Por: Vitor Necchi | 17 Mai 2017
A população mais empobrecida de Porto Alegre começou a ser afastada da região central no final do século 19. No século 20, em diferentes momentos, o processo se repetiu, expandindo os limites da cidade com aglomerações precárias. Ao longo do tempo, essas pessoas começaram a criar suas próprias narrativas acerca das suas vidas em regiões desassistidas pelo poder público. Estes temas e o resultado do diálogo que mantém com moradores e ativistas de comunidades foram tratados pelo professor e pesquisador Leandro Rogério Pinheiro, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS, na conferência intitulada Itinerários versados – redes, pertenças e modos de ser nas periferias de Porto Alegre. O evento ocorreu no dia 10 de maio, no Instituto Humanitas Unisinos – IHU, compondo o 5º Ciclo de Estudos: Metrópoles, Políticas Públicas e Tecnologias de Governo – A centralidade das periferias brasileiras.
Pinheiro, a partir de suas investigações, procura compreender como os moradores das periferias produzem seus processos de identização. Ele reconhece a dificuldade em trabalhar com a identidade de um bairro. “Cada sujeito participa do processo, produzindo as narrativas de si”, afirmou. “Identidade é ação, e não somente um conjunto de atributos e características.” Para ampliar o entendimento do tema, Pinheiro citou Alberto Melucci: “Poder-se-ia definir identidade como a capacidade reflexiva de produzir consciência da ação (isto é, representação simbólica da mesma) além dos seus conteúdos específicos. A identidade transforma-se em reflexividade formal, capacidade simbólica, reconhecimento da produção de sentido no agir.” O pesquisador opera no que chamou de sociologia dos indivíduos, que busca compreender como que, na modernidade, nos constituímos como indivíduos.
A periferia remete a determinados contextos específicos. Pinheiro descreve os ambientes compostos por casas mal-acabadas e estrutura precária, onde há insuficiência de equipamentos e serviços públicos e vivem comunidades relativamente homogêneas. Nesses cenários, aponta que “é bom pensar na potência das palavras”, que ajudam a reconstituir e preservar as trajetórias dos espaços e seus moradores.
Os bairros periféricos de Porto Alegre têm um histórico de constituição que se inicia com os ciclos de remoção de pessoas empobrecidas. A cidade se expande e empurra a população menos abastada para mais longe, “as franjas da cidade”, define Pinheiro. No final do século 19, essa população empobrecida que vivia próxima ao Centro foi removida para o Areal da Baronesa e a Ilhota, região onde atualmente ficam os bairros Cidade Baixa, e para a Colônia Africana, que originou o bairro Rio Branco. Na década de 1930, em novo movimento de afastamento, esse contingente acabou deslocado para lugares ainda mais afastados, como nos bairros Mont'Serrat, Petrópolis e Partenon. Na década de 1960, ocorreu uma nova remoção, dando origem ao bairro Restinga.
Nos anos 1970 e 1980, na periferia de Porto Alegre surgiram iniciativas de organização comunitária a partir de times de futebol, de escolas de samba e de associações de moradores. Por meio dessas articulações, passaram a buscar recursos para qualificar as áreas que habitavam. Na esteira desse processo, os moradores criaram uma narrativização do bairro, com histórias do antes e do depois. O objetivo era registrar como a vida se processa em diferentes tempos das comunidades. Esse fenômeno ocorreu principalmente com pessoas maiores de 60 anos e que, em algum momento, migraram para a periferia. Isso acabou por estabelecer um senso de comunidade.
Mesmo que a periferia aparente unidade, há uma diferenciação interna dentro dos bairros. No Bom Jesus, por exemplo, existem zonas antigas que são mais estruturadas; em uma área específica da região, a vila Mato Sampaio, a situação é mais precária, havendo casas tão pequenas e desestruturadas que, em dias muito quentes, as pessoas saem para fora, porque o calor fica insuportável dentro do imóvel.
Um olhar retrospectivo revela que as remoções não primavam pelo respeito às pessoas mais empobrecidas, sendo expressiva a presença de negros. Por ocasião das remoções, as famílias eram colocadas em caminhões, junto com seus pertences, e despejadas em lugares distantes. Para recomeçarem suas vidas depois do despejo forçado, recebiam apenas uma lona para se virarem do jeito que desse. Nos últimos anos, a intervenção pública é mais sutil, o que não significa que os menos favorecidos venham sendo tratados com o respeito merecido.
Para Pinheiro, pensar a periferia é reconhecer que há questões econômicas, étnicas e de gênero na configuração desses espaços. Isso gera amplas possibilidades de abordagem. Nos anos 1960, por exemplo, começaram a surgir estudos sobre o tema, que volta novamente à pauta nos anos 1990 porque os próprios moradores se apropriaram do termo periferia. Começa um ciclo intenso de produção de narrativas sobre a vida nas regiões distantes da zona central, com destaque à juventude vulnerabilizada que, a partir dos anos 1980, e especialmente nos 1990, passa a se expressar e fazer reivindicação política por meio do hip-hop e do funk, o que gera bastante visibilidade cultural.
Em Porto Alegre, durante os 16 anos (1989-2004) de governos do Partido dos Trabalhadores (PT) na prefeitura, ciclo batizado de Administração Popular, foram criados estúdios na periferia que permitiram a gravação de CDs, havia festivais de música e pagamento de cachês para os participantes, permitindo que os jovens se articulassem em suas manifestações artísticas, o que contribuiu para aumentar a narrativização da periferia.
Os anos 1990 e 2000, resume Pinheiro, foram marcados por um contexto de diversificação e narrativização nas periferias. Nesse contexto, ele propõe eixos de análise para se inventariar os itinerários produzidos: Territorialidades – redes; Pertença – identizações; Astúcias – reflexividades; e Individuação – singularização. O trabalho de Pinheiro e de outros pesquisadores associados a ele podem ser acompanhados no site www.ufrgs.br/enunciarcotidianos. Em diálogo com moradores e ativistas de comunidades de periferia urbana de Porto Alegre, o grupo procura compreender como os moradores das periferias produzem seus processos de identização.
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Periferias produzem narrativas sobre a própria identidade - Instituto Humanitas Unisinos - IHU