23 Setembro 2015
Compreender aspectos acerca da biopolítica e dos diversos fenômenos que ela comporta e ocasiona. Esse foi o mote da conferência Biopolítica, formas de vida e psicopatologia na atualidade, proferida pelo Prof. Dr. Benilton Bezerra Júnior na noite de abertura do V Colóquio Latino-Americano de Biopolítica, o III Colóquio Internacional de Biopolítica e Educação e o XVII Simpósio Internacional IHU, Saberes e práticas na constituição dos sujeitos na contemporaneidade.
Abertura do evento com Alfredo Veiga-Neto (à esquerda), Inácio Neutzling e Maura Corcini Lopes Fotos: Cristina Guerini/IHU |
Aprofundamento do individualismo
Na década de 1990 uma nova ordem mundial assumiu o comando do mundo: o mercado, e todo o planeta está submetido a ele. Nenhum outro tipo de agenciamento tem o poder do mercado no sistema neoliberal, que exacerbou o individualismo a patamares jamais antes imaginados.
Uma das características da exacerbação do individualismo, do impulso à ideia do indivíduo foi a expansão do grau de liberdade de temos. Vivemos uma sociedade da autonomia generalizada. Nunca fomos tão autorizados a agir em conformidade com nossos interesses, não nos ajoelhamos diante de mais nada. Tudo passa a ser matéria de escolha individual. “Não vivemos mais a cultura do assombro, já que tudo pode ser matéria de nossa escolha. Isso comporta um grande grau de ideologia, não no sentido mais simples, mas tomada como fantasia que constitui a realidade que conhecemos, com a obliteração daquilo que é oculto porque um sintoma do conflito que não pode vir à tona sem que a realidade se transforme”.
De acordo com Benilton, hoje transgredir é quase impossível, pois tudo faz parte do cardápio das autorizações de nosso tempo.
Sujeito “desmapeado”
Diante desse cenário, é possível resistir, ultrapassar a biopolítica? Vivemos uma crise de nossa imaginação radical. É difícil de imaginar que o mundo possa ser outro do que aquele que vivemos hoje. Somos livres para escolher dentro da pauta que é oferecida pela sociedade do consumo, que não para de nos ofertar coisas que achamos que precisamos. Há um incentivo ao desejo incessante de objetos, e a autonomia representa um aprisionamento oculto.
Até os sistemas de repressão não precisam ser mais opressivos, porque nós mesmos nos encarregamos disso em nossa conduta pessoal. O autocontrole e a vigilância estão sempre para a ideia de risco. Temos de refletir e agir a respeito. O sujeito autônomo é, no fundo, um sujeito “desmapeado”, sem rumo. “Quando se pode desejar tudo, fica difícil de saber o que incita o nosso desejo singular”.
Autonomia autocontrolada
Benilton Bezerra Júnior recuperou algumas ideias que desenvolveu na entrevista exclusiva concedida à IHU On-Line, mencionando Alain Ehrenberg. Assim, acentuou o aprofundamento da experiência de inapetência ou apatia, que se expressa não tanto como nas formas tradicionais de depressão — cuja engrenagem gira em torno da perda e da culpa, mas no que a psiquiatria convencionou chamar de distimia, esse estado de desânimo, baixa autoestima, incapacidade de elaborar projetos e neles se engajar.
“O distímico não sofre por não poder realizar seus desejos, mas por dificuldade em identificá-los e a partir deles se orientar sobre como agir no mundo. Acaba sendo presa fácil de todas as estratégias de gestão da vida e da existência social que lhe são oferecidas para que ele possa fazer “suas escolhas”. É nesse sentido que podemos compreender a distimia como sintoma social, como aquela experiência que revela, de forma disfarçada, a verdade sobre nossa realidade, que temos dificuldade de enxergar”.
Benilton retomou, ainda, as provocações de Zizek sobre a regulação e o gozo que vivenciamos em nossa sociedade: “Estamos num tempo de café sem cafeína, doce sem açúcar, sexo sem corpo”. Há uma ideia generalizada do politicamente correto. Somos livres, mas nos controlamos o tempo todo. A autonomia de nosso tempo implica a exigência de que cada um seja o gestor de si mesmo, e proliferam palavras como motivação, empreendedorismo e a explosão dos discursos e práticas que ajudam o sujeito a ter uma liberdade que sabe que não possui. Segundo Marilena Chaui, vivemos na cultura do “discurso competente”.
Alfredo Veiga-Neto (à esquerda) e Benilton B Júnior
Nossa existência se dá num mundo em que as ancoragens identitárias nas quais nos apoiamos para construir uma autoimagem e modos de apresentação passaram de valores (direita, esquerda, progressista, católico, protestante) para referenciais que envolvem e se remetem à corporeidade. Trata-se de bioacese, da bioidentidade, como propõe Francisco Ortega - a forma como as pessoas constituem suas relacionalidades sobre a corporeidade.
