Por: Vitor Necchi | 19 Outubro 2017
No primeiro dia do IX Colóquio Internacional IHU – A Biopolítica como teorema da Bioética, realizado pelo Instituto Humanitas Unisinos – IHU nesta terça-feira (17/10), o professor Fermin Roland Schramm apresentou a conferência A biopolítica e a declaração universal de bioética e Direitos Humanos (Unesco). Ele iniciou sua fala tratando do título do colóquio, que estabelece vínculo entre biopolítica, bioética e a Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos (DUBDH, 2005). “Nesta relação, a biopolítica pode assumir o papel (ou a função) de ser um teorema para a bioética”, frisou.
A conceituação de teorema, conforme Schramm, relaciona-se a outra questão, acerca da pertinência e da legitimidade de se usar o termo “teorema” aplicando-o à biopolítica, como nas questões que pautam o evento: “seria possível afirmar que a biopolítica é o teorema explicativo da realidade atual de sempre maior captura da vida pelas biotecnologias?” e “a biopolítica seria o teorema da bioética?”.
Uma resposta afirmativa é que “a biopolítica constitui um teorema se utilizada pela bioética quando esta se ocupa da moralidade da construção e do uso das biotecnologias, assim como das políticas sanitárias envolvidas, que implicam em dispositivos de biopoder que possuem conteúdos econômicos, sociais e culturais, e que são relevantes no contexto das discussões sobre os direitos humanos e que transcendem a mera ordem jurídica”. Valendo-se do pensamento de Roberto Esposito, Schramm afirma que, se considerada no contexto dos direitos humanos, a biopolítica se refere aos direitos dos humanos entendidos, antes, como seres vivos.
Após apresentar algumas definições dicionarizadas de teorema, como “proposição especulativa” e “princípio”, Schramm disse que se pode “considerar a biopolítica como um teorema da bioética, mostrando, por exemplo, que conteúdos e dispositivos da biopolítica podem ser usados como princípios e ferramentas pela bioética, pelo menos quando considerados como forma de governança concretas da vida de pessoas e populações e/ou como contexto hermenêutico para a análise bioética no contexto da abordagem da DUBDH”.
No desenvolvimento de sua fala para uma plateia que lotou a Sala Ignacio Ellacuría e Companheiros, no IHU, Schramm apresentou dois paradigmas constituídos pela bioética e pela biopolítica, além de algumas possíveis relações com a Declaração da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura – Unesco.
O pensamento de Michel Foucault em relação ao “governo dos homens” (ou “governabilidade”) e ao exercício do “biopoder” está associado à emergência do paradigma biopolítico. Esse exercício se processa conforme os seres humanos passam a ser objetos de uma estratégia política geral, com o propósito de se garantir e reforçar a saúde do corpo coletivo por meio de gestão estatística e administrativa, da atenção sanitária sobre doenças endêmicas e epidêmicas e do controle de circunstâncias que interferem as habilidades e as atividades das pessoas (enfermidades, anomalias, velhice).
Citando Foucault para sintetizar este ponto, Schramm disse que a “característica geral da biopolítica” consiste em “se explicar sobre dois níveis, ou seja, tanto no plano individual quanto naquele da totalidade social” graças à “aplicação das disciplinas ao corpo-organismo do indivíduo e das políticas de regulação ao corpo-espécie da população”. Para Schramm, a biopolítica se relaciona com formas de dominação pelo biopoder e com a própria democracia.
No começo dos anos 1970, a bioética surgiu como um projeto interdisciplinar proposto pelo oncologista norte-americano Van Rensselaer Potter, “para estudar e avaliar a moralidade da competência biotecnocientífica adquirida pelo homem e aplicada às inter-relações entre humanos e com outros seres vivos e o ambiente natural”. Neste período, passa a vigir o “paradigma bioético”, entendido como modelo de “uma ética para a tecnociência”, conforme o belga Gilbert Hottois.
Potter defendia que a interdisciplinaridade evita o reducionismo da separação tradicional entre a cultura científica, tecnocientífica e biotecnocientífica – tida como objetiva e isenta de valores morais – e as ciências humanas e sociais – que incluem esses valores. “O campo interdisciplinar seria constituído pela bioética, da qual deveria surgir também a biopolítica”, explica Schramm. Ao se referir à biopolítica, baseado em Emílio Muñoz, destacou que sua origem, seus instrumentos e suas aplicações “estão intimamente ligados ao desenvolvimento da bioética, pois a biopolítica surge mesmo como um produto da sua expansão”. Na atualidade, a bioética política, ou biopolítica, existe como “a parte da bioética que transforma os problemas da interação entre as sociedades e os sistemas biológicos em decisões e ações políticas através de acordos, normas, regulamentações e leis”. A biopolítica, para Muñoz, “enfrenta os aspectos políticos e regulamentares da bioética, encarando-a no plano da sociedade em geral”.
Para Miguel Kottow, outro autor citado na conferência, a emergência de uma “bioética política” corre o risco de tornar a bioética “uma disciplina em risco”, por conta de um excessivo academicismo focado em problemas que poderiam ser considerados pontuais e irrelevantes, se confrontados com “grandes temas como iniquidade social, políticas públicas sanitárias, crise ecológica”.
