08 Março 2017
A globalização do papado vem interagindo com a globalização da Igreja de um jeito novo.
O comentário é do historiador italiano Massimo Faggioli, professor da Villanova University, nos Estados Unidos, em artigo publicado por La Croix International, 06-03-2017. A tradução é de Isaque Gomes Correa.
Segundo ele, "Francisco é um jesuíta e sabe bem dos enormes significados teológicos e políticos inerentes à supressão da Companhia de Jesus entre 1773 e 1814. Este foi o começo do “longo século XIX” que precedeu o Vaticano II. Não é coincidência que este é um período ao qual muitos dos opositores do papa gostariam de retornar".
Eis o artigo.
O Papa Francisco continua desempenhando um papel ativo no cenário mundial na medida em que o Vaticano trabalha pela paz em países atingidos pela guerra.
Em 26 de fevereiro, numa visita à comunidade anglicana de Roma, o pontífice anunciou que está considerando a possibilidade de ir ao Sudão do Sul com o arcebispo de Canterbury, Justin Welby.
Francisco vai se reunir com chefes de Estado e de governo de países na União Europeia no dia 24 de março, no Vaticano. Eles estarão na cidade para marcar o sexagésimo aniversário do Tratado de Roma que estabelecia oficialmente a Comunidade Econômica Europeia.
O evento ocorre menos de um ano depois de o papa ser condecorado com o prêmio político mais prestigiado da Europa, o Carlos Magno [Karlspreis]. Nessa ocasião, também no Vaticano, Francisco – católico argentino – basicamente pediu que as elites europeias restaurem o projeto europeu com o seu núcleo cultural e espiritual original.
O Papa Francisco prega uma mensagem social forte e há grandes expectativas com uma contribuição sua no tocante à condição perigosa (e, para alguns países como o Sudão do Sul, trágica) do mundo hoje.
Isto é particularmente verdadeiro à luz dos desdobramentos da situação internacional durante o ano passado, como o Brexit e a eleição de Donald Trump, assim como com os temores concernentes a 2017, por exemplo as eleições na França, na Holanda e Alemanha.
O apelo constante que os católicos americanos opositores de Trump fazem aos ensinamentos do papa é apenas um exemplo e um sintoma destas expectativas.
Essas esperanças, porém, nem sempre levam em conta duas mudanças importantes que vêm ocorrendo na relação entre o papado e o mundo – mudanças que começaram antes de Francisco se tornar o papa, mas que se tornaram especialmente visíveis durante o seu pontificado.
A primeira mudança é a globalização da Igreja Católica e o preço que ela tem exigido.
A globalização do papado em si remonta a, pelo menos, o Concílio Vaticano II (1962-1965). Mas Francisco é o primeiro papa a redistribuir o poder na Igreja Católica, de Roma para diferentes regiões do mundo. Ele vem fazendo isso especialmente ao criar novos cardeais vindos de uma variedade cada vez maior de países, e ao empoderar o Sínodo dos Bispos para lidar com a questão da família e do matrimônio.
E, o mais importante, a globalização do papado vem interagindo com a globalização da Igreja de um jeito novo. O papado sob Francisco aproximou-se mais das igrejas no mundo. Essa é a parte geopolítica e geoteológica da ênfase deste pontífice nas periferias.
O papado está agora mais “difundido” sobre o mapa global. E isto pode bem marcar o início de uma nova fase na história da Igreja Católica.
Todavia há uma desvantagem com esta globalização do papado e da Igreja. O papado não mais está particularmente próximo a um único país ou região do mundo. Com certeza ele não está mais particularmente próximo de regiões que certa vez desempenharam um papel fundamental na história católica.
Isso é especialmente evidente para os católicos italianos que agora estão entrando numa transição política singularmente confusa. A Itália não pode mais contar com uma coorte de políticos católicos claramente inspirados pela cultura e fé católica. Ela não mais pode contar com um papa que entenda os mistérios da política italiana e europeia.
Francisco não terá condições de ajudar a Itália a se salvar do jeito que seus antecessores fizeram durante as duas guerras mundiais e no período do terrorismo político nacional na década de 1970, conhecido como “os anos de chumbo”.
Isso deveria servir como um lembrete aos católicos americanos também. Francisco não é um papa do Atlântico Norte, e o seu pontificado está preocupado com muitas outras coisas além de salvar os EUA de Donald Trump.
Existe uma segunda mudança epocal que importa observar se quisermos compreender o atual pontificado. Ela é a crise tanto da Igreja quanto do Estado no sentido de que os Estados-nação não mais dominam a política, enquanto as igrejas institucionais e suas organizações não mais têm o controle.
