10 Novembro 2017
Indígenas Juruna veem o peixe rarear em seu território enquanto o maior projeto de ouro a céu aberto do Brasil se aproxima; documento dos Juruna exige o direito à consulta prévia, previsto em tratado internacional em vigor no país desde 2003.
A reportagem é de Ciro Barros e Iuri Barcelos, publicada por Agência Pública, 07-11-2017.
Na área de influência direta da Usina Hidrelétrica de Belo Monte, na Volta Grande do Xingu, os índios Juruna juntam os cacos. “Nós não sabemos se no futuro a gente vai ter condições de continuar vivendo aqui”, conta o professor Natanael Juruna, morador da aldeia Müratu, uma das três da Terra Indígena (TI) Paquiçamba. A jusante da barragem, eles veem sua principal fonte de renda e subsistência, o peixe, rarear. Um monitoramento independente feito pelos indígenas em parceria com a Universidade Federal do Pará (UFPA) e o Instituto Socioambiental (ISA) revela que a produção pesqueira caiu praticamente pela metade entre os meses de janeiro de 2015 e 2016, período no qual houve o barramento do rio. Os dados da própria Norte Energia apontam para a questão da mortandade de peixes: segundo o 11º Relatório de Monitoramento Socioambiental Independente, entre novembro de 2015 e junho de 2016, mais de 19 toneladas de peixes morreram – o dobro do que os Juruna pescaram em três anos.
Diante da escassez de peixe, os Juruna exigem o cumprimento de uma das várias condicionantes ainda não atendidas: a destinação de uma área acima do muro da barragem que lhes dê acesso ao reservatório da usina, onde há mais condições de pesca. “O peixe é de onde a gente tirava a nossa geração de renda. Principalmente o peixe ornamental, que hoje acabou”, explica o cacique da aldeia, Giliarde Juruna. “Estamos batalhando para ver se a gente consegue essa terra que dê acesso ao lago. Hoje nós somos uma das terras mais impactadas do Brasil inteiro. A maior barragem do Brasil tá aqui do nosso lado e a maior mineradora a céu aberto também vai ser aqui do nosso lado. Como a gente vai sobreviver nessa região?”, indaga.
O cacique se refere à chegada de Volta Grande, o maior projeto de extração de ouro a céu aberto do país, que pretende se instalar a cerca de 10 quilômetros de Belo Monte e, consequentemente, à beira do quintal dos Juruna. Desde abril, a licença de instalação, obtida em fevereiro, está suspensa, mas a mineradora canadense Belo Sun, está longe de desistir do projeto, como constatou a reportagem da Pública.
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No rio Xingu, a caminho da TI Paquiçamba, dos Juruna, o futuro é de incertezas com Belo Monte e a chegada de Belo Sun (Foto: Iuri Barcelos/Agência Pública)
Os números do projeto Volta Grande, conduzido pela mineradora canadense Belo Sun, impressionam. A empresa pretende extrair 60 toneladas de ouro em 12 anos a partir da lavra de milhões de toneladas de minério. Para tanto, já possui 18 títulos minerários com autorização de pesquisa junto ao DNPM e tenta licenciar a extração em outros quatro títulos que, somados, ocupam uma área de mais de 2.300 hectares – correspondentes à extração de ouro dos depósitos Ouro Verde e Grota Seca, parte deles já explorados por garimpeiros.
As duas pilhas de estéril depois do projeto completo em operação, somadas, terão altura de 255 m. Uma das empresas que o formularam – a Vogbr – esteve envolvida no desastre de Mariana (MG).
“Belo Sun é o que mais assusta em Belo Monte. A hidrelétrica abre o caminho para esse tipo de exploração mineral”, afirma a procuradora Thaís Santi, do Ministério Público Federal (MPF) em Altamira. O órgão move uma ação civil pública desde 2014 contra a mineradora, o Ibama e o governo do estado do Pará: à beira de um rio federal – o Xingu – e de duas TIs (áreas da União), ainda assim o licenciamento foi feito pela Secretaria de Meio Ambiente e Sustentabilidade (Semas), do governo do Pará. A procuradora preocupa-se com o fato de a mineradora estar licenciando os títulos de lavra do projeto Volta Grande, mas ainda reter outros títulos de pesquisa que podem ser licenciados no futuro. “Os Estudos de Impacto Ambiental indicam que serão retirados 3,16 milhões de toneladas de minério por ano, nos 11 primeiros anos, e, por sua vez, a empresa anuncia aos seus acionistas a possibilidade de extração de até 7 milhões de toneladas por ano”, afirma a procuradora na ação civil pública.
