30 Julho 2018
"Levar a experiência humana em suas variadas formas mais a sério na reflexão teológica poderia prontamente ajudar a desenvolver entendimentos mais saudáveis e justos de sexualidade e gênero. Após cinquenta anos, a questão que permanece é: 'Por quanto tempo os líderes da Igreja ainda irão prejudicar as pessoas com ensinamentos atemporais que estão completamente fora de contato com a realidade?'", pergunta Robert Shine, jornalista, publicado por News Ways Ministry, 29-07-2018. A tradução é de Victor D. Thiesen.
Quarta-feira passada marcou o 50º aniversário da Humanae Vitae, a Encíclica de Papa Paulo VI conhecida principalmente pela proibição da contracepção artificial. Nas décadas subsequentes desde sua promulgação, houve poucos ensinamentos tão controversos e rejeitados por tantos fiéis quanto este documento. Para marcar o aniversário, as publicações católicas fizeram uma série de análises sobre a Encíclica e seu impacto em curso.
Michael Lawler, esq., e Todd Salzmann.
Foto: News Ways Ministry
Os teólogos Michael Lawler e Todd Salzman escreveram um comentário que, apesar de não abordar explicitamente as questões LGBT, é bastante perspicaz e relevante para nossas discussões. Eu recomendo ler o ensaio, que você pode encontrar aqui, na íntegra [em inglês]. O texto destaca algumas das principais características de seu argumento geral de que o Papa Francisco mudou a noção sobre a contracepção e convocou novas conversas que incorporam mais profundamente a experiência humana na ética teológica. Em seu parágrafo de abertura, Lawler e Salzman escreveram:
"As cicatrizes dessas duas guerras (teológica e cultural sobre a sexualidade nos anos 60) ainda são evidentes. Elas se inseriram no papado de Francisco, alheias ao fato de que ele se afastou da obsessão católica pelo sexo e controle de natalidade em direção à beleza de um casamento virtuoso, justo e amoroso. Seu foco está na complexidade da experiência e relacionamentos humanos, que a Humanae Vitae deixou de considerar adequadamente".
Para os teólogos, é central a reavaliação da Humanae Vitae e do ensinamento magistral sobre sexualidade, necessitando incorporar a experiência humana na reflexão teológica. Eles argumentaram que "a reflexão sustentada e a integração da experiência humana no método ético católico levará à revisão de algumas normas morais absolutas". A experiência humana deve ser entendida corretamente como uma das várias fontes de ética e como um fenômeno comum, explorado através do diálogo:
"Em uma Igreja que é uma comunhão de crentes, a resolução de diferentes interpretações da experiência para alcançar a verdade ética requer o diálogo honesto e respeitoso da caridade louvada pelo Papa João Paulo II. Esse diálogo, estamos convencidos, revelará padrões de significado e de valor experiencial que são moldados pela tradição cristã, mas ainda não estão totalmente integrados. Perguntamos aqui sobre padrões de significado em forma de tradição que são refletidos nas experiências vividas de casais que, por razões eticamente legítimas, usam contraceptivos para regular a fertilidade e praticar a paternidade responsável".
A necessidade de diálogo sobre as vidas e relacionamentos das pessoas LGBT é um claro paralelo. Os católicos LGBT foram formados pela tradição, e ainda assim suas identidades e seu amor são invalidados. Embora o diálogo entre os líderes da Igreja e as pessoas LGBT esteja se desenvolvendo, ainda que lentamente, não está nem perto de ser saudável e positivo, como previsto por Salzman e Lawler. Tanto na contracepção quanto na homossexualidade, uma faixa da experiência humana foi rejeitada pelos líderes da Igreja que não querem admitir a realidade ao seu redor.
Salzman e Lawler exploraram três tipos específicos de experiência: cultural, científica e teológica. Os primeiros reconhecem que a Igreja às vezes é chamada de contracultural, mas é "igualmente" chamada a se envolver dialeticamente e construtivamente com a cultura:
"É verdade que a Igreja é convocada para confrontar teorias e ações culturais que não levam ao florescimento humano. Por exemplo, o individualismo raivoso desenfreado na cultura dos Estados Unidos. É igualmente verdade que a reflexão sobre a experiência cultural - As cartas pastorais da Conferência Episcopal dos EUA sobre a economia e a guerra nuclear - são um exemplo da dialética entre cultura e desenvolvimento da ética e da comunicação dessa cultura para os outros. As cartas se baseiam nos princípios católicos tradicionais de justiça, e os articulam à luz da experiência cultural específica à qual eles respondem".
Os teólogos também reconheceram que, na Igreja global de hoje, "nem as normas sociais nem sexuais podem ser únicas”, devido aos diversos contextos culturais e sociais nos quais os católicos vivem. "É irresponsável e opressivo ensinar uma norma ética absoluta que pode realmente prejudicar a dignidade humana dentro dos relacionamentos conjugais, especialmente a dignidade das mulheres", comentaram eles.