Retomando o legado de Agnes Heller e Hannah Arend, Benilton falou sobre a perspectiva da biopolítica acerca da depauperação da política. Isso ocorre quando grupos específicos atendem suas demandas em detrimento de uma política ampliada. A ideia forte da política se perdeu, destaca. Dessa forma, “é preciso resistir não dentro da biopolítica, mas resistir a ela”.
Aplainar desprazeres
A biologia se tornou uma espécie de ciência total do homem. O discurso biológico e científico ganhou notoriedade inclusive moral, do que significa sofrer e quais são os remédios para minorar o desconforto. A medicalização da existência não é apenas o avanço da medicina sobre campos da vida social para benefício do mercado e serviços médicos. As pessoas comuns são agentes de expansão das propostas médicas de expansão e melhoramento da vida. A medicalização da sociedade é um fato inegável.
Intervenções na vida dão um norte que iremos nos libertar da natureza de primata, para ascender a um patamar superior para o governo da vida. Essa é a exacerbação do governo da vida, a vida em outra modalidade, mas sempre entendida como aquilo que individualmente podemos usufruir da própria natureza. A psiquiatria é vista como um braço da sociedade cujo mandato é regular comportamentos, aplainar desprazeres, trazer bem estar.
Contudo, Benilton frisou que o universo da biopolítica é complexo, heterogêneo e contraditório. “Não somos vítimas, mas agentes desse processo. A grande questão é como não sermos apenas agentes de reprodução desse modelo”.
Solidariedade x autonomia
Benilton Bezerra Junior falou longamente acerca do campo das deficiências, surgido na esteira dos movimentos de liberação da década de 1960. O modelo médico, explicou, é aquele da lesão, que dota o indivíduo de uma lesão que deve ser superada.
Com o passar do tempo, a forma como as pessoas com deficiência são olhadas é que mudou, mas não as suas questões físicas. Essa mudança ocorreu a partir da afirmação da identidade. Isso possibilitou não um enclausuramento em determinada identidade, mas permitiu a cidadania, a inclusão do espaço e luta por direitos. Tal identidade pode ser de abertura, mas também clausura. Um dos exemplos trazidos à plateia é a questão das mulheres trans que não são reconhecidas pelas mulheres do movimento feminista. “O ser humano não falha”, ironizou.
Retomando o nexo com o debate acerca da autonomia, Benilton reiterou que dependemos uns dos outros enquanto seres humanos. “Não somos tão autônomos quanto pensamos. Se não formos auxiliados a entrar nesse mundo de significados, não conseguimos fazê-lo. Temos uma relação de mutualidade. O valor fundamental deveria ser a solidariedade, e não a autonomia.”
Nos momentos finais de sua conferência Benilton recuperou a crítica realizada dos anos 1960 à psiquiatria tradicional, referindo-se especificamente ao movimento antimanicomial, fio condutor da reforma psiquiátrica no Brasil e no mundo. Novamente o pesquisador recorreu a uma ressalva: “Foram os psicofármacos que fizeram com que a pessoas saíssem dos asilos e pudessem conviver com a sociedade. Dessa forma, a psiquiatria passou dos muros dos asilos para os muros da cidade. O campo da saúde mental se expandiu e continua a fazê-lo, correlato à expansão da medicina como um todo”.
E acrescentou: “É preciso atentar à complexidade da questão da medicalização. Psicofármacos são entendidos por vezes como uma espécie de Belzebu, vetores de dessubjetivação e achatamento, somente. Mas para além da banalização dos diagnósticos, é preciso aceitar os avanços trazidos por esses medicamentos.”
Quem é Benilton Bezerra Junior
Benilton Bezerra Junior é graduado em Direito e em Medicina, mestre em Medicina Social e doutor em Saúde Coletiva pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ. Atualmente, é membro do Instituto Franco Basaglia, atua como docente adjunto do Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva, e é pesquisador do Programa de Estudos e Pesquisas sobre Ação e Sujeito - PEPAS, da UERJ.
Professor participou do X Simpósio Internacional IHU cujas conferências foram publicadas no livro O Futuro da Autonomia: Uma Sociedade de Indivíduos? (São Leopoldo – Rio de Janeiro: Editora Unisinos – Editora PUC-Rio, 2009) quando proferiu a conferência Retraimento da autonomia e patologia da ação: a distimia como sintoma social.
É autor, entre outras obras, de A criação de diagnósticos na psiquiatria contemporânea (Rio de Janeiro: Garamond Universitária, 2014) e Freud e as neurociências: o Projeto para uma psicologia científica (Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2013).
Por Márcia Junges
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Biopolítica, formas de vida e psicopatologia na atualidade. Conferência de Benilton Bezerra da Silva - Instituto Humanitas Unisinos - IHU