27 Fevereiro 2018
“A necessária reconciliação entre diferentes tipos de católicos não pode ocorrer apenas através do debate político, teológico ou intelectual – por mais urgente e necessário que tal debate seja. Não pode haver reconciliação entre católicos que não envolva algum tipo de reconciliação litúrgica, dada a posição primária da liturgia na vida da Igreja.”
A opinião é do historiador italiano Massimo Faggioli, professor da Villanova University, nos Estados Unidos, em artigo publicado por Commonweal, 21-02-2018. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Em um futuro previsível, não será possível restaurar a unidade da liturgia romana: a divisão entre a “forma ordinária” e “o uso do Missal de 1962 como forma extraordinaria da liturgia da missa” (como Bento XVI afirmou no motu proprio Summorum Pontificum de 7 de julho de 2007) estará conosco por um longo tempo.
Seja lá o que pensarmos disso, essa divisão se tornou parte do panorama eclesial. E, neste caso, “extraordinário” não significa “de vez em quando”: o rito pré-Vaticano II tornou-se o rito ordinário para um considerável número de católicos romanos.
O espectro das posições na Igreja Católica sobre as reformas litúrgicas do Vaticano II é muito mais amplo em alguns países do que em outros. A polarização nos Estados Unidos está ausente na Itália, de onde eu venho. Se você olhar para o debate que ocorre entre os católicos estadunidenses (e, em menor medida, entre os católicos de outros países de língua inglesa), você encontrará duas posições principais.
De um lado, estão aqueles que são a favor de um maior desenvolvimento da reforma litúrgica: mais inculturação da liturgia, traduções dinâmicas dos textos litúrgicos, em vez do tipo exigido pela instrução vaticana Liturgiam Authenticam (2001), e descentralização das decisões sobre a liturgia.
Do outro lado, estão aqueles que pensam e dizem que as reformas litúrgicas do Vaticano II devem ser reformadas. Quando se trata de questões como a inculturação e a tradução litúrgica, eles são a favor das políticas implementadas pelo Vaticano desde o início dos anos 2000 e afirmadas no Summorum Pontificum de Bento XVI.
Durante o pontificado do Papa Francisco, os críticos das reformas litúrgicas do Vaticano II receberam o apoio clerical do cardeal Raymond Burke e do cardeal Robert Sarah. Sarah foi nomeado prefeito da Congregação para o Culto Divino e a Doutrina dos Sacramentos pelo Papa Francisco em novembro de 2014; e ele ainda detém essa posição, apesar de uma série de discordâncias muito públicas com o papa – desde os 13 meses que Sarah levou para aceitar a instrução de Francisco sobre a permissão de que mulheres participem da liturgia do lava-pés até as declarações falaciosas do cardeal sobre a intenções do papa em relação à reforma litúrgica.
O Papa Francisco claramente não é um tradicionalista litúrgico, e, embora tenha respeitado as provisões feitas aos tradicionalistas pelo seu antecessor, seu motu proprio Magnum Principium (setembro de 2017) visava a corrigir a recente tendência de Roma de “latinizar” e “curalizar” a liturgia. Mas, embora alguns tradicionalistas estejam preocupados que esse pontificado é uma ameaça às liberdades que eles adquiriram com Bento, Francisco não está prestes a revogar o Summorum Pontificum. Isso significa que o status quo de duas vias continuará sendo o status quo por um longo tempo. Os teólogos costumam dizer que, aos 50 anos, a recepção do Vaticano II recém-começou; se poderia dizer o mesmo sobre o movimento pela “reforma da reforma”: ele recém-começou.
O estado atual da liturgia nos Estados Unidos é um exemplo das consequências não planejadas das reformas do Vaticano II. Essas reformas – incluindo as reformas litúrgicas – visavam a construir a unidade: entre católicos, entre católicos e outros cristãos, e entre a Igreja e toda a família humana.
Em vez disso, essas reformas e a reação contra elas se tornaram um símbolo de divisão sectária. Estamos bem além do ponto em que os teólogos e liturgistas católicos se preocupavam com a aparição de um novo “birritualismo” dentro da Igreja Católica: graças a Bento, um rito romano birritual está agora consumado. É claro que essa inovação, que introduziu uma descontinuidade radical na vida da Igreja, foi realizada em nome da continuidade com o passado da Igreja, paradoxo que não incomoda a maioria dos tradicionalistas.
Esse novo birritualismo não é, em sua maior parte, uma acomodação para aqueles que cresceram com a antiga missa latina; ele visa a uma nova geração de tradicionalistas, nascidos depois de 1964, que cresceram com o novus ordo. As disputas entre os defensores da reforma litúrgica do Vaticano II e os defensores da forma extraordinária são – outro paradoxo – disputas entre uma geração mais velha que defende o novo e uma geração mais jovem que defende o velho. Essas disputas feriram o senso de comunhão entre os católicos. O rancor desse conflito nos Estados Unidos foi uma surpresa dolorosa para mim quando me mudei para este país.
