06 Março 2018
Jesus é o princípio e o destino do mundo, como afirma a bela carta aos Efésios da qual é extraído o incipit do texto da Congregação da Doutrina e da Fé: Placuit Deo. Jesus é o único Salvador de Deus para todos os homens, não só para os seus mais próximos, não só para os nossos recomendados. Para todos.
O comentário é de Pierangelo Sequeri, decano do Pontifício Instituto João Paulo II para os Estudos sobre a Teologia do Matrimônio e da Família, publicado por Avvenire, 03-03-2018. A tradução é de Luisa Rabolini.
O núcleo da mensagem, dirigida aos bispos, com a aprovação do Santo Padre reitera o ponto, graças a Deus. Apesar de sua brevidade eclesiástica, o texto deixa também filtrar certa intenção instrutiva sobre "alguns aspectos da salvação cristã", que estão em risco de perder a sua transparência, no impacto com a realidade cultural que repropõe velhos equívocos da própria fé cristã. Eu gostaria de salientar justamente esse aspecto, buscando entre as linhas do documento, além dos aspectos técnicos teológicos, a profundidade da visão humana inspirada pela fé.
Vejamos, então. A primeira orientação existencial, fortemente orientada para um projeto total de autossalvação, é filha do bem-estar econômico, do progresso técnico, do individualismo radical. É a parte do homem que confia apenas em si mesmo, para tudo. Mesmo quando não admite abertamente, confia na própria capacidade de chegar - se não hoje, algum dia, a um total domínio de si e de sua força, para pode colocar 'a salvo' tudo aquilo que quer colocar a salvo: as suas necessidades, os seus desejos, o planejamento ideal de sua vida individual e construção eficiente da estrutura social. Um projeto semelhante, ressalta o nosso Documento, é uma engenhoca para ilusionistas, claro. Porém, à diferença das mágicas inofensivas dos ilusionistas, traz danos seriais. Ela nos transforma em pequenos todos poderosos à procura de uma vida totalmente planejada para o bem-estar - às nossas custas - e cria uma tolerância social à incomodação pelo próximo, que nos subtrai recursos.
A antiga tradição teológica recebeu tal modelo através da visão do monge Pelágio (daí o termo "neo-pelagianismo"), seduzido pelo projeto de uma criatura humana que, uma vez recebidas as instruções necessárias do Evangelho, consegue fazer tudo sozinho, apenas com suas forças individuais. O Papa Francisco já havia apresentado esse modelo antigo como um risco, adaptado ao perfil do homem faça-você-mesmo: que também insidia, em muitos aspectos, o ideal cristão dos fortes e puros (a parábola evangélica do fariseu e do publicano, bem nota, é de incomparável eloquência a esse respeito).
O segundo modelo de desvio de autossalvação aparece na tendência a concentrar a qualidade humana na vida interior, na inteligência, na racionalidade, no puro pensamento que se liberta dos falsos brilhos do corpo e despreza seus afetos, sua vulnerabilidade e seus limites: considerando-os como um fardo e quase uma maldição da qual é preciso livrar-se. É a antiga Gnose, que cultiva a obsessão da redução da vida apenas para a Mente.
A tendência atual ao chamado pós-humano, hoje certamente em aceleração, aparece como uma versão que não esperávamos do antigo ideal gnóstico: reduzir o homem a imaterialidade, conhecimento, vida interior totalmente independente do corpo humano propriamente dito, reduzido e manipulado como puro suporte. A redução da vida interior para o cérebro, a ilusão de uma inteligência artificial com performances infinitamente melhores, o enriquecimento ilimitado da realidade virtual, que simula relações de corpos não mais humanos: tudo parece marchar rapidamente nessa direção. Trata-se de outra modalidade de mal-entendido do humano, à qual a encarnação do Filho, como única fonte de salvação, trava o caminho.
O projeto de desumanização do corpo e - respectivamente – da vida interior propriamente humana (irredutível a hormônios e neurônios) é certamente destinado a fracassar. Resta saber com que dano e à custa de quantas vítimas.
A Igreja existe, conclui o documento, para nos fazer sentir também "fisicamente" a integridade do "nós" humano, em que vivemos os afetos que nos são doados pelo amor de Deus, nos sustentamos nas contradições de uma humanidade ferida, nos preparamos para uma vida esperada que - mesmo de forma inimaginável - será a transfiguração desta, por obra de Deus. Corpos ressuscitados, espíritos ressuscitados, vínculos e comunidades ressuscitadas, coisas e ideias ressuscitadas. Não permitamos que nos separem da comunidade que se mantém fiel - para todos, mesmo para aqueles que não a frequentam - ao verdadeiro Corpo do Senhor.
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A salvação cristã e o nosso tempo. Nunca só para poucos - Instituto Humanitas Unisinos - IHU