Um dos mais historiadores mais importantes da Igreja no período moderno, Paolo Prodi (1932-2016), explicou muito bem esta ideia em uma das últimas palestras que proferiu. [1]
Prodi observou que, até o século XX, o cristianismo ocidental era um produto do período entre os séculos XV e XVII, que emergiu em torno de três atores: a Igreja, o Estado e o mercado.
O mercado se tornou algo completamente diferente daquilo que foi nos primórdios da era moderna. Mas, de um ponto de vista histórico-teológico, a transformação mais radical está agora afetando a Igreja e o Estado.
Prodi diz que, 500 anos depois da Reforma Protestante, a divisão do trabalho entre igrejas e Estados-nação não mais se sustenta. A cooperação deles, celebrada com o Tratado de Westfália de 1648, que pôs fim às guerras religiosas na Europa que duravam séculos, não os mantém juntos mais.
Neste momento, o poder político vagueia para além do controle dos Estados-nação, e o poder religioso vagueia para além das igrejas e da religião organizada.
Na longa história do Ocidente, houve uma associação estreita entre “o sagrado e o poder” e “a Igreja e o Estado”. Agora, eles estão dissociados e afastados. Isso é verdade para o cristianismo, mas também para outras religiões, de diferentes formas – inclusive o Islã. A crise do multiculturalismo e da “laïcitè” faz parte deste quadro mais amplo.
Isso ajuda a entender a importância do pontificado de Francisco para além de temas mais populares como a reforma da Cúria Romana ou de uma nova práxis pastoral para o matrimônio e a família (o que, não obstante, são extremamente importantes também).
O que nos impressiona é que agora o papado não só é pós-cristandade, quer dizer, além do período em que a religião era um pilar fundamental de poder político e de um dado modelo de sociedade.
Sob Francisco, ele é também pós-confessional.
E não só no sentido de que as fronteiras confessionais entre as diversas igrejas são, hoje, diferentes do que com os seus antecessores, mas também no sentido de que o atual papa enxerga a religião num mapa mundial onde as fronteiras dos Estados-nação não mais significam aquilo que costumavam significar, até mesmo a poucos anos atrás.
Num livro recém-lançado por Dom Charles Chaput, arcebispo da Filadélfia, o temor anunciado do pós-cristianismo claramente deixa escapar este quadro mais amplo. De forma semelhante, é bastante incorreto comparar o populismo do Papa Francisco com o de Donald Trump em vista da relação entre o nacionalismo e o globalismo.
É verdade que agora estamos olhando para um futuro pós-neoliberal. Nesse sentido, a eleição de Trump é um “sinal dos tempos”, e um sinal que a Igreja deve evitar lê-lo em termos de ganhos ou perdas a curto prazo.
A mudança real, em termos histórico-teológicos, é o fim da divisão do trabalho entre Igreja e Estado e, ao mesmo tempo, o fim do isomorfismo e do paralelismo institucionais da Igreja e do Estado.
Uma mistura de elementos que são tanto monárquicos quanto aristocratas governa ambos. Para a Igreja Católica, isso significa o papado, os bispos.
Esta crise da Igreja e do Estado tem causado uma “teologização da política”, onde diferenças políticas tornam-se excomunhão mútua, por exemplo entre republicanos e democratas nos EUA.
Ela tem também causado uma “ideologização da Igreja”, onde, por exemplo, um dado desenvolvimento doutrinal ou prática pastoral aos fiéis divorciados e recasados é considerado ortodoxo ou herético à luz de sua capacidade de servir as lutas ideológicas mesquinhas do catolicismo versus o mundo secular.
O Papa Francisco rejeita ideologias neoconstantinianas que hoje tentam ver um novo imperador protegendo o cristianismo, seja em Vladimir Putin, seja em Donald Trump (ou, em alguns casos, em ambos, Putin e Trump). E isso advém da compreensão que o papa tem do quadro histórico-teológico mais amplo.
Francisco é um jesuíta e sabe bem dos enormes significados teológicos e políticos inerentes à supressão da Companhia de Jesus entre 1773 e 1814.
Este foi o começo do “longo século XIX” que precedeu o Vaticano II. Não é coincidência que este é um período ao qual muitos dos opositores do papa gostariam de retornar.
Nota:
[1] Cf. texto em italiano intitulado “Senza Stato né Chiesa. L’Europa a cinquecento anni dalla Riforma”, disponível aqui.
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Igreja e Estado: uma crise pós-cristandade e pós-confessional - Instituto Humanitas Unisinos - IHU