Em “Tradição e Tradições” (1960), Yves Congar escreveu: “Você não pode entender corretamente outro cristão enquanto não o vir em oração em sua própria comunidade e, com todo o respeito às leis que proíbem a communicatio in sacris, frequentar seu lugar de culto para rezar com ele”.
Congar estava escrevendo sobre ecumenismo, mas, hoje, suas palavras também se aplicam às relações entre católicos com diferentes sensibilidades litúrgicas.
Congar nos ajuda a entender o que aconteceu com esse novo birritualismo na liturgia romana: “A liturgia é ‘o principal instrumento da tradição da Igreja’”. Citando as Institutions liturgiques (1840-1851) de Dom Prosper Gueranger (1840-1918), Congar continuou: “‘É na liturgia que o Espírito que inspirou as Escrituras ainda nos fala; a liturgia é a própria tradição, no seu mais alto grau de poder e solenidade’”.
Congar escreveu sobre a posição muito alta da liturgia entre os instrumentos da tradição, que é mais do que um mero “arsenal dialético”. Escrevendo antes do início do Vaticano II, Congar descreveu a habilidade especial da liturgia de esclarecer e de confortar: “Através do caráter bastante especial da liturgia, uma série de questões são resolvidas de uma maneira sã e cristã, às vezes até mesmo antes de serem levantadas, ou, pelo menos, sem serem acompanhadas por tensões e dificuldades: talvez um pouco como a resolução pacífica, na calma de um círculo familiar normal, de questões cheias de discrepâncias e conflitos, por exemplo, autoridade e liberdade, pessoas e comunidade, continuidade e inovação, tensão e relaxamento etc. É a liturgia que dá à Igreja a plenitude de sua atmosfera familiar; nisso, ela reúne a Tradição, que é, como já vimos, algo muito similar ao que a educação é na sucessão, na solidariedade e na renovação das gerações”.
Mais de 50 anos depois, a descrição otimista de Congar sobre o papel da liturgia na mediação pacífica das tensões na Igreja agora parece ser um alerta ameaçador: simbolicamente, os dois ritos são agora como dois “círculos familiares” separados. Os dois estão formalmente em comunhão um com o outro, mas raramente se encontram para conversar, para rezar juntos e para compartilhar a refeição que significa sua comunhão.
Podemos nos perguntar se, sob a superfície da unidade, o catolicismo nos Estados Unidos não está se fragmentando de uma forma paralela às divisões no judaísmo contemporâneo. Existe um catolicismo tradicionalista (correspondente, de certa forma, ao judaísmo ortodoxo), que celebra a missa em latim e trata o desenvolvimento da doutrina como algo que terminou em algum ponto entre John Henry Newman e Pio XII.
Depois, há um tipo de catolicismo ressourcement (correspondente, grosso modo, ao judaísmo conservador), que se enraíza na teologia do Vaticano II, com sua compreensão da tradição como dinâmica.
E, por fim, há um catolicismo progressista (correspondente ao judaísmo reformista), para o qual a tradição é principalmente uma relíquia do passado, e o Vaticano II é apenas um trampolim para futuros desenvolvimentos.
O birritualismo da liturgia romana é um emblema da polarização da Igreja no Ocidente. É, com certeza, uma polarização assimétrica. Somente na internet os dois lados parecem ser aproximadamente equivalentes; in loco, a grande maioria dos católicos aceitou a reforma litúrgica, enquanto apenas uma pequena minoria a desafiou.
Mas a polarização vai continuar, acredito, e vai continuar a ser um problema importante para a Igreja, quer a minoria cresça ou encolha em termos de porcentagem de católicos.
Em todo o caso, a necessária reconciliação entre diferentes tipos de católicos não pode ocorrer apenas através do debate político, teológico ou intelectual – por mais urgente e necessário que tal debate seja. Não pode haver reconciliação entre católicos que não envolva algum tipo de reconciliação litúrgica, dada a posição primária da liturgia na vida da Igreja.
A polarização do catolicismo estadunidense é uma doença que começou com diferenças sociopolíticas e passou a envolver diferenças teológicas. Estamos chegando agora ao estágio III da doença, em que as diferenças se estendem para além do âmbito teológico até chegar à própria Eucaristia. Isso deveria preocupar os católicos em ambos os lados da grande divisão.
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Por que a liturgia é tão importante para a comunhão. Artigo de Massimo Faggioli - Instituto Humanitas Unisinos - IHU