01 Fevereiro 2018
Chacinas nas ruas e massacres em presídios motivados por brigas entre facções criminosas rivais já se tornaram rotina no Brasil. Pelo segundo ano consecutivo o país vive um mês de janeiro sangrento com as tradicionais imagens de corpos mutilados, manchas de sangue no chão e parentes desesperados em busca de informações. Ano passado ocorreu no Amazonas, Roraima, Rio Grande do Norte e Acre. Este ano Goiás e Ceará foram palco da violência. Como é de praxe, nestas horas as autoridades anunciam pacotes de medidas emergenciais tais como envio de tropas federais, construção de presídios e endurecimento das penas e da repressão ao tráfico de drogas.
Mas especialistas ouvidos pelo EL PAÍS apontam que algumas destas supostas soluções são, na verdade, parte do problema. Proibição das drogas, encarceramento em massa e o tratamento desumano dentro do cárcere são justamente alguns dos fatores que levaram ao crescimento exponencial e à nacionalização do crime organizado no país. Pior: traçam um cenário sombrio no qual só a reversão dessas medidas, algo que não parece estar no horizonte nem no médio prazo no país, poderiam mitigar o problema.
A reportagem é de Gil Alessi, publicada por El País, 31-01-2018.
É uma má notícia para quase metade dos brasileiros que têm a percepção de viver em áreas sob influência das facções criminosas. Segundo levantamento nacional do Fórum Brasileiro de Segurança Pública feita pelo Instituto Datafolha em agosto passado, 23% dos entrevistados consideram que é alta a chance de que o crime organizado ou facção atue em sua vizinhança. Outros 26% responderam que a chance é média. Fenômeno antes restrito principalmente a São Paulo e Rio de Janeiro, hoje as facções estão presentes dentro e fora dos presídios de todos os Estados – com conexões internacionais nos principais países produtores de cocaína da América do Sul.
“É preciso rever a política de guerra às drogas, que não deu certo em lugar nenhum do mundo”, diz Camila Dias, socióloga da Universidade Federal do ABC e pesquisadora do Núcleo de Estudos da Violência da USP. “É difícil, quando vemos estas cenas de violência, tentar lidar com isso dizendo que é preciso romper com a política de encarceramento em massa e combate às drogas. Mas se você olhar para as ultimas duas décadas, foram justamente estes dois fatores que provocaram esta crise”.
O fracasso da guerra às drogas no Brasil é constatado até mesmo por quem atua dentro do Estado: “A guerra às drogas é perdida, irracional”, afirmou o ex-secretário de Segurança Pública do Rio de Janeiro José Maria Beltrame em 2015. Enquanto muitos países começam a flexibilizar sua política de repressão e permitir o uso recreativo de algumas drogas leves, como é o caso da maconha nos Estados Unidos, o Brasil continua seguindo a mesma política de enfrentamento adotada nos anos de 1960. Aqui, a chamada guerra às drogas começou em 1961, antes mesmo do então presidente dos EUA Ronald Reagan ir à TV em 1986 com seu famoso discurso anti-drogas.
“Houve uma convenção no Rio para discutir drogas e uso de tóxicos. E o que se seguiu foi um progressivo endurecimento das leis e ai o combate deslanchou. À partir daí tudo piorou”, afirma Michel Misse, professor titular de Sociologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro e fundador do Núcleo de Estudos em Cidadania, Conflito e Violência Urbana.
Mesmo no período democrático a legislação manteve o viés de enfrentamento. A lei de drogas sancionada pelo então presidente Lula em 2006 endureceu a pena para o pequeno traficante sob o verniz de fazer a distinção entre usuários e traficantes. Na prática, o local de residência da pessoa detida pela polícia continua sendo o parâmetro usado pela polícia e pelo Judiciário para distinguir o primeiro do segundo. “Para determinar se a droga destinava-se a consumo pessoal, o juiz atenderá à natureza e à quantidade da substância apreendida, ao local e às condições em que se desenvolveu a ação, às circunstâncias sociais e pessoais, bem como à conduta e aos antecedentes do agente”, diz o artigo 27 da lei. “Como a lei não especifica a partir de qual quantidade de posse você é traficante ou usuário acaba ficando a critério dos agentes públicos”, afirma Misse.