Segundo mapas da Fundação Nacional do Índio (Funai), a lavra está a 700 metros a mais de 10 quilômetros das TIs mais próximas – a Paquiçamba e a Arara da Volta Grande –, o que eximiria o Ibama de fazer o licenciamento, segundo uma portaria interministerial de 2011. “Pelo jeito que eles formularam, a TI Paquiçamba ficou a 10,7 quilômetros de distância do projeto. Só que há uma contradição entre o que está sendo licenciado e o que está sendo vendido aos investidores. Eles têm uma área enorme de extração e de pesquisa, eles organizam onde querem a área do projeto e calculam a partir dessa área a distância para as áreas indígenas”, critica a procuradora. “A empresa fala desde 2012 que o empreendimento não tem impacto sobre os indígenas. Para você concluir isso, você presume que eles tenham feito os estudos, o que eles deram a entender. Mas não.”
A Justiça Federal suspendeu a licença de instalação justamente pela ausência de estudos na questão indígena, apontada pelo MPF. A Belo Sun defende-se dizendo que “concordou em realizar o Estudo do Componente Indígena (ECI), não por uma obrigação legal ou regulamentar, mas por um exercício de cooperação com a Funai”. Na ação judicial, que discute a questão dos estudos de impacto do empreendimento sobre os índios, a mineradora afirma que o MPF falta com a verdade ao afirmar que não foram feitos estudos – segundo ela, entregues à Funai em abril do ano passado. De acordo com o MPF, porém, “a FUNAI, em outubro de 2016, encaminhou ofício à SEMAS comunicando que os estudos apresentados pela mineradora Belo Sun foram considerados inaptos”. Em abril deste ano, o desembargador Jirair Meguerian deu ganho de causa ao MPF e determinou a suspensão da licença emitida. “Considerando que a própria FUNAI, que possui atribuição para tanto, afirmou que o ECI [Estudo de Componente Indígena] apresentado por Belo Sun Mineração LTDA. é inapto, conclui-se que a licença de instalação não poderia ter sido emitida pela SEMAS/PA”, afirmou o magistrado em sua decisão.
Em nota à Pública, a Belo Sun afirmou que “pretende complementar o ECI de forma a coletar dados primários das TIs Paquiçamba e Arara da Volta Grande” e que a “decisão temporária do TRF1 foi dada sem que o Estado do Pará e a empresa apresentassem seus argumentos sobre o caso. A mineradora confia que após ouvida e, apresentando os fatos referentes ao caso de forma aprofundada, a decisão temporária poderá ser revista, o que deverá acontecer ainda este ano de 2017”.
Enquanto a batalha se arrasta na Justiça, os Juruna reagiram e lançaram, em agosto deste ano, o Protocolo de Consulta Juruna, baseado na Convenção 169, da Organização Internacional do Trabalho (OIT), que determina a consulta prévia, livre e informada às populações indígenas afetadas por quaisquer empreendimentos. O Brasil é signatário da convenção, que entrou em vigor no país em 2003.
O Protocolo de Consulta põe no papel a forma como os indígenas pretendem ser consultados para quaisquer empreendimentos futuros que venham a se instalar em áreas próximas às suas terras. “Não aceitaremos qualquer projeto que nos afaste do rio Xingu ou inviabilize nossa permanência no rio. Nós não fomos consultados para a construção da Hidrelétrica de Belo Monte, que desviou o rio Xingu de nossa terra para usar sua água na produção de energia. Com a construção da usina, perdemos nossa principal fonte de alimentação e renda, que era a pesca artesanal e de peixes ornamentais. Não sabemos como ficarão o rio, os bichos, a floresta e nem a gente daqui para frente”, diz o documento.
Apesar do esforço de resistência, muitos Juruna demonstram pessimismo com a questão. “A gente sofreu muito o impacto de Belo Monte e agora temos que lidar com Belo Sun. Parece, pra gente, que o que Belo Monte não destruiu, Belo Sun vai acabar de destruir”, sentencia o professor Natanael Juruna.
A Vila da Ressaca, no município de Senador José Porfírio, Pará, é uma das regiões afetadas pelo projeto de mineração Belo Sun (Foto: Iuri Barcelos/Agência Pública)
Se entre os índios a sensação predominante é de temor pela chegada de Belo Sun, nas comunidades da área de instalação do empreendimento – Ilha da Fazenda, Vila da Ressaca, Galo e Ouro Verde –, a Pública encontrou mais gente favorável do que contrária à mineradora. “Não tem outra solução aqui, tem muita gente aqui na região passando fome”, relata o padeiro Rômulo Amaral, morador da Vila da Ressaca. “Tem que vir o progresso aqui para essa região. Claro que tem que cumprir com as condicionantes, mas ninguém tá conseguindo viver mais do garimpo, não. Aqui no garimpo manual ninguém tira mais nada, não. É só com máquina. E quem vai ter dinheiro pra pôr máquina?” Ele conta que muitas famílias estão sobrevivendo de cestas básicas oferecidas pela Belo Sun. Em outra comunidade, o garimpo do Galo, o cenário é paupérrimo. A vila parece fantasma: muitas casas vazias e comércios fechados. Todos os entrevistados apoiam a vinda da mineradora. “Acabou todo o serviço que tinha aí. Só serve pra mineradora, pra nós não serve mais, não. Aqui a gente tá só pegando rejeito velho por aí. Vale a pena ficar o dia inteiro no sol pra pegar meio grama de ouro ruim?”, diz o comerciante Jair Alves.
