09 Março 2016
"Encaminhar a comunidade cristã para uma sempre maior procura da humanização da liturgia, significa fazer sim, que os crentes assíduos, entrem em comunhão façam experiência da humanidade de Deus, revelada na humanidade de Jesus Cristo", escreve Goffredo Boselli, monge de Bose e especialista em liturgia, na abertura da terceira sessão do Sínodo da Igreja de Nola.
Após a reflexão de Joseph Martos sobre a liturgia, temos a intervenção de Goffredo Boselli, monge de Bose e especialista em liturgia, na abertura da terceira sessão do Sínodo da Igreja de Nola, dia 08 de janeiro de 2016.
O texto é reproduzido por Christian Albini, teólogo italiano, no blog Sperare per Tutti, 25-02-2016. A tradução é de Ramiro Mincato.
Eis a intervenção.
Minha saudação a todos, irmãos e irmãs, membros do Sínodo Diocesano da Igreja de Nola. Afetuosa e filial saudação ao bispo Beniamino, a quem agradeço de coração pelo convite. A todos digo da minha alegria de estar aqui, para refletir sobre o significado e o valor da liturgia na vida da Igreja e de cada homem e mulher crente.
Gostaria de dizer, antes de tudo, o quanto valorizo e concordo com o Relatório Geral, Per una chiesa che rende lode, Relatório da terceira sessão do Sínodo Diocesano. Li-o com atenção, e identifiquei-me plenamente, também na parte relativa as escolhas concretas. Minha intervenção, agora, quer simplesmente dar eco à compreensão da liturgia na celebração do Mistério. O Relatório Geral compõe-se de três partes: partir do Mistério, introduzir ao Mistério, viver o Mistério.
Minha intenção é não reapresentar ou comentar o Relatório Geral, mas de procurar interpretá-lo. Na primeira parte procurarei mostrar que compreender a liturgia como mistério, significa, antes de tudo, que não somos nós que fazemos a liturgia, mas é ela que faz de nós “crentes”. Lê-se também que “a liturgia é vivida mais como coisa a fazer ou como obrigação a cumprir do que como evento a acolher”. Por isso intitulei a primeira parte: A liturgia faz o cristão.
A partir desta perspectiva de fundo, nas duas partes sucessivas chamarei a atenção e o juízo de vocês para aquelas que são, ao meu ver, as duas principais exigências da liturgia hoje na vida da Igreja. Estou super convencido de que hoje, viver a liturgia como experiência do Mistério significa fazer viver a liturgia como espaço de santidade hospitaleira. Apelo para uma liturgia hospitaleira.
Na última parte indicarei a segunda exigência: estou persuadido que viver hoje a liturgia como experiência do Mistério significa fazer viver a humanidade da liturgia. O Mistério cristão, de fato, não é declinável na sacralidade, mas na humanidade. Deus se revelou na humanidade do Filho Jesus Cristo, verdadeiro Deus e verdadeiro homem. Por isso, a segunda exigência da liturgia é fazer viver a humanidade da liturgia. Apelo para uma liturgia mais humana. Quanto mais humana for a liturgia, mais será experiência do Mistério.
A liturgia faz o cristão
O cristianismo é obra da liturgia; forja-o, forma-o e conforma-o. Por isso, a liturgia não é efeito, mas origem. É muito mais ventre e matriz do que produto e resultado. A liturgia nos precede, esta na nossa frente, por ela somos, de fato, convocados. Dela nos aproximamos como de uma realidade que não dispomos totalmente, e da qual, tanto menos, somos donos. Nela somos acolhidos e hospedados, sem permanecer estranhos, somos convidados e sentamos à mesa e partilhamos o que nutre a fé. Quando se entra na liturgia, não se decide somente entrar num espaço para passar um determinado tempo, mas escolhe-se antes de tudo uma postura, isto é, escolhe-se e adere-se a um modo de ser homem ou mulher, busca-se um modo de estar no mundo, diante de Deus e diante dos outros, em resumo, permite-se uma verdadeira e própria metamorfose, aquela em que “somos feitos cristãos”.
