05 Março 2017
A voz ao telefone, de Dublin, soa cansada, mas firme. A irlandesa Marie Collins, que na quarta-feira, 01 de março de 2017, anunciou a sua renúncia da Pontifícia Comissão para a Proteção de Menores porque não tolerou mais as “vergonhosas” resistências que este órgão consultivo teve que enfrentar na cúria, disse que não se arrepende de ter saído. Vítima de abusos sexuais por parte de um padre na sua infância e referência da luta contra a pedofilia, uma praga que manchou como nunca a credibilidade da Igreja católica, Collins, em conversa com La Nación, disse que espera que sua atitude – um revés para Francisco – sirva para remover as águas e fazer a comissão avançar. Além disso, denuncia o clericalismo como uma das causas do problema e assinalou que alguns membros da cúria têm atitude de superioridade e não respeitam a existência de uma comissão de especialistas externos.
A entrevista é de Elisabetta Piqué e publicada por La Nación, 03-03-2017. A tradução é de André Langer.
Na carta em que explicou sua renúncia, você enumerou os obstáculos e denunciou a falta de cooperação de diversos dicastérios da cúria romana, especialmente a Congregação para a Doutrina da Fé (CDF)...
Sim. Em três anos, tivemos que superar muitas resistências. Como já disse, é vergonhoso que uma comissão criada pelo Papa e apoiada por ele para melhorar a proteção das crianças no mundo tenha sido obstruída por homens que estão na hierarquia da Igreja, na administração central da Igreja, sobretudo tendo presente a história que ela tem no manuseio desta questão. Foi tão mal administrada no passado que a única coisa que a comissão quer é que não se repita. Não obstante, há alguns no Vaticano que persistem com suas brigas internas, sua visão clerical ou o que for, para resistir a uma comissão que está tentando com muito esforço melhorar as coisas. Não há desculpas para isso.
Sua presença dava à comissão uma grande credibilidade e sua saída corre o risco de ser utilizada pelos que querem desacreditar o compromisso do Papa na luta contra a pedofilia no clero...
Eu sempre estive 100% por trás dos trabalhos da comissão e creio que o Papa nos apoiou. Se a explicação à resistência à comissão é que a mesma facção está resistindo ao Papa, e nós sabemos que o Papa enfrenta resistências, a única coisa que posso dizer é que é uma desgraça, porque estão brincando com a vida das crianças.
Ao renunciar, manifestou-se consternada com o que viveu. Já não tem esperança em que as coisas podem mudar?
Ainda tenho um pouco de esperança. Mas o que vivi é como um reflexo do que aconteceu quando, há 20 anos, fui à minha diocese para denunciar o sacerdote que abusou de mim. Eu tinha a esperança de que, para dar segurança a outras crianças, o tirariam da paróquia e que haveria uma investigação da polícia. Mas não houve nada disso. Quando entrei na comissão criada por Francisco, em março de 2014, sabia que iríamos ter dificuldades. Mas nunca imaginei que pessoas do Vaticano, da administração central da Igreja, pudessem ser o problema. Nunca imaginei que aqueles que tinham a missão de implementar as nossas recomendações – entre elas, algo tão simples como acusar o recebimento das cartas das vítimas – pudessem ser aqueles que as rejeitariam. Isto me deixou com raiva e sem esperanças. Embora espere que a comissão prossiga com o trabalho e que a publicação desta resistência possa ajudar a removê-la. Na comissão, há muitas pessoas valiosas e têm o apoio do Papa. Penso que é horrível o que está acontecendo e que no futuro os leigos deverão trabalhar nestas coisas e o clericalismo deve morrer.
Houve clericalismo na falta de colaboração da Congregação para a Doutrina da Fé?
Penso que a influência do clero nos assuntos políticos é a raiz do problema. Ainda existe em alguns membros da cúria uma atitude que os faz se sentirem superiores e saber mais que todos os outros. Não parecem respeitar a existência de uma comissão de especialistas, considerados outsiders, formada por homens e mulheres. E isso apesar do fato de o Papa, obviamente, respeitar a comissão, e a tal ponto que aprova suas recomendações.
Como se sente depois da renúncia?
Bem. Não me arrependo de ter trabalhado três anos na comissão e tampouco de ter renunciado, porque neste ponto era algo que sentia que tinha que fazer para respeitar a minha própria integridade. Sinto que fiz a coisa certa. Espero que a renúncia possa abrir alguns olhos e que o mundo saiba que, embora a comissão esteja trabalhando com afinco, as coisas não estão indo bem. Espero que a minha saída faça avançar as coisas mais rápido do que se tivesse ficado.
Pensa que a falta de colaboração que você denunciou é uma resistência apenas à comissão ou uma resistência a Francisco?
Obviamente, não sei com segurança a resposta, mas como a comissão é apoiada pelo Papa, que a considera importante, a resistência ao Papa pode ser refletida na resistência à comissão.
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“Nunca pensei que pessoas do Vaticano pudessem ser o obstáculo”. Entrevista com Marie Collins - Instituto Humanitas Unisinos - IHU