29 Junho 2017
Bárbara Cassin (Paris, 1947), uma das principais pensadoras francesas contemporâneas, move-se em uma cena heterodoxa que mergulha nas raízes da filosofia antiga para pensar conflitos do mundo contemporâneo. Fez isto, por exemplo, em Googléame (2008), um texto que analisa as relações entre as corporações, os estados e as democracias à luz das configurações delineadas pelo famoso motor de busca fundado em 1998 por Larry Page e Sergey Brin.
Discípula do filósofo alemão Martin Heidegger e na atualidade diretora do Centro León Robin, que depende da Universidade Sorbonne, esta doutora em Filosofia e Letras escreveu também textos como O efeito sofístico e Nossos gregos e seus modernos, nos quais trabalha a influência da sofística na história do pensamento, da psicanálise, da política e da literatura.
Cassin chegou nesses dias a Buenos Aires, convidada pelo Instituto Francês na Argentina, para participar da apresentação do livro Un pasado criminal – uma coleção de ensaios sobre a memória coletiva – e para falar em A Noite da Filosofia, com uma palestra centrada na tradução, outro de seus focos temáticos. Na conversa com Télam, a filósofa francesa se referiu a seu texto Dizer a verdade, produzir a reconciliação, falhar na reparação, incluído na coletânea do cientista político Lucas Martin, que coloca em diálogo o processo que a sociedade sul-africana iniciou em 1995, para saldar contas com o regime do apartheid, e os julgamentos das Juntas Militares, realizados na Argentina, para julgar os responsáveis da última ditadura militar.
A entrevista é publicada por Télam, 26-06-2017. A tradução é do Cepat.
O livro Un pasado criminal começa com um ensaio seu no qual revisa o processo que o estado sul-africano conduziu para superar os traumas que o apartheid gerou. Como avalia este processo que privilegiou o esclarecimento dos crimes de Estado acima da punição a seus responsáveis?
A Comissão para a Verdade e Reconciliação foi uma invenção extraordinária que o estado sul-africano conduziu em um momento particular, onde hão havia vencedores, nem vencidos. Esta instância foi eleita para evitar um tribunal como o de Nuremberg, porque caso tivesse sido dado um processo similar ao dessa cidade alemã, certamente teria ocorrido um banho de sangue. As forças da ordem eram bôeres, ou seja, pertenciam a um governo que nunca tinha sido eleito por eleições livres. Se estas forças intuíssem que seriam condenadas, outro tipo de processo teria sido impossível.
O propósito da Comissão foi articular a verdade para a reconciliação e reunir os pedidos de anistia. Para que um ato seja anistiável são necessárias três condições: que tenha sido cometido em um período de tempo definido – o tempo do apartheid -, que esteja ligado a um fato político e que seja inteiramente revelado. Esta última condição foi genial porque obrigou aos perpetradores a dizer a verdade para ser anistiados. Se houvesse ocorrido uma justiça punitiva, ao contrário, estes homens teriam escondido para sempre o que fizeram. Por outro lado, esta instância esteve encadeada com a ação da Comissão de Reparação, que decidia em cada caso como retribuir a perda de um pai, um filho, etc. Nenhuma reparação é digna desse nome, mas houve uma tentativa interessante de fazer as empresas e as instituições pagarem o dano provocado.
Que relação se pode estabelecer entre o modelo aplicado na África do Sul e os critérios que guiaram o Julgamento das Juntas da ditadura militar argentina?
Argentina e África do Sul enfrentaram de maneira diferente a relação com seu passado. Em definitivo, foram contextos diferentes, que levaram a optar por modelos distintos, um com mais ênfase na justiça e o outro na verdade. No caso sul-africano, o mote foi toda a verdade em troca da liberdade. Pensou-se em uma justiça transicional, antes que em uma justiça punitiva. Na Argentina, ao contrário, o julgamento aos militares que cometeram crimes durante a ditadura foi realizado no marco de um processo judicial normal. Portanto, os perpetradores desses crimes fizeram tudo o que era possível para ocultar esses crimes. Como o procedimento não foi feito para que a verdade seja dita, mas, sim, para conferir justiça, a verdade foi finalmente relegada. Mais tarde, poderia ter sido pensado em punições mais brandas em troca de um maior nível de confissão, mas não teria tido o mesmo efeito de verdade.
Você cunhou o conceito de globish, que designa o processo de homogeneização nos usos das linguagens nativas, produto de sua relação com o buscador Google. Quais são seus alcances e em que medida sua massificação pode gerar, no futuro, uma depredação das identidades culturais?
O conceito de globish surge em meu livro Los intraducibles [Os intraduzíveis]. Escrevi isto porque comecei a perceber na Europa o surgimento de dois inimigos: por um lado precisamente o globish, ou seja, a homogeneização através de uma não língua, melhor dito, de uma língua de ninguém, que se pode perceber como um produto do capitalismo. Caso se olhe para seus efeitos, o globish serve ordenar e produzir hierarquias. Acredito que não é absurdo pensar na ameaça de uma linguagem única da comunicação. Contra esse risco, acredito que todos deveríamos dominar uma segunda língua além da materna. O globish é uma linguagem de serviço, mas não uma língua para a transmissão de uma cultura. Está baseado no inglês, mas não deve ser confundido com ele. O segundo perigo que detecto é o do nacionalismo ontológico. A maneira de Heidegger, o perigo de arraigar uma língua a uma nação, a uma raça. É preciso erradicar a tendência em acreditar que há línguas melhores que outras, mais aptas para dizer o ser. Isto se vincula com o que eu dizia antes: a língua não é só um meio de comunicação. Produz cultura. Por isso, acredito que é necessário complexificar a relação entre língua e nação. E isso não se consegue com o globish, nem com o arraigamento em uma língua.
Por que diferente do mito babélico da disparidade de línguas como disparador para a falta de comunicação, você acredita que cabe reivindicar a diversidade de idiomas e dialetos?
A diversidade de línguas é necessária como parte da diversidade dos cidadãos. As palavras têm histórias que nos permitem uma melhor compreensão do que significam e como podemos utilizá-las. Cada palavra é o resultado de uma história e uma série de representações, mas só adquire seu significado, que designa uma coisa e não outra, em sua diferença com outras palavras da mesma língua.
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“É preciso erradicar a tendência em acreditar que há línguas melhores que outras”. Entrevista com Bárbara Cassin - Instituto Humanitas Unisinos - IHU