Por outro lado, também há garimpeiros contrários ao projeto da mineradora, principalmente os que fazem parte da Cooperativa Mista dos Garimpeiros da Ressaca, Galo, Ouro Verde e Ilha da Fazenda (Coomgrif). “Aqui a gente tem muita área pra trabalhar ainda”, afirma Divino Alberto Gomes, garimpeiro membro da Coomgrif. “A gente teria condição de instalar aqui um moinho de rampa nas rochas. A gente não ia mexer onde a Belo Sun quer mexer, que é a laje. Só que depois que eles conseguiram a licença de lavra a gente nunca mais teve a nossa renovada. A gente trabalhava nessas áreas, essas comunidades aqui tinham uma vida própria, todo mundo tinha dinheiro no bolso”, protesta.
Também há uma questão fundiária na mesa. As terras da Belo Sun estão sobre a Gleba Ituna, arrecadada e matriculada em nome da União em 1982, e sobrepostas a dois projetos de assentamento, um do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) e outro do Instituto de Terras do Pará (Iterpa). Desde 2013, a Defensoria Pública do Pará move uma ação contra a Belo Sun questionando a compra dos terrenos que futuramente serão explorados pela mineradora. Segundo a Defensoria, os títulos de posse são inválidos, embora a mineradora alegue que a aquisição de posse foi legítima. Além disso, em 2015 a Secretaria de Patrimônio da União (SPU) declarou de interesse social as vilas da Ressaca e do Galo e as destinou à regularização fundiária pelo Incra.
Enquanto o imbróglio não se resolve na Justiça, os garimpeiros lutam para sobreviver e reclamam ter perdido uma antiga permissão de lavra que estava em vigor. “A gente conseguiu a lavra nessa área aqui, que vencia em 18 de dezembro de 2014. Quando foi em setembro de 2013, a gente correu atrás do DNPM [Departamento Nacional de Produção Mineral] de Belém para renovar. Eles deram, [mas] jogaram nós a 13 quilômetros daqui, num lugar que só tem caça, mato, e não tem ouro”, reclama o vice-presidente da Coomgrif, José Pereira da Cunha, o “Pirulito”. “Hoje a gente se sente ameaçado, tá arriscado a tomar um tiro porque é a gente que tá atrapalhando a empresa”, ele diz.
Procurada pela Pública, a Belo Sun afirmou que “possui a informação de que as terras que se sobrepõem ao Projeto Volta Grande são terras federais, o que não é impeditivo legal para as atividades de mineração”. Ainda segundo a mineradora, “uma pequena porção destas terras federais encontra-se afetada, constituindo-se no Projeto de Assentamento Ressaca do INCRA.
Aproximadamente 5% da área total do PA Ressaca encontra-se sobreposta ao empreendimento. Por esta razão a Belo Sun e o INCRA firmaram um documento, onde a Belo Sun realizou o levantamento das benfeitorias existentes nos lotes sobrepostos, apresentou laudos de avaliação, elaborou relatório de impactos socioambientais sobre o PA Ressaca e identificou novas áreas para reforma agrária para futura aquisição e realocação dos assentados dos lotes sobrepostos, tudo conforme ajustado com o INCRA em dezembro de 2016”. A empresa afirma também que “indenizou os ocupantes dos lotes e/ou fazendas pelos direitos de posse e benfeitorias existentes” e que “os contratos de compra e venda de posse e benfeitorias firmados pela Belo Sun e respectivos posseiros foram registrados em Cartório, conforme previsão em lei”.
“Após a emissão da Licença de Instalação (LI) do empreendimento, será iniciado o Programa de Realocação, Negociação e Inclusão Social em relação às duas vilas próximas ao empreendimento. Este programa foi submetido à avaliação do órgão ambiental, e a empresa vem dialogando com as comunidades locais desde a etapa de levantamento de áreas e de cadastramento de famílias”, completa a Belo Sun.
Esta reportagem faz parte do Especial Amazônia Resiste, uma ampla investigação jornalística da Agência Pública sobre a resistência indígena em vários pontos da maior floresta tropical do mundo. Acompanhe a série aqui.
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Amazônia Resiste: À espera de Belo Sun - Instituto Humanitas Unisinos - IHU