01 Setembro 2018
Essa frase foi dita pelo agricultor Crispim Manoel de Santana, de 62 anos, remanescente da Guerrilha do Araguaia e da Revolta dos Perdidos. Os dois levantes aconteceram na mesma região, com poucos anos de diferença. O primeiro, entre 1972 e 1974. O segundo em 1976. Em comum, os arbítrios dos agentes da repressão da ditadura militar. Uns, lutavam por um ideal. Outros, por terra para plantar. Todos foram atropelados pela truculência do Estado. Aliás, a frase usada por Crispim ele ouviu de um militar, o conhecido major Curió, enquanto era torturado confundido com algum “povo da mata”, como eram chamados os guerrilheiros. O militar se referia a ossos de desaparecidos ou assassinados na região durante a ditadura militar. O encontro dessas histórias foi narrado nesta segunda-feira (27), durante o primeiro depoimento, desde o fim do conflito, de quatro camponeses na Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara dos Deputados.
A reportagem é de Pedro Calvi, publicada por Agência Câmara, 31-08-2018.
Também conhecida como Segunda Guerrilha do Araguaia, a Revolta dos Perdidos foi um conflito por terras que aconteceu na região de Piçarras, no Pará, mesmo local da guerrilha, porém em uma área bem menor.
Preocupado com uma possível retomada das ações dos grupos de esquerda, o governo federal manteve no local militares e integrantes do então Serviço Nacional de Informações (SNI).
Mas, além de confundir os agricultores que queriam terra para trabalhar, com um movimento para ressurreição da Guerrilha do Araguaia, esse grupo de agentes da repressão passou também a atuar como “serviço de segurança” para grileiros de outros estados que começaram a invadir terras às margens do rio.
Os agricultores tiveram que fugir para o mato e muitos perderam tanto a produção como a época para um novo plantio.
Camponeses também foram presos, torturados e mortos durante a Revolta dos Perdidos.
“Fui torturado sem ninguém para me defender. Estava comendo banana e policiais chegaram em casa, me bateram muito com coronha de fuzil, chutaram minhas costelas. Batiam nos rostos das pessoas com um facão. Engolir munição. Diziam que meu pai era terrorista. Torturavam mulheres, crianças…tudo impune até hoje. Uma professora minha foi estuprada e torturada com choque elétrico porque pensaram que era uma guerrilheira de nome Dina. Nos levaram para aquela região para povoar o sul do Pará e acabamos iludidos. Não se fazia nada sem autorização do exército. Para sair na rua tinha que assobiar, cantar alto ou levar um pano branco para não morrer. Para mim é um sonho estar aqui hoje. Esse depoimento é uma luz no fundo do poço. Muitos já faleceram ou sumiram fugidos no mato. Hoje, em 2018, é a primeira vez que alguém ouve o nosso depoimento. A grande cicatriz que fica não está no corpo, mas na mente”. Sidney Ferreira de Oliveira, camponês ,59 anos.
Cheguei na Vila de Santa Luzia, na beira dos rios Araguaia e Perdidos, em 1972. Eram dezesseis famílias. Meu pai comprou o direito de posse de um terreno de 80 hectares, mas não era demarcado pelo Incra. Depois da primeira guerrilha, quando veio a nossa luta pela terra, o prejuízo foi imenso. Perdemos a roça de milho, feijão. Levei dois anos para plantar de novo. Fugi para o mato e depois fui levado preso pra Belém. A gente vivia vigiado e discriminado. Um dia chegou um rapaz na nossa casa procurando trabalho, mas eu vi que não era de trabalhar pesado, pelas mãos dele. Ficou uns quatro meses foi embora e voltou. Aí disse que era da Polícia Federal e nunca mais apareceu”. Deusdete Ferreira de Oliveira, camponês, 65 anos.
