13 Agosto 2017
“Infelizmente, estando ‘no meio das pessoas’, ouvindo-as e vendo como se comportam, é preciso dizer que estamos nos tornando mais maldosos, e a própria política, que deveria, acima de tudo, fazer crescer uma ‘sociedade boa’, não só é hesitante, mas também parece tentada por percursos que beiram a barbárie.”
A opinião é do monge italiano Enzo Bianchi, fundador e ex-prior do Mosteiro de Bose, em artigo publicado no jornal La Repubblica, 11-08-2017. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
A convite do presidente da Conferência Episcopal Italiana, cardeal Bassetti, a enfrentar o fenômeno dos migrantes “no respeito à lei” e sem fornecer pretextos para os contrabandistas é um apelo a assumir a responsabilidade ético e de amplo alcance na tempestade que a Itália e a Europa estão passando.
Um apelo mais do que nunca oportuno, porque já está se perfilando uma “emergência humanitária” que não é dada pelas migrações como tais, mas pelas modalidades culturais e éticas, antes mesmo que operacionais, com que elas são enfrentadas.
Na realidade, não é uma “emergência” o fenômeno dos migrantes – requerentes de asilo ou econômicos – que, nessa forma, já remonta ao fim do século passado, e cujos números tanto absolutos quanto percentuais seriam facilmente administráveis por políticas dignas desse nome. E o adjetivo “humanitário” não diz respeito só às condições sub-humanas em que milhões de pessoas vivem nos campos de refugiados do Oriente Médio ou nos países esgotados por conflitos forjados pelos mercadores de armas ou por fomes recorrentes, naturais ou induzidas.
A emergência diz respeito à nossa humanidade: é o nosso “permanecer humanos” que está em emergência diante da barbarização dos costumes, dos discursos, dos pensamentos, das ações que aviltam e zombam daqueles que, outrora, eram considerados os valores e os princípios da casa comum europeia e da “milenar civilização cristã”, tão conatural à Itália.
É um empobrecimento do nosso ser humanos que, pouco a pouco, se acentuou desde que passamos a nos preocupar mais com o controle e a defesa das fronteiras externas da Europa, e menos com os sentimentos que batem no coração do nosso continente e dos princípios que determinam as suas leis e comportamentos.
É uma barbarização que se agravou quando assinamos um acordo para delegar o trabalho sujo de parar e repelir milhares de refugiados do Oriente Médio a um país que, manifestamente, viola fundamentos éticos, jurídicos e culturais indispensáveis para a nossa “casa comum”.
Ora, nós, ex-“povo de navegadores e transmigradores”, estamos nos adequando rapidamente a um pensamento único que está em conflito até mesmo com a milenar lei marítima inscrita na consciência humana, e chega a configurar uma espécie de “crime humanitário” ou “de altruísmo” com base no qual torna-se natural minar sistemática e indistintamente a credibilidade das ONGs e perseguir o seu trabalho, confiar a um autoridade estatal líbia inexistente a gestão de hipotéticos centros de recolhimento dos migrantes que todas as organizações humanitárias internacionais definem como locais de tortura, assédios, violências e abusos de todos os tipos, entregar novamente a uma das guardas costeiras líbias aquelas pessoas que tinham sido embarcadas por traficantes de seres humanos com a suspeita conivência daqueles que, agora, os levam de volta à caixa-prisão de partida.
Agora, essa criticidade emergencial de uma humanidade mortificada tem como efeito desastroso o fato de tornar ainda mais árdua a gestão do fenômeno migratório através dos parâmetros da acolhida, da integração e da solidariedade que deveriam constituir o núcleo duro da civilização europeia e que, certamente, não são de fácil implementação.
De fato, como, nesse clima de caça aos “bondosos”, planejar políticas que permitam não só a gestão das chegadas das pessoas em fuga da guerra ou da fome, mas especialmente a transformação estrutural dessa conjuntura em oportunidades de crescimento e de melhoria das condições vida para todo o sistema-país, começando pelas faixas da população residente mais pobres?
E, consequentemente, como evitar, por sua vez, que os migrantes abandonados “sem permissão regular” alimentem o mercado do trabalho ilegal, dos abusos contra menores e da prostituição?
A experiência de tantas realidades que eu conheço e da minha própria comunidade, que, há dois anos, dá acolhida a alguns requerentes de asilo, mostra como é difícil hoje, superada a fase de primeira acolhida e de aprendizagem da língua e dos direitos e deveres que nos unem, projetar e realizar uma fecunda e sustentável convivência civil, um profícuo intercâmbio de recursos humanos, morais e culturais de que cada ser humano é portador.
Não podem ser suficientes, de fato, a já dificílima inserção dos imigrantes acolhidos no mundo do trabalho e uma digna sistematização habitacional deles: seria preciso repensar organicamente o tecido social de cidades e campanhas, a revitalização de áreas deprimidas do nosso país, a proteção do ambiente e do território, a salvaguarda dos direitos de cidadania.
Isso poderia fazer com que a acolhida seja realizada não só com generosidade, mas também com inteligência, e que a integração ocorra sem gerar desequilíbrios.
Raciocinar por slogans, fomentar em vez de entender e governar os medos dos componentes mais fracos e expostos da sociedade, criminalizar indiscriminadamente todos os operadores humanitários, erigir como inimigo todo estrangeiro ou qualquer um que pense de forma diferente não é defesa dos valores da nossa civilização; ao contrário, é o caminho mais seguro para mergulhar no abismo da barbárie, para infligir danos irreversíveis à nossa humanidade, para condenar o nosso país e a Europa a um colapso ético do qual será muito difícil se reerguer.
Também em certos espaços cristãos, o medo dominante enfraquece as vozes – entre as quais continua se destacando, em vigor, a do Papa Francisco – que enfrentam de peito aberto o forte vento contrário, contrastando a “dimensão do desumano que entrou no nosso horizonte”, e se levantam em defesa da humanidade.
Infelizmente, estando “no meio das pessoas”, ouvindo-as e vendo como se comportam, é preciso dizer que estamos nos tornando mais maldosos, e a própria política, que deveria, acima de tudo, fazer crescer uma “sociedade boa”, não só é hesitante, mas também parece tentada por percursos que beiram a barbárie.
No entanto, está em jogo não só a sobrevivência e a dignidade de milhões de pessoas, mas também o bem mais precioso que cada um de nós e a nossa convivência possui: ser responsável e, por isso, guardião do próprio irmão, da própria irmã em humanidade.
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Os migrantes e o dever de humanidade. Artigo de Enzo Bianchi - Instituto Humanitas Unisinos - IHU