O professor defende a legalização das drogas como única solução possível para romper o ciclo de violência. “Ela [a legalização] é estratégica, não só para o funcionamento da Justiça e para a pacificação das relação sociais. Mas na América Latina é possível dizer que o Estado de Direito depende disso. Isso é ponto pacífico, é consenso na academia”, afirma Misse. Ele, no entanto, é pessimista quanto à possibilidade da legalização avançar no Brasil, seja via poder Legislativo seja via Supremo Tribunal Federal. “Somos um país conservador. Veja o tempo que demorou para aprovarmos uma lei do divórcio! [a lei do divórcio brasileira é de 1977]”. O STF chegou a discutir a descriminalização da maconha, mas a votação foi suspensa em agosto de 2017 após o falecido ministro Teori Zavascki pedir mais tempo para analisar o tema. O placar estava 3 a 0 para a descriminalização.
O fortalecimento das facções criminosas no Brasil andou de mãos dadas com o aumento vertiginoso do número de presos no país, no período de 1990 até os dias atuais. Se 15 anos atrás o problema era circunscrito principalmente ao Rio de Janeiro e São Paulo, hoje é correto afirmar que Primeiro Comando da Capital e Comando Vermelho - as duas maiores facções brasileiras - estão presentes em quase todos os Estados. Para o professor Misse o cárcere está ligado umbilicalmente às facções. “O processo do crime organizado aqui se dá sempre a partir do sistema penitenciário. Enquanto em outros países as organizações ligadas a mercados ilegais se organizam fora do sistema, nas ruas, aqui são os presídios que potencializam estas redes de contatos e permitem a atuação nestes mercados ilegais”, afirma.
O Brasil tem a terceira maior população carcerária do mundo, com cerca de 726.712 pessoas trancadas, atrás apenas dos Estados Unidos e da China. Nos últimos dez anos, este número mais do que dobrou. E, no entanto, dificilmente alguém dirá que se sente mais seguro. Além disso os indicadores criminais também não apresentaram melhoras no país. Pelo contrário, apesar de termos uma enorme quantidade de pessoas presas, as taxas de homicídio ainda crescem. “Nós prendemos muito e prendemos mau. Nós não prendemos os principais fornecedores, os atacadistas, prendemos os varejistas e olhe lá. Em geral nós prendemos a ponta do varejo. Você não tem eficácia nenhuma com relação a este combate”, diz Misse. Para o sociólogo, tentar controlar completamente a entrada destas substâncias no país seria como “enxugar gelo”: “Não há trabalho de inteligência sistemático que seja capaz de identificar a chegada de drogas e armas por todas as fronteiras brasileiras, sejam secas, aéreas ou marítimas”.
A socióloga Camila Dias, que pesquisou a fundo as dinâmicas do PCC, afirma que “o problema das facções foi sendo forjado pelas políticas públicas de todos os estados do Brasil”. De acordo com ela, foi feita uma aposta no encarceramento como forma de resolver o problema da segurança. “A partir dos anos 2000 isso passou a ser uma prioridade dos Estados”, diz. A cada novo presídio, abria-se o campo para a influência do crime organizado. “Ao construir novas unidades você amplia as redes pelas quais os grupos se articulam”, diz. Para ela
Outro peculiaridade do nosso sistema carcerário é a grande quantidade de presos provisórios, ou seja, que ainda não foram condenados. Eles representam 49% da população total atrás das grades. De acordo com o Conselho Nacional de Justiça, 29% destes presos provisórios são acusados de tráfico de drogas. O Conselho realiza mutirões anuais para avaliar a situação destes detidos: em 2017 uma ação batizada de “Choque de Justiça” absolveu mais de 4.500 presos provisórios e revogou a prisão de outros 21.700, que poderão aguardar o julgamento em casa.