Quando se trata de igualdade LGBT, a aceitação da homossexualidade está aumentando consistentemente em todo o mundo. Mas, apesar dos avanços na aceitação cultural e dos direitos legais, a maioria dos líderes da Igreja tratam esses "sinais dos tempos culturais” como mudanças exclusivamente negativas e perigosas. Nenhuma credibilidade é concedida às famílias, Igrejas e comunidades que reconheceram a igualdade e a inclusão como parte da visão de Deus para o mundo. A experiência cultural está essencialmente ausente dos ensinamentos formais, apesar de ser bem recebida pelos fiéis nos bancos da Igreja. Da experiência científica, Salzman e Lawler escreveram sobre a necessidade de incorporar o conhecimento contemporâneo à reflexão teológica:
"Novas descobertas e tecnologias desafiam respostas éticas tradicionais baseadas em conhecimento científico impreciso ou incompleto e levantam novas questões éticas que exigem novas respostas. Algumas respostas serão extraídas de princípios éticos tradicionais, mas de uma maneira nova e sutil que pode levar à revisão. Os papas recentes têm consistentemente ensinado a necessidade de integrar as descobertas das ciências humanas na formulação da verdade ética, mas também têm sido seletivos na realização desse ensino, sendo essa seletividade exemplificada de três maneiras distintas: primeiro, quando o magistério ignora o que as ciências têm a contribuir para o discernimento da verdade ética quando tal contribuição desafiaria uma norma pré-estabelecida. Segundo, quando ela permite que a ciência, definida num sentido estritamente biológico, informe desproporcionalmente as normas; E em terceiro lugar, quando deturpa ou falsifica evidências científicas".
Décadas de pesquisa e conhecimento levaram as comunidades científicas e psicológicas a reconhecerem que a homossexualidade é uma parte inata e saudável da identidade de uma pessoa. Mas o ensino da Igreja omite amplamente esse conhecimento, preferindo a linguagem prejudicial de "intrinsecamente desordenada" que, na verdade, trata a homossexualidade como não natural. Nos piores casos, os líderes da Igreja e os Ministros pastorais confiaram em uma ciência duvidosa para promover terapias "ex-gay" e programas pastorais potencialmente nocivos, como o Courage. O simples ato do ensino magistral refletir o conhecimento que se tem hoje em dia da sexualidade humana, provocaria uma revolução na Igreja.
Finalmente, Salzman e Lawler recorrem à experiência teológica, confiando nos conceitos do sensus fidei e da recepção:
"Sensus fidei é um conceito teológico que denota tanto a capacidade instintiva dos crentes de reconhecer a verdade para a qual o Espírito de Deus os está conduzindo e seu julgamento espontâneo - que tal verdade tem peso teológico. Sensus fidei é um carisma de discernimento, do qual toda Igreja possui: Leigos, teólogos e bispos juntos, que conhecem e recebem um ensinamento como verdade e, portanto, para ser acreditado (ver Lumen Gentium, 12), deriva da experiência vivida dos fiéis católicos e da acumulação de conhecimento experiencial.
"A recepção é um processo eclesial pelo qual praticamente toda a Igreja desenvolve um ensinamento. A recepção não torna o ensinamento verdade. É, antes, um julgamento prudencial, a partir de dados da experiência, de que o ensinamento é bom para toda a Igreja e está de acordo com a tradição apostólica na qual ela é construída. É importante deixar claro que a recepção é um julgamento não sobre a verdade de um ensinamento, mas sobre sua utilidade na vida da Igreja. Um ensinamento não-recebido não é necessariamente falso, mas simplesmente julgado por todos os crentes como sendo irrelevante tanto para suas próprias vidas quanto para a vida da Igreja”.
Os teólogos citaram extensas evidências de que os fiéis rejeitaram a proibição do magistério de contracepção artificial. Dados semelhantes revelam essa mesma rejeição quando se trata de ensinar sobre a homossexualidade. Salzman e Lawler escreveram: "Nós ainda argumentamos que 50 anos de não recepção da Humanae Vitae é uma razão mais que suficiente para considerar uma revisão de sua norma contraceptiva". Certamente, os ensinamentos sobre sexualidade e gênero merecem a mesma reconsideração.
Para concluir, Salzman e Lawler levantaram questão sobre o Papa Francisco, que se concentra em grande parte na consciência e na necessidade de que a Igreja institucional respeite o discernimento e a decisão moral do fiel. Aqui, escreveram:
"Francisco reclama [em Amoris Laetitia] que achamos ‘difícil dar espaço às consciências dos fiéis, que muitas vezes respondem da melhor maneira possível ao Evangelho em meio às suas limitações, e são capazes de realizar seu próprio discernimento em complexas situações, acrescentando o julgamento incisivo de que fomos chamados a formar consciências, e não a substituí-las’ (37), Ele está articulando um princípio católico tradicional que se aplica a todos os juízos morais, incluindo o julgamento sobre usar, ou não, contraceptivos artificiais. As circunstâncias e o contexto são fatores em todo julgamento ético. A Igreja não tem competência abrangente e, portanto, nenhuma autoridade é inquestionável para avaliar a experiência humana. Ela deve recorrer aos julgamentos conscientes e às ciências humanas".
O legado da Humanae Vitae continua a prejudicar não só a Igreja Católica, mas muitas pessoas no mundo. O que é importante para os defensores LGBT lembrar é o quão interconectadas essas questões realmente são - um ponto que Jamie Manson fez no National Catholic Reporter algumas semanas atrás. Embora muito menos definida como doutrina quando Paulo VI lançou sua Encíclica, a complementaridade de gênero, reforçou, tanto na época como agora, ensinamentos prejudiciais como os da contracepção e da homossexualidade.
Mas levar a experiência humana em suas variadas formas mais a sério na reflexão teológica poderia prontamente ajudar a desenvolver entendimentos mais saudáveis e justos de sexualidade e gênero. Após cinquenta anos, a questão que permanece é: “Por quanto tempo os líderes da Igreja ainda irão prejudicar as pessoas com ensinamentos atemporais que estão completamente fora de contato com a realidade?”
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50 anos depois, lições da discussão sobre “Humanae Vitae” são aplicáveis a questões LGBT - Instituto Humanitas Unisinos - IHU