Entrar da liturgia, ao longo de uma vida inteira, um domingo depois do outro, ano após ano, às vezes, também, só por hábito, sem vontade, é o que mantém vivo nosso “ser cristão”, tanto pessoal como comunitário. Às vezes percebemos que tomar parte na liturgia é resposta a um chamado interior. Nós entramos na liturgia, mas na verdade, é ela que entra em nós, nas fibras do nosso ser crentes, plasma o nosso “homem interior” (Ef 3,16), cultiva-o com o cuidado de uma mãe, nutre-o com a sabedoria de um mestre. A liturgia nos faz filhos e discípulos: filhos da Igreja e discípulos do Evangelho. Sem liturgia, isto é, sem o nutrimento da Palavra de Deus e do pão substancial da Eucaristia, sem a ação do Espírito Santo em nós, a consolação do perdão e o óleo da fraternidade, nossa fé esmorece, degenera, morre. Sim, a fé pode morrer. A liturgia age sobre nós crentes infinitamente mais do que temos consciência. Ela nos dá muito mais do que pedimos, nela encontramos mais do que procuramos. A liturgia cristã não é um mero contentamento das necessidades religiosas primárias do ser humano, não se apazigua em dar uma forma cristã ao inato sentimento religioso. Como o Evangelho, a liturgia cristã leva da condição de homo naturaliter àquela de homo christianus, mulier christiana levando-os “até atingir a medida da plenitude em Cristo” (Ef 4,13).
Interrogado sobre sua experiência de liturgia Paul Ricoeur respondeu: “Agradeço a liturgia que me arrancou da subjetividade, ofereceu-me, não minhas palavras, não meus gestos, mas aqueles da comunidade. Sou feliz por esta objetivação dos meus próprios sentimentos; inserindo-me numa expressão cultural sou arrancado da efusão sentimental; entro na forma que me forma; fazendo meu o texto litúrgico torno-me eu mesmo texto que reza e canta” [1]. Ao afirmar “entro na forma que me forma”, como faz Ricoeur, significa reconhecer que para formar o “ser crente” devo saber renunciar a todas as pretensões de poder dar-me, eu mesmo, a forma cristã e, consequentemente, de eu querer formar a liturgia à medida dos meus desejos, dos meus gostos, ou pior ainda, das minhas saudades. Como o Evangelho e a Igreja, também a liturgia nos precede sempre, por isto, “entro na forma” e, por quanto posso levar a ela do que meu, a minha participação é sempre uma resposta ao convite: “Vinde, está pronto!” (Lc 14,17). Sim, “está pronto”, mesa preparada há tempo, e isto significa que todas as vezes que entro na liturgia não devo inventar palavras a serem ditas, procurar textos para serem ouvidos, improvisar gestos a serem feitos, encontrar posturas a assumir. Entramos numa realidade que nos precede, porque é o fundamento já posto anteriormente: é a Palavra já pronunciada, o gesto salvífico já realizado, a fé da Igreja já professada.
Quem, na liturgia, não é capaz de mudar a gestualidade do próprio corpo, à base de um rito codificado e partilhado, como poderá realizar uma transformação interior, começar uma mudança espiritual, a fim de que se realize uma verdadeira e tangível comunhão espiritual? Já estão longe os anos nos quais as normas litúrgicas eram olhadas com desconfiança e sofrimento. Atitudes que vinham de um clima de reação a todo tipo de regras, leis e obediências. Hoje compreende-se que quando o ordo litúrgico é observado com espírito inteligente, e distante de toda estreita rigidez, ele contém e transmite uma sabedoria milenária. O ordo litúrgico é a fé da Igreja expressa na simplicidade de um gesto, na nobreza de um movimento, na dignidade de uma postura, na sobriedade de uma palavra que se quer medida, afim de que possa ser profunda e eficaz. Quem é totalmente incapaz de submeter-se humildemente a uma regra litúrgica, saiba que, cedo ou tarde, de celebrante do Mistério se descobrirá um mercenário do sacro. O confim entre celebrante e mercenário é sutil para todos, tanto para os presbíteros como para os leigos. O ritualismo é a liturgia tornada profissão, vício, até mesmo mania e obsessão. Em tal caso a liturgia não é mais “a forma que me forma”, mas a forma que me torna rígido, esclerótico e, portanto, deformado.
