseguir para melhor.
Pois bem, é a esse respeito que, a 50 anos da sua publicação, a Populorum progressio volta a ser de extraordinária atualidade. Paulo VI é o papa que mais abriu o horizonte da universalidade da Igreja na época dos direitos humanos e da globalização. O dado filosófico do documento montiniano é o realismo histórico. É realista quem se dá conta de que é no desenvolvimento dos povos que se joga a paz no mundo. Permaneceu célebre a sua frase: “O desenvolvimento é o novo nome da paz”. E é realista quem sabe que o desenvolvimento deve ser integral, isto é, de todo o homem nas suas múltiplas dimensões, e solidário, isto é, de todos os homens.
No clima da Guerra Fria que ainda se respirava em 1967, Paulo VI mostrava que a verdadeira cortina de ferro não era aquela entre o Oriente e o Ocidente, mas sim a que mantinha separados o Norte e o Sul do mundo, os “povos da opulência” e os “povos da fome”.
Por causa dessa corajosa e clarividente tomada de posição, o Papa Montini foi acusado de cumplicidade com o marxismo, como hoje está acontecendo com o Papa Francisco, em cuja Laudato si’ ressoa o eco da encíclica paulina. Mas agora já é totalmente evidente que se trata de acusações e críticas não apenas voltadas a defender interesses de parte, mas que também denunciam graves lacunas culturais em âmbito tanto filosófico quanto econômico.
O ponto central a ser observado é que o desenvolvimento não pode ser reduzido apenas ao crescimento econômico – ainda hoje medido por aquele indicador conhecido por todos que é o PIB –, mas é, sim, uma dimensão dele, mas não a única, é claro. As outras duas são a sociorrelacional e a espiritual. Mas, reitere-se, as três dimensões estão, entre si, em uma relação multiplicativa, não aditiva. Isso implica que não é possível sacrificar a dimensão, digamos, sociorrelacional para aumentar a do crescimento – como infelizmente está acontecendo hoje.
Em um produtório, mesmo que apenas um fator seja anulado, todo o produto se torna zero. Não é assim em um somatório, em que o zeramento de um adendo não anula a soma total; ao contrário, poderia até aumentá-la. Aqui está a grande diferença entre bem total (a soma dos bens individuais) e bem comum (o produto dos bens individuais): é impossível, a rigor, falar de crescimento solidário e inclusivo, enquanto se pode e se deve falar de desenvolvimento solidário e inclusivo.
Em essência, o desenvolvimento humano integral é um projeto de transformação que tem a ver com a mudança em sentido de melhoria da vida das pessoas. O crescimento, por sua vez, não é em si mesmo uma transformação. E é por isso que, como ensina a história, houve casos de países que declinaram embora crescendo. O desenvolvimento pertence à ordem dos fins, enquanto o crescimento, que é um projeto de acumulação, pertence à ordem dos meios.
Para encerrar. O apelo sincero que nos vem dessa entrevista do Papa Francisco e de todo o seu magistério é o de nos lembrar que o fato de termos nos esquecido de que não é sustentável uma sociedade de humanos em que se extingue o senso de fraternidade é a verdadeira origem das nossas dificuldades. Não se pode seguir em frente com uma cultura em que tudo se reduz, por um lado, a melhorar as transações baseadas na troca de equivalentes e, por outro, a aumentar as transferências implementadas por estruturas assistenciais de natureza pública.
É por isso que, apesar da qualidade das forças intelectuais em campo, ainda não se chegou a uma solução credível para os problemas mais urgentes. A sociedade em que se dissolve o princípio de fraternidade não é capaz de futuro; isto é, não é capaz de progredir aquela sociedade em que só existe o “dar para ter” ou o “dar para dever”.
É por isso que nem a visão liberal-individualista do mundo, em que tudo (ou quase tudo) é troca, nem a visão Estado-cêntrica da sociedade, em que tudo (ou quase tudo) é dever, são guias seguros para nos fazer sair dos baixios a que nos levou a quarta revolução industrial que está pondo a duras provas a solidez do nosso modelo de civilização.
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Uma nova ideia de economia de mercado. Artigo de Stefano Zamagni - Instituto Humanitas Unisinos - IHU