Schramm afirmou que “a relação existente atualmente entre bioética e a biopolítica remete à própria história da relação entre ética e política”. Essa relação vem se processando de maneira mais complexa. Ética pode ser considerada como “a instância questionadora e julgadora da moralidade da política e da economia, tanto no sentido de colocar limites morais como no sentido de questionar os limites considerados inevitáveis pelo assim chamado realismo político ou econômico”. Por outro lado, política e economia apresentam questões à ética, que acaba tratando de “novos aspectos morais e de novos territórios da moralidade”. Para Schramm, “é deste diálogo crítico permanente que surgirá, por exemplo, o campo das éticas aplicadas e da bioética, que se preocupam com soluções concretas ou, como preferem alguns, pragmáticas aos conflitos”.
Há um conflito entre ética e política, na medida em que “a ética questiona a política em nome de alguma concepção do bem e da justiça”, e “a política questiona a ética, seja em nome de algum princípio de autoridade estabelecido a priori, seja em nome do realismo que estaria implícito no exercício do poder”. Frente aos desafios, a “ética aplicada tenta responder, optando por soluções que sejam moralmente aceitáveis dentro de uma determinada situação histórica e cultural”.
Schramm ressalta que Foucault defendia a tese de que o capitalismo teria socializado o corpo em razão da força produtiva, pois, para a sociedade capitalista, o bio-político importava antes de tudo. Dessa forma, o corpo é uma realidade bio-política, enquanto a medicina, uma estratégia biopolítica. Conforme Schramm, “Foucault situa a bio-política na emergência da medicina social ou, dito em termos atuais, da saúde pública”. O filósofo francês, em sua primeira fase de estudo, tratou “biopolítica” como uma forma de governo da vida (biopoder) referido aos corpos individuais. Em uma segunda fase, o termo foi “aplicado a populações, aproximando, assim, o campo da biopolítica do campo de saúde pública, tornando biopolítica e saúde pública praticamente sinônimos”.
Este poder sobre a vida, de acordo com Foucault, se desenvolveu em duas formas que estabeleceram dois polos de desenvolvimento: anátomo-política do corpo humano, que considera o corpo como máquina integrada a sistemas de controle eficazes e econômicos; e bio-política da população, relacionado ao corpo-espécie, que serve de suporte aos processos biológicos, entre eles nascimento e morte, nível de saúde, longevidade etc., sendo que há distintas condições que incidem nesses processos, o que configura uma bio-política da população.
Ainda citando Foucault, destaca que a biopolítica atuaria entre “as disciplinas do corpo e as regulações da população”, que constituiriam “os dois polos ao redor dos quais se desenvolveu a organização do poder sobre a vida” graças à “administração dos corpos e à gestão calculadora da vida”, o que teria implicado a “explosão de várias e numerosas técnicas para obter o assujeitamento dos corpos e o controle das populações” e que teria aberto “a era de um bio-poder”.
Giorgio Agamben repensa o conceito de biopolítica, ao associá-lo aos conceitos que desenvolveu de “vida nua”, “homo sacer”, “poder soberano” e “estado de exceção”. Para ele, o núcleo originário do poder soberano é constituído pela implicação da vida nua na esfera política. Para Agamben, “o totalitarismo se torna um terreno privilegiado de análise da biopolítica” e existiria um “continuum biopolítico de democracia e totalitarismo”. E no campo da biopolítica, haveria “também uma forma de resistência ao biopoder soberano, que o autor chama de “biopolítica menor”, entendida como “outra política” por enfrentar o poder onde ele se exerce, isto é, “entre público e privado, corpo biológico e corpo político”.
Toni Negri e Roberto Esposito também refletiram sobre as formas de uma possível resistência aos efeitos dos dispositivos da biopolítica e do biopoder. Negri separa biopolítica e biopoder e também pensa em uma nova forma “afirmativa e criativa do biopoder” representada pelo “Império”. Ele considera possível separar biopolítica e biopoder. Esposito “parte da constatação da incerteza que acompanharia “a categoria” de biopolítica e que a impediria de ter “qualquer conotação estável”.
Schraam ressalta que a Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos (DUBDH) da Unesco apresenta uma “formulação explícita da relação entre direitos humanos, bioética e com a biopolítica. O documento estabelece que "os direitos do homem são, talvez, o único lugar onde há um alto grau de consenso moral nas sociedades pluralistas e multiculturais do nosso tempo”. A declaração também destaca a necessidade do respeito à dignidade da pessoa humana e do “cumprimento e respeito universais pelos direitos humanos e liberdades fundamentais".
Para encerrar, Schramm retomou questões do início: é possível considerar a biopolítica um teorema da bioética? No seu entendimento, a resposta parece ser sim. “Pelo menos se considerarmos a biopolítica como um paradigma para a análise bioética, quando esta se ocupa da moralidade do uso das biotecnologias e das políticas sanitárias envolvidas, que implicam em estruturas de biopoder que implicam conteúdos econômicos, sociais e culturais”, explica.
Fermin Roland Schramm | Foto: Ricardo Machado/IHU
Fermin Roland Schramm é graduado em Letras pela University of Génève, mestre em Semiologia pela École des Hautes Études en Sciences Sociales e doutor em Saúde Pública pela Fundação Oswaldo Cruz. Realizou estágio pós-doutoral na Universidade do Chile. É pesquisador titular da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) e consultor em Bioética do Instituto Nacional de Câncer – Inca/RJ.
Assista ao vídeo da conferência
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A possibilidade de considerar a biopolítica um teorema da bioética - Instituto Humanitas Unisinos - IHU