15 Setembro 2017
Embora em nível simbólico, a decisão do Papa Francisco anunciada sábado de conceder um maior controle às conferências episcopais para as traduções dos textos litúrgicos às línguas vernáculas poderá ser um divisor de águas, a maioria dos especialistas não parece acreditar que ela significará grandes mudanças no curto prazo para as orações que os católicos americanos rezam nas missas de domingo.
A reportagem é de John L. Allen Jr., publicada por Crux, 14-09-2017. A tradução é de Isaque Gomes Correa.
Todo aquele que assiste televisão, ou que lê romances frequentemente, sabe que o gênero histórico contrafactual é sempre diversão garantida. “E se os nazistas governassem a América?” “E se a queda do Império Romano nunca tivesse ocorrido?” “E se o sul tivesse vencido a Guerra Civil nos EUA?” e assim por diante.
Os católicos americanos que lembram das “Guerras Litúrgicas” das décadas de 1990 e 2000, eles podem, hoje, se sentir como se estivessem num daqueles contos contrafactuais, na esteira de uma série de alterações no Direito Canônico emitidas pelo Papa Francisco no último sábado.
Com efeito, tais mudanças conferem consideravelmente às conferências episcopais um maior controle sobre o processo tradutório dos textos usados nas missas, tirando-o das mãos da Congregação para o Culto Divino e a Doutrina dos Sacramentos – revertendo, na prática, um resultado básico saído das citadas batalhas em torno da liturgia travadas há mais de uma década. Essa revisão foi anunciada em um motu proprio, ou seja, em um documento jurídico emitido sob a autoridade pessoal do papa, intitulado “Magnum Principium”, ou “Grande Princípio”.
Simbolicamente, este motu proprio tem sido interpretado como uma expressão imponente da determinação do papa em promover a sinodalidade e a colegialidade no catolicismo, em consonância com a sua leitura do legado do Concílio Vaticano II.
Agora, a pergunta aos muitos que ainda carregam as cicatrizes daquelas batalhas em torno da liturgia: Até onde vai este exercício contrafactual?
Ou, dito de maneira mais direta: agora que Francisco deixou claro que a tarefa está sob a jurisdição das conferências dos bispos, é possível que a nova e polêmica tradução das orações da missa implementadas nos EUA no final de 2011, e adotada em grande parte dos países de língua inglesa desde então, venha a ser revisada ou abandonada em seu todo? (Uma característica marcante desta tradução foi a seguinte alteração: a congregação não diz mais “Ele também está convosco” quando o padre diz “O Senhor esteja convosco”, mas sim “E com o seu espírito”.)
Grande parte dos especialistas litúrgicos com os quais falei esta semana parece concordar neste ponto: “Possível? Com certeza. Provável? Nem tanto”.
“O que penso dos bispos americanos, hoje, neste momento é: eles não mostram uma grande vontade para reiniciar este debate”, disse Timothy O’Malley, diretor acadêmico do Centro de Liturgia da Universidade de Notre Dame.
E aqui reproduzo outra frase dita por um observador experiente das questões litúrgicas, que preferiu falar em off porque não quer entrar de volta nesta batalha: “Não há praticamente chance alguma de que algo aconteça nos Estados Unidos”.
Além disso, como notou o Pe. Juan Rego, professor de liturgia espanhola na Pontifícia Universidade da Santa Cruz, em Roma: “Este documento olha sobretudo para o futuro, não para o passado”. Ou seja, as alterações que Francisco decretou no sábado têm implicações mais imediatas para as traduções da missa em outras línguas que ainda estão em processo, em oposição àquelas, como a inglesa, que já as completaram e foram aprovadas.
Digo ainda que a minha pergunta sobre as implicações destas mudanças anunciadas pelo papa foi recebida pelos americanos com grande alívio, seguido da seguinte admoestação: “Sabe de uma coisa, nem tudo o que o papa ou o Vaticano fazem diz respeito sempre aos Estados Unidos”.
De qualquer forma, o consenso básico parece ser que, no mínimo, nos EUA, e em termos das experiências litúrgicas dos frequentadores de missa, não será muita coisa que sofrerá alteração no curto prazo.
Além de um desinteresse em reativar velhas batalhas, estão dois outros motivos muitas vezes citados que explicam este sentimento:
a) Em termos pastorais, queremos realmente alterar a linguagem empregada na missa num período de tão pouco tempo?
b) Em termos financeiros, missais são caros, os novos já foram impressos e distribuídos e os orçamentos seriam severamente impactados se tivéssemos de refazer todo o trabalho de tradução.
Portanto, se o motu proprio talvez não tenha muitas consequências imediatas para os americanos, onde ele poderia ser sentido?
Alguns especialistas acreditam que, com o passar do tempo, será pouco provável que perdure a tradição pós-Vaticano II adotada nos países de língua inglesa, de usar uma tradução comum em todos eles.
“Com certeza não iria me surpreender”, disse Rego, se o resultado final for o de que os países anglófonos adotem traduções ligeiramente diferentes, observando que este já é o caso em muitas outras línguas. (Na América Latina, por exemplo, existem várias traduções da missa em espanhol aprovadas.)
Já os bispos franceses e alemães estão trabalhando em suas próprias revisões do sacramentário (coleção das orações para a missa). Nestes casos, a nova liberdade que as conferências desfrutam poderá ser importante.
Um liturgista sugeriu este cenário: suponhamos que os bispos alemães decidam que, no sacramentário, os bispos prefiram voltar à versão mais antiga pós-Vaticano II das palavras de Cristo citadas nas orações eucarísticas, que o seu sangue foi derramado “por todos”, ao invés da fórmula “para muitos” decretada pelo Papa Emérito Bento XVI.
A Congregação para o Culto Divino e a Disciplina dos Sacramentos se vê diante de uma escolha difícil: manter a frase com base em um achado explícito de um papa anterior, ou não atrasar toda uma tradução em torno de uma questão contenciosa?
Em outras palavras: os americanos talvez precisem aceitar que, por enquanto, a ação real em termos de valor de uma decisão papal não irá se refletir imediatamente em nosso contexto.
Isso talvez seja frustrante para os integrantes de certas classes católicas americanas, mas para muitos bispos, o clero, liturgistas e outros de uma dada geração, que recordam vividamente como era quando os EUA estavam realmente no começo das guerras litúrgicas, esta nova conjuntura significa – quem sabe – um grande alívio.
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Por que o terremoto do Papa na liturgia não significa muito para os americanos - Instituto Humanitas Unisinos - IHU