Afirmar que a liturgia faz o cristão significa que eu aceito sem preconceitos e sem reservas o que na liturgia da Igreja já está dado. Até quando, na liturgia, eu não conseguir experimentar uma receptividade convicta e inteligente, não aceitarei jamais que ela forme meu ser crente. Esta atitude, antes de tudo interior e espiritual, exige abnegação e renúncia, espoliação e até mesmo sacrifício. Entrar na Igreja para a liturgia significa, olhando bem, aceitar de não ser o dono, mas convidado, não o autor, mas intérprete, não de dispor do rito, mas de dispor-me ao rito. Renuncio ao domínio sobre o espaço, ao controle do tempo, ao poder sobre o rito, ao comando sobre as outras pessoas presentes, numa palavra, renuncio ao senhorio sobre mim mesmo, mas sobretudo sobre os outros e sobre Deus. Não decido os textos a ler, mas obedeço ao lecionário. Não escolho arbitrariamente as orações, mas rezo os textos que o Missal dispõe. Não seleciono os ritos a cumprir, mas observo um ordo antigo de séculos. Não decido a festa a celebrar, mas sigo o calendário litúrgico estabelecido. Não escolho os irmãos e irmãs com quem formar a assembleia santa, mas os reconheço presentes, também eles, como eu, convocados. É, portanto, necessário que o cristão se consigne à liturgia, entregue-se totalmente, permitindo que esta aja por ele e opere nele.
Se, cada vez, na liturgia, se precisasse inventar tudo de novo e criar tudo desde o início, seriamos, de fato, convocados por ela, entraríamos num lugar e num tempo diferentes, com sinais e significados de uma presença outra, santa? Compreender, de fato, que “a liturgia faz o cristão”, que “ela é a forma que me forma”, significa aceitar que a liturgia da Igreja não só vem antes dos meus pensamentos, dos meus sentimentos, das minhas concepções, gostos e afinidades naturais, mas às vezes também que se ela se opõe ao meu sentir e o contradiz, contestando-o.
Quando o crente sabe receber aquilo que já foi dado pela liturgia, quando sabe entregar-se a ela renunciando a todo sentimento de posse e a toda manipulação, então intuirá o que deverá necessariamente acrescentar de seu à liturgia, de modo ativo, livre e inteligente. Este acréscimo é essencial à liturgia cristã. Uma liturgia autêntica e dinâmica exige, de fato, o sábio equilíbrio entre o já construído e o a construir, o já feito e o ainda a fazer [2]. Neste sentido o cristão faz a liturgia, tanto quanto a liturgia faz o cristão, em perfeita circularidade e em plena sinergia.
Primeira exigência: a liturgia como espaço de santidade hospitaleira
Apelo por uma liturgia hospitaleira.
Se a liturgia, desde sempre, faz o cristão, gostaria agora de refletir sobre o que são, a meu aviso, as duas exigências para que possa ser vivida, por eles, como fonte de vida humana e espiritual. Certo, para os crentes mais assíduos, mas também para aqueles mais ocasionais, para os quais a liturgia, em particular os sacramentos, são o único e sutilíssimo frágil fio que os une à Igreja. A primeira exigência é aquela de viver e fazer viver a liturgia como espaço de santidade hospitaleira. Em síntese, a necessidade de que nossas liturgias, hoje, sejam mais hospitaleiras.
Um dos cantos litúrgicos mais amados é o do convite dos discípulos de Emaús dirigido a Jesus Ressuscitado, “Resta con noi, perché si fa sera” – Fica conosco, porque a noite vem chegando. “Fica conosco... “, é a palavra que transforma o estrangeiro em hóspede. “Ele entrou para ficar com eles”: somos hóspedes quando entramos e ficamos. É o auge do relato de Emaús: Jesus entra, como lhe pediram, e fica com os discípulos, e por bem três vezes, em dois versículos, se sublinha a companhia de Jesus, quase a dizer que aquele ficar com os discípulos é particularmente intenso, carregado de sentido: “Fica conosco... Entrou para ficar com eles...” (Lc 24,30-31). E eis, o convidado, é ele agora que faz o gesto de quem preside a mesa: tomou o pão, ... partiu-o e deu-o a eles. O hóspede, é ele que acolhe os hóspedes, como que para dizer que a hospitalidade é obtida quando quem convida e acolhe é, por sua vez, acolhido por aquele que hospedou em sua casa. Todo o relato de Emaús é a narração de uma hospitalidade recíproca.