“Fomos para região do Araguaia em cima de um caminhão em 1973. Em 1976 aconteceu o conflito armado por causa de terra. Mas antes apanhei, fui torturado, amarrado e levado preso pra Belém com um saco na cabeça. Conhecemos quem estava lá na guerrilha, como o José Genuíno, o Paulão. O exército oferecia até armas para a gente dizer onde eles estavam. Vi a polícia queimar bigodes de agricultores com cigarros ou riscar as costas das pessoas com peixeira para que falassem. Hoje sou surdo pelos socos que levei na cabeça e dores nos rins de tanto levar pontapé. Chutavam os meninos que gritavam de dor. Uma vez quebraram o pé de um garoto desse jeito. Muitos eram obrigados pelo exército a trabalhar como mateiros, entrar no mato para encontrar os guerrilheiros. Eu tinha uma coragem louca naquela época. Aí, depois veio a Batalha dos Perdidos. A Fundação Brasil Central, junto com o Incra, cercou 50 quilômetros. E aí fomos para o combate armado. Éramos 200 pessoas. Muitos foram presos. Eu e mais 46 foram levados para a cadeia em Belém. Só quem ajudava a gente era a Pastoral da Terra”. Valmir Manoel de Santana, camponês, 62 anos.
“Nossas casas eram vigiadas o tempo todo. As mulheres não podiam nem lavar roupa no rio. Na roça a gente era sempre cercado pelo exército. Esse tempo todo a gente perdeu roça porque não podia trabalhar. Foram uns três anos sem poder plantar durante a guerrilha do Araguaia e depois na briga dos Perdidos. Tudo que a gente tinha estava ali. A gente ia morrer de fome ou brigando. Tudo que a gente conta aqui é pouco. Além dos homens, tinha o estupro das mulheres. Teve uma senhora que foi estuprada por 20 soldados. Do povo antigo pouca gente ficou. Pais de família eram presos em cisternas com água até o pescoço por oito dias para dizer onde estavam os guerrilheiros. Nossos animais eram mortos por eles. Galinha, cavalo, burro. A polícia passava nas nossas casas proibindo de encontrar com padres. Conhecemos muito o major Curió. Ele mandava matar, torturar e depois apareceu prometendo ajuda no exército, tentava enganar. Era conhecido como morcegão, que chupava o nosso sangue. Era a voz do SNI no sul do Pará. Desaparecia com as pessoas e dizia que quem procura osso é cachorro. Temos sequelas da tortura, até porque não tínhamos tratamento ou remédios. Hoje é o primeiro depoimento em um órgão oficial”. Crispim Manoel de Santana, camponês, 64 anos.
Agora, cerca de 250 agricultores remanescentes da Revolta dos Perdidos e da Guerrilha do Araguaia, querem do Ministério da Justiça a declaração da condição de anistiados políticos e a reparação econômica referente ao período que ficaram sem terra para poder plantar e colher, além de danos morais.
“A Fundação Brasil Central foi criada na década de 50 com o objetivo de povoar aquela região. Quando começaram a perceber que as terras eram produtivas, grileiros decidiram tomar a região dos agricultores. Existem documentos mostrando que o Incra foi corrompido e colaborou coma repressão. Até mudaram o nome para Grupo Executivo do Araguaia e Tocantins, para disfarçar e expulsar os camponeses com um novo projeto de distribuição das terras. Os agricultores queriam terra para trabalhar, mas foram confundidos com “terroristas” e enquadrados na Lei de Segurança Nacional. Também houve um grau de monitoramento intensivo na região. Mateiros aceitaram continuar monitorando a região em troca de cesta básica. Houve um imenso prejuízo social que o Estado tem que assumir e dar um retorno a essa população”, afirma Irene Gomes, advogada dos camponeses.
A Comissão de Direitos Humanos e Minorias vai enviar requerimento ao Supremo Tribunal Militar e ao Arquivo Nacional, pedindo informações e documentos sobre o período, além de acompanhar junto à Comissão Brasileira de Anistia do Ministério da Justiça o andamento dos processos dos camponeses.
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