“Presídios são locais que deveriam ser reservados a criminosos muito perigosos, que felizmente são uma minoria no país”, defende Misse. O que ocorre aqui, no entanto, é que “o sistema penitenciário está sendo utilizado para prender qualquer pessoa que participe de mercados ilegais: aí não acaba nunca. Você constrói presídio e ele enche.
Constrói e ele enche...”. Segundo o sociólogo “há um volume excessivo de pessoas cumprindo penas por tráfico ou atividades ligadas aos mercados ilegais, como formação de quadrilha e roubos, e isso é um fator importantíssimo para explicar essa tragédia que vive o Brasil”.
O padre Valdir João Silveira, coordenador nacional da Pastoral Carcerária, concorda com Misse. “Quanto mais presídios você constrói, mais aumenta a violência. Há uma propaganda enganosa de que existe um déficit de vagas nas cadeias, e que esse é o problema. Na verdade são os presídios, quase todos comandados por facções criminosas que também atuam nas periferias, que alimentam o ciclo de violência”, diz.
Ou seja, basta que se construa um presídio para que em alguns meses ele esteja superlotado. Um exemplo claro disso ocorre no Estado de São Paulo. Nos últimos quatro anos foram construídas 42 unidades, praticamente todas já estão operando muito acima da capacidade. Dos cinco presídios e centros de detenção provisória (CDPs, para presos ainda não condenados) inaugurados em 2017 no Estado, quatro já estão superlotadas. A mais nova é a penitenciária de Franca, inaugurada em primeiro de outubro do ano passado. Com capacidade para 847 presos, já conta com 1.801 internos, mais do que o dobro da lotação prevista. E o ritmo das obras não para: outras 15 unidades estão atualmente em construção, ainda sem data para começar a operar.
Mas para além das grades, o aumento de presos teve um impacto devastador nas comunidades mais pobres do país. “A prisão empobrece as famílias atingidas por ela, que precisam prover para o parente preso. Além disso, para manter o vínculo elas precisam viajar grandes distâncias [até os presídios do interior], o que não é barato. Para cada preso existem várias outras pessoas que são afetadas”, afirma o cientista social Rafael Godoi, autor do livro Fluxos em Cadeia: As prisões em São Paulo na virada dos tempos (Editora Boitempo).
O Primeiro Comando da Capital foi fundado em 1993 no Anexo da Casa de Custódia de Taubaté (conhecida como Piranhão). O apelido da unidade, considerada então uma das mais seguras do Estado, tem relação com os maus tratos sofridos pelos detentos nas mãos de guardas e outros presos. Em seu primeiro estatuto a organização explicava a importância da união entre os presos: “Temos que permanecer unidos e organizados para evitarmos que ocorra novamente um massacre semelhante ou pior ao ocorrido na Casa de Detenção em 2 de outubro de 1992, onde 111 presos foram covardemente assassinados, massacre este que jamais será esquecido na consciência da sociedade brasileira. Porque nós do Comando [PCC] vamos mudar a prática carcerária, desumana, cheia de injustiças, opressão, torturas, massacres nas prisões”. O papel do Massacre do Carandiru na criação da maior facção criminosa do país é hoje consenso entre estudiosos do tema.
“O PCC surge num contexto de muita violência dentro do cárcere, e se expande nesse contexto de encarceramento em massa”, afirma a pesquisadora Camila Dias.
“Quando se aumenta a superlotação das unidades aumentam as pressões dentro do sistema, pressão por segurança, proteção e formas de sobreviver lá dentro de forma menos vulnerável”, diz.
O Comando Vermelho, criado no final dos anos de 1970 no presídio da Ilha Grande (conhecida como Ilha do Diabo), também foi uma resposta dos detentos às condições de violência e precariedade dentro do cárcere.
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Prisões em massa, o motor das facções que afetam a vida de metade dos brasileiros - Instituto Humanitas Unisinos - IHU