Olhando de perto, com os discípulos de Emaús, o Ressuscitado instaura a mesma relação que, ao longo de sua vida criava com todos os tipos de pessoas que andavam com ele. A hospitalidade é uma atitude do ser de Jesus de Nazaré, uma postura, seu modo de estar no mundo e de entrar em relação. A sua é uma “santidade hospitaleira”, como a definiu o teólogo Christoph Theobald [3], que se retira para criar em torno de si um espaço de liberdade, de reconhecimento, comunicando, com sua simples presença, uma proximidade benevolente com aquele que o encontra. Mas, em que consiste esta “santidade hospitaleira” de Jesus, que também os discípulos de Emaús experimentaram? Não é nada mais que um tipo de relação instaurada e o efeito que ela produz: “Não ardia, por acaso, nosso coração, quando ele nos falava”, reconhecem os dois.
É cada vez mais urgente, portanto, que nossas liturgias sejam capazes de recriar aquele tipo de relação que Jesus de Nazaré sabia criar com as pessoas que o encontravam. A inteira existência de Jesus foi uma liturgia hospitaleira, e também as nossas liturgias são chamadas a sê-lo, hoje, mais do que nunca. Por isso, nos anos que nos estão na frente, a santidade da liturgia será chamada a declinar-se como santidade hospitaleira; não uma santidade de distância, mas de proximidade. Uma liturgia hospitaleira não é uma moda ou um estratagema pastoral, mas é a postura mesma de Cristo, que também ressuscitado se faz caminho, presença, proximidade benévola, escuta, palavra, pão repartido.
Por isso, se nossas liturgias, e em particular, a Eucaristia dominical, quiserem ser lugares de misericórdia, non poderão ignorar as profundas transformações sociais, culturais e antropológicas em curso, cujos resultados são dificilmente previsíveis. A liturgia, assim como a pastoral sacramental, não podem não se deixar interrogar por aquele fenômeno que sempre mais observadores definem como “desordem na definição do humano”. O humano não é o destinatário passivo das nossas liturgias mas é a matéria mesma com que elas são feitas. Ignorar essa transformação significaria não saber mais de qual humanidade são formadas nossas assembleias litúrgicas. Esta é uma liturgia em saída, para uma “Igreja em saída”, da qual, o Papa Francisco, tem falado frequentemente.
Devemos cada vez mais convencer-nos de que a Igreja que celebra a liturgia é a mesma que vai para as periferias existências, pela simples razão de que hoje, para um número sempre maior de pessoas, a liturgia é o limiar do mistério de Deus. Negaríamos a evidência dos fatos se não admitíssemos que a pastoral dos sacramentos é hoje, claramente, uma pastoral missionária. A procura pelo batismo para os filhos e as etapas da sua iniciação, o pedido pelo matrimônio cristão, a experiência do mal e da culpa, as dolorosas provas da doença e da morte, também são periferias existenciais em direção as quais a Igreja está empenhada em sair ao encontro. Sair, lemos na Evangelii Gaudium, significa não ficar esperando, mas tomar a iniciativa, envolver-se, acompanhando a humanidade. Quem tem experiência do humano sabe muito bem que na pastoral ordinária dos sacramentos a Igreja é conduzida para as encruzilhadas dos caminhos, lá onde se encontra a humanidade real. Sim, a pastoral dos sacramentos é a hodierna Galileia das nações.
Ao homem e à mulher que hoje fadigam em dar sentido às grandes etapas da sua vida, os sacramentos oferecem a luz do projeto de Deus sobre sua criaturas. Vida, amor, morte são, ontem como hoje, as palavras de humanização, e a solicitação, muito ampla ainda na Itália, de que os sacramentos sigam as grandes etapas da vida, desafiando a Igreja a sair ao encontro destas demandas. Não tanto para favorecer tradições religiosas ou hábitos sociais, mas para discernir, na procura dos sacramentos, aquele sentimento, mais ou menos confuso e todavia ainda presente nas pessoas, que em vir à vida, no amar e no morrer joga algo de essencial e decisivo. Os sacramentos da Igreja são caminho de humanização evangélica.
Por isso as liturgias não poderão evitar o confronto com a contínua mudança e fragmentação dos modos de crer, que a secularização crescente produz, especialmente entre os jovens, e em particular entre as jovens mulheres. Devemos constatar que, frequentemente, nossas liturgias são assentadas sobre um modo de crer que, com o tempo, mudará bastante em relação aquele que conhecemos até hoje.
Diante de tudo isto, a liturgia e em particular as Eucaristias dominicais, para serem caminhos de misericórdia e de esperança, serão chamadas a ser sempre mais espaços de santidade hospitaleira. E a hospitalidade é acolhimento, restauro, repouso, parada, reconhecimento. Liturgias onde as pessoas podem encontrar conforto, consolação e alívio. A liturgia que nos espera, deverá ser a figura de Cristo que proclama: “Vinde a mim vós todos que estais cansados e oprimidos, e eu vos aliviarei” (Mt 11,28). Misericórdia não só para os pecados compreendidos como atos individuais, mas misericórdia em relação às condições de vida, às situações existenciais marcadas frequentemente pela fragilidade, fraqueza, cansaço. Misericórdia diante de respostas erradas dadas a corretas buscas de sentido, diante de evidentes falimentos resultantes de um autentico desejo de felicidade.
Portanto, uma liturgia que seja crível aos olhos dos cristãos e das cristãs sempre mais secularizados, isto é, sempre mais desencantados, que procuram ser crentes e não crédulos, não simples praticantes de uma religião, mas discípulos do Evangelho. Uma liturgia crível é aquela guiada e animada por pessoas críveis, cuja autoridade, na cultura contemporânea, não é mais dada pela função ou pelo ofício, mas pela coerência ente o que dizem e o que são. Será espaço de misericórdia uma liturgia onde as palavras são portadoras de sentido e não fórmulas recitadas e onde os sinais são testemunhas de uma revelação. Todos os sinais litúrgicos, de fato – sejam ritos, gestos, mas também hábitos, cantos, músicas e obras de arte – são os sinais de uma verdade consignada à fé dos crentes.
Segunda urgência: viver a humanidade da liturgia.
Apelo a uma liturgia mais humana.
Já há alguns anos, na Igreja, amadurece a consciência de que o caminho espiritual e o caminho de humanização formam um todo único. Está lentamente crescendo a convicção de que aquilo que é autenticamente espiritual é também autenticamente humano. Daqui parece emergir que, para os crentes e as crentes de hoje, aqueles mais adultos na fé e conscientes, capazes de discernir, ao mesmo tempo, a vida da humanidade e a vida da Igreja, a experiência de fé cristã é chamada a declinar-se como caminho de humanização, e que evangelizar hoje significa humanizar à luz da humanidade de Jesus Cristo. Mas este caminho não pode prescindir da compreensão da liturgia como resposta de humanidade. A liturgia, de fato, assume, transfigura e converte todo o humano, porque no gesto sacramental o agir de Deus e o agir do homem operam em sinergia: espiritual e humano são um. Todo o humano entra na ação litúrgica, e não pode ser diferente, pois é o homem– corpo, espírito e inteligência que está implicado na liturgia.
Reconheçamo-lo sem temor, nos anos passados, tentou-se uma ressacralização da liturgia com uma equivocada ideia de mistério. Estou convencido, porém, que, nos anos que vem pela frente, será cada vez mais necessário prosseguir o caminho de humanização da liturgia empreendido pelo Concílio. A santidade da liturgia se mostrará na sua humanidade, assim como a divindade de Cristo revelou-se na sua humanidade. Mais a liturgia será autenticamente humana, mais será autenticamente divina. Porque o único vulto da transcendência é o vulto humano.
Encaminhar a comunidade cristã para uma sempre maior procura da humanização da liturgia, significa fazer sim, que os crentes assíduos, como aqueles ocasionais, por meio da humanidade da palavra e do gesto litúrgico, por meio da humanidade do ambiente e do estilo litúrgico, entrem em comunhão e façam experiência da humanidade de Deus, revelada na humanidade de Jesus Cristo. Devemos ter certeza que aquela humanidade de Jesus, tornada narração evangélica, pode também tornar-se ritualidade litúrgica. Os sacramentos da Igreja são, de fato, revelação da humanidade de Deus e narração da humanidade de Cristo.
A vida litúrgica da comunidade, de fato, será caminho de humanização, na medida em que a liturgia for celebrada e vivida como receptáculo da humanitas Chrsiti. Jesus Cristo revelou Deus, por meio de sua vida humaníssima: comunicava-se com linguagem compreensível por todos, desde os dotados fariseus até a gente mais simples e inculta, com palavras claras, que não tinham necessidade de ulteriores explicações e, por isso, reconhecidas como palavras de autoridade. Fazia gestos muito simples e quotidianos e os tornava eloquentes, capazes de dizer da sua compaixão, da sua proximidade ao humano em todas as suas condições. Gestos capazes de corresponder às expectativas e às buscas das pessoas que vinham a Ele, e ao mesmo tempo, capazes de expressar seu desejo profundo com relação às pessoas. Gestos humaníssimos, por meio dos quais revelou o amor do Pai e a chegada de seu Reino. O que é a liturgia cristã se não a palavra e o gesto de Cristo na palavra e no gesto do seu corpo que é a Igreja? O Cardeal Martini, numa das raras intervenções sobre liturgia, afirmou: “Se nos Evangelhos se fala pouco ou nada da liturgia, é porque eles são, de fato, uma liturgia viva de Jesus no meio do seu povo... É esta a liturgia dos Evangelhos: estar junto com Jesus na sua vida e na sua morte... A liturgia é estar, hoje, próximo à pessoa do Senhor, ouvi-lo, falar-lhe, rezá-lo, deixa-lo rezar por nós. Tudo isto que os Evangelhos referem de Jesus no meio do seu povo é antecipação da liturgia e, por sua vez, a liturgia é uma continuação dos Evangelhos” [4].
Falar de liturgia humana significa falar da liturgia como continuação dos Evangelhos. A liturgia da Igreja, sempre mais próxima à humaníssima liturgia dos Evangelhos, em sempre maior transparência cristológica. Uma liturgia capaz de ser sacramento da humanidade de Cristo, capaz de acolher e transfigurar toda a humanidade de quem a celebra. Assim, a humanidade da liturgia será, no hoje da Igreja, a expressão mais eloquente do mistério da encarnação do Verbo. A liturgia é humana quando é fiel à humanidade de Jesus Cristo: só assim poderá ser fiel ao homem e à mulher de hoje. E quanto mais ela será evangelicamente humana, tanto mais será autenticamente cristã.
Proponho, então, esta reflexão à atenção e ao discernimento espiritual e pastoral de vocês. Uma liturgia fiel ao Evangelho, ao mesmo tempo fiel aos homens e mulheres de hoje, conscientes que, como disse o Cardeal Giavanni Battista Montini, intervindo no Concílio, dia 22 de outubro de 1962, no debate sobre a liturgia: “Liturgia nempe pro hominibus est instituita, non homines pro liturgia” (“A liturgia, a saber, foi instituída para os homens, e não os homens para a liturgia”) [5].
Notas:
[1] P. Ricoeur, “Epilogo”, in J.MPaupert, Taizé e la Chiesa di domani, Torino: 1968, pp. 257-264, p. 262.
[2] F. Cassingena-Trévedy, La liturgie: se laisser faire par le Christ, in Chronique d’Art Sacré 84 (hiver 2005) pp. 12-14.
[3] Ch. Theobald, Il Cristianesimo come stile; Um modo de fare teologia nela postmodenità, Vol II, Ed. Dehoniane, Bologna: 2009.
[4] C.M. Martini, La liturgia mistica del prete. Omelia nella Messa Crismale, Rivista della Diocesi di Milano 89/4 (1988), pp. 641-648, p. 642.
[5] Acta Synodalia, I/1, Cidade do Vaticano, 1970, p. 315.
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Por uma liturgia mais humana e hospitaleira - Instituto Humanitas Unisinos - IHU