04 Abril 2017
O ruído de talheres no café de Paris não interfere na límpida pregação de João Moreira Salles (Rio de Janeiro, 1962) sobre seu novo documentário, No intenso agora. No filme, ele revisita o movimento de maio de 1968 e registros amadores variados, incluindo os feitos por sua mãe na China. Investiga a natureza das imagens e das motivações humanas enquanto claramente desfruta da arenga que cria em torno de um tema "tão mitificado da economia simbólica da esquerda”. "Há um apego desmesurado com algo que começou tantos anos atrás que impede, às vezes, de enfrentar fatos da história", diz ele, e informa que o café em que estamos foi ponto de encontro dos manifestantes franceses há 50 anos. Embora não tenha feito novas imagens em Paris - o filme é um trabalho monumental de garimpo de arquivos -, ele conta que conhece a geografia do conflito na época, graças a leituras e a visita a pé que fez guiado por um podcast do jornal The Guardian sobre 1968 há alguns anos.
A entrevista é de Flávia Marreiro, publicada por El País, 02-04-2017.
O cineasta e diretor da revista Piauí soa animado com as duas exibições do filme na competição do Cinéma du Réel, o festival de documentários que premiou seu Santiago em 2007 e se encerra neste domingo no Centro Pompidou. A promoção da obra, que já o levou a Berlinale em fevereiro, deve fazê-lo visitar em breve mais um punhado de destinos, incluindo Buenos Aires e Tel Aviv. O filme estreia em São Paulo e no Rio de Janeiro no É tudo Verdade, entre 20 e 30 de abril.
Eis a entrevista.
Você fez um retrato generosamente humano, mas politicamente muito duro de maio de 1968 em Paris. Como foi dissecar o corpo vivo de 1968 aqui?
Você tem razão. Está vivo. Não é um corpo. É um ser que pulsa, mas depende muito de quem vê. É muito interessante apresentar o filme aqui por razões óbvias. 1968 ainda está vivo para boa parte das pessoas que participaram e algumas delas estavam na sessão de domingo e outras na sessão de segunda. Curiosamente, a de segunda foi muito mais plácida e serena do que a de domingo, que foi muito quente. Alguns dos diretores que estavam lá, em especial um, tiveram reações fortes. Um diretor, um sujeito que parece que é muito bacana, um militante de vida inteira, considerou, e ele foi muito eloquente e assertivo, que o filme é muito derrotista, que o filme traz uma visão pessimista de maio de 1968. É uma visão legítima da qual eu evidentemente discordo. No domingo, a segunda pessoa a falar foi também militante de 1968. Antes de falar sobre o achava do filme, ele ficou apontando as cenas em que ele aparecia e depois discordou do companheiro dele. Ele disse que o filme é um retrato comovido, porém realista, de uma geração que foi para a rua mudar o sistema e derrubar o Governo e não conseguiu uma coisa nem outra. Conseguiu outras, que não estavam na agenda prevista, não estavam no programa.
No seu filme cenas mostram que a pauta de cultura e comportamento estavam no movimento...
Na verdade, não. Isso foi muito mais nos Estados Unidos do que aqui, que era muito mais político. Há uma espécie de dissonância entre o espírito libertário e a prática política. Eu pus poucas cenas de marcha, mas, nas marchas, é "ordem unida". Os gritos são os velhos gritos da esquerda histórica. É um movimento essencialmente de homens. As pautas que acabaram se impondo, das minorias, das mulheres, da liberdade sexual, não eram explicitamente o que a garotada reivindicava. A reivindicação era estritamente política. A pauta era derrubar o regime e, principalmente, derrubar o modo de produção. Não estou inventando a roda. Isso não é um insight original, é o que vem à medida que você vai lendo os relatos e percebe o que estava em jogo. Curiosamente, na segunda-feira, estava lá (Romain) Goupil, diretor de Mourir à 30 ans (Morrer aos 30 anos, citado no documentário). No final, ele veio me dar um abraço apertado, longo, e me disse, sem que eu tivesse estimulado, exatamente isso: "Nós vencemos onde não achávamos que fôssemos vencer, porque não era nossa preocupação. A gente queria derrubar o de Gaulle, a gente queria trocar o sistema socialista por outro, pelo socialismo libertário. Nada disso foi alcançado”.
No filme, há uma citação dizendo algo como “as mulheres não queriam voltar para casa, nem os gays queriam mais se esconder”. E, de fato, foi isso que aconteceu. Não houve restauração completa.
Mas, agora, vai perguntar para a juventude marxista-leninista, trotskista - os anarquistas talvez sejam exceção -, mas para os maoístas, se essa eram as razões pelas quais eles estavam na rua? Não, não era.
Em resumo, seu filme é uma crítica aos que aqui em Paris, no Brasil ou em qualquer lugar tentam viver de uma visão que você considera não realista de 1968.
Eu acho que a história anda, a fila anda. A nostalgia mata. Por que buscar em maio de 1968 as energias? Tem tanta coisa importante acontecendo hoje em dia, tantas lutas importantes. Por que buscar exemplos de um tempo que foi deslumbrante? A sociedade era diferente, a sociedade. O (um dos principais líderes de Maio de 1968, Daniel) Conh-Bendit diz isso muito bem e é considerado um canalha por muita gente. O Conh-Bendit diz que 68 acabou, e isso não quer dizer que não teve importância capital. Assim como a Revolução Francesa foi uma revolução capital, mas ninguém sai na rua pensando em Robespierre. Sai pensando nas questões contemporâneas. Tem um apego desmesurado com algo que começou tantos anos atrás que impede, às vezes, de: número 1, enfrentar fatos da história; e, número 2, perceber que há de novo forças neste momento que exigem outro tipo de enfrentamento, outro tipo de luta. O apego é conservador, como todo o apego ao passado é conservador. Vou repetir isso quantas vezes me perguntarem: isso não é sinônimo de que não acho que, naquele momento, aquela luta foi deslumbrante, generosa, libertária, mudou a sociedade, mas passou. 68 não está vivo. Negar a história é o primeiro caminho para a ilusão.
O filme é também uma investigação sobre você, como foi Santiago. Minha impressão era que você ficou muito feliz de encontrar a sua mãe, que escrevia durante a viagem à China, uma ensaísta como você.
Fiquei muito feliz de encontrar minha mãe feliz, mais do que qualquer outra coisa. A felicidade que ela está vivendo naquele momento eu, como adulto, vi muito pouco. Reencontrá-la tão feliz de estar viva para mim foi uma revelação bacana.
No intenso agora parece ser feito também para ser ouvido, uma leitura em voz alta. Ele soa como um ensaio, no qual os registros da sua mãe conversam com os seus. Você considera o filme um ensaio?
Bacana, eu não tinha pensado nisso (sobre os escritos dele e da mãe), mas talvez você tenha razão... Existe uma tradição de cinema de ensaio, mas não tem muita gente que faça isso hoje em dia. O Chris Marker, por exemplo, é um grande ensaísta de cinema. Existem outros. Sim, eu penso no meu filme como ensaio, mas não digo isso porque soa pretensioso. É um ensaio sobre 68, claro, mas também é um ensaio sobre a natureza das imagens e por que elas são feitas, em que condições elas são feitas. O que se pode dizer de imagens feitas em diferentes regimes políticos. Como é a imagem feita na democracia, como é a imagem feita num regime totalitário, como é a imagem feita com medo, como é a imagem feita na alegria.
Os registros que você recupera, como os rolos de cineastas anônimos que captaram cenas da Primavera de Praga, me remeteram ao filme exibido antes do seu no domingo, Paris é uma festa, de Sylvain George, que filmou a quente os protestos contra a reforma trabalhista na França.
Com a diferença de que a vida dele não estava em jogo...
Um retratado do filme, acho que em Morrer aos 30 anos, fala que o divisor de águas em 1968 foi a repressão policial aos estudantes. Difícil não pensar no filme de George, no Brasil de 2013 e depois.
Uma pergunta inevitável sobre o filme tem sido se 2013 o motivou ou modificou. 2013 não modificou o filme. O filme modificou a minha maneira de ver 2013. Comecei a fazer o filme em 2011 e foi curioso editá-lo enquanto as ruas no Brasil estavam pegando fogo. A Laís (Lifschitz, uma das editoras do filme), que montou o primeiro corte de cinco horas comigo, ia para as ruas enquanto estávamos trabalhando. Talvez tenha a ver com a questão da velocidade dos resultados. Os efeitos de 68 na sociedade foram sentidos ao longo dos anos. Um amigo contou que, depois de 68, mais pessoas deixaram de se tratar como vous (o tratamento formal na França) para tu, por exemplo. Eu não sei se algo semelhante não está em curso a respeito de 2013. A dissolução do sistema político brasileiro que estamos vendo não é um efeito de 2013? Será que antes de 2013 membros da elite econômica ou todos os tesoureiros do antigo partido hegemônico teriam sido presos? Políticos da antiga oposição entrariam na mira? Estou pensando alto, especulando.
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“O apego ao movimento de 1968 é desmesurado e conservador”. Entrevista com João Moreira Salles - Instituto Humanitas